Direito a um Tribunal Competente como Garantia do Processo

AutorCarolina Tupinambá
Ocupação do AutorMestre e Doutora em Direito Processual. Professora Adjunta de Processo do Trabalho e Prática Processual Trabalhista na UERJ
Páginas102-118

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2.1. Contexto histórico do surgimento dos direitos econômicos e sociais: solo fértil para a semente da ideologia de um processo instrumental

O direito a um tribunal previamente competente para a espécie de conflito tratada ganha especiais contornos na medida em que a garantia revela verdadeira evolução da Justiça do Trabalho enquanto lócus de desenvolvimento de um instrumental adaptado em prol da eficiência na efetivação de direitos e arena de luta entre os protagonistas das relações de trabalho.

Por esta razão é interessante anotar o contexto histórico do surgimento da Justiça do Trabalho e sua consolidação como garantia de um tribunal competente para conhecer conflitos de eminente índole social e econômica.

A concepção do papel do Estado e seus limites de atuação variou significativamente ao longo da história. A gradativa ampliação do rol dos direitos e garantias fundamentais dos homens colocou em xeque a rígida dicotomia liberal entre a esfera pública e a esfera privada. A evolução torna-se evidente quando o Estado passa a intervir de forma crescente nas relações jurídicas privadas, máxime nas tensões seculares e infindáveis entre capital ou Poder Público e trabalho335.

Assim, enquanto em fins do século XVIII e início do século XIX as Constituições se limitavam a consagrar alguns poucos direitos individuais e a elencar normas referentes à organicidade dos poderes representativos da soberania, com os freios e cautelas assecuratórios das liberdades negativas, as Cartas dos Estados Democráticos de Direito de fins do século XX e início do século XXI sensibilizaram-se com os direitos sociais que impendem da participação do Estado para acontecerem336.

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A conquista e evolução dos direitos fundamentais traduz a mudança de postura do Estado na vida das pessoas. Os direitos individuais, por exemplo, nasceram em fins do século XVIII, como produto das aspirações burguesas por liberdade, igualdade e segurança jurídica337.

A esperança encerrada pelo slogan da Revolução Francesa fez nascer novos tempos e paradigmas para todos no mundo moderno mais desenvolvido a partir da superação da estrutura do Ancien Régime. A Constituição Francesa de 1791, entretanto, evidenciou o descompasso entre as ambições burguesas e populares. A instituição do sufrágio censitário, excluindo a massa do cenário político e a edição da Lei Chapelier338 eram as provas decisivas de que jamais os proprietários dos meios de produção haviam compartilhado quaisquer valores com o restante do terceiro estamento339.

Evidente que as aspirações do povo haviam sido utilizadas pela burguesia como meros instrumentos de retórica e persuasão; como um trampolim que permitiu à classe burguesa ascender socialmente. Este estelionato axiológico imprimiu nos indivíduos a sensação de que a Revolução não havia chegado ao seu termo final, vez que seu premente objetivo — acabar com todas as desigualdades e estabelecer o bem-estar de todos — não havia se concretizado. A conotação que a burguesia imprimiu ao termo liberdade diferia amplamente da acepção revolucionária idealizada. Liberdade burguesa implicava a possibilidade de contratar sem a ingerência do Estado340.

Assim, na medida em que a dramaturgia francesa ia se descortinando, vislumbrava-se o alvorecer de um Estado moldado à imagem e semelhança da classe economicamente dominante, cuja nota essencial repousava no princípio da separação de poderes e da legalidade. A tal Estado convencionou-se denominar Estado Liberal de Direito341.

Os súditos de outrora se transformaram em cidadãos, a cujo patrimônio foram acrescidos os direitos de primeira geração. Consubstanciadas em documentos solenes como a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1791, as liberdades negativas mostrar-se-iam, porém, insuficientes para atender ao ideal de justiça e dignidade humana que se ia propagando entre a nascente classe operária342.

O respeito absoluto ao princípio liberal da autonomia da vontade, calcado na igualdade jurídico-formal dos cidadãos — todos são iguais perante a lei — , cuja consequência foi a não intervenção do Estado nas relações contratuais, resultou na intensa exploração dos trabalhadores por parte do empresariado. “É que a relação contratual estipulada entre o detentor de um poder e aquele que, por suas necessidades de subsistência, fica obrigado a aceitar as regras impostas por esse poder, não constitui, senão formalmente, uma relação jurídica; na sua essência, representa um fator de dominação”343.

Jornadas de trabalho sem-fim, exploração indiscriminada da mão de obra infantil e feminina, constantes acidentes trabalhistas, salários aviltantes do operariado. Esta era a realidade do Estado Liberal. Em nome do respeito absoluto à igualdade jurídica, o ente estatal transformou-se em espectador passivo das tragédias humanas. Neste cenário, floresceram correntes ideológicas de cunho socialista e humanitário. Tal ideário forne-

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ceu o substrato teórico indispensável à tomada de consciência da classe operária344.

Fruto das lutas operárias travadas na Europa Continental, vinha à tona o chamado Estado Social Intervencionista. A partir da nova postura engajada do Estado ocorre verdadeira reviravolta na temática constitucional mundial. Na medida em que são acrescidos às constituições os direitos sociais, econômicos e culturais, dentre os quais os trabalhistas, reconhecendo, portanto, a existência de desigualdades reais entre os diversos grupos sociais, mister, para sua efetivação, a ação do ente estatal. Em termos contratuais, tal ingerência passa a se traduzir na obrigatoriedade de as partes, quando da celebração de um ato jurídico, observarem as chamadas normas de ordem pública, que não podem ser afastadas nem mesmo pela vontade dos sujeitos da relação jurídica. Assim, de mero espectador, passou o ente estatal a intervir nas relações jurídicas privadas, de forma a proteger os interesses dos hipossuficientes, ou seja, daqueles que por alguma razão não teriam condições de, em determinada circunstância, contratar de igual para igual. O Estado busca, portanto, através do Direito, minorar as desigualdades subs-tanciais existentes na sociedade, criando normas de proteção aos grupos desfavorecidos em geral345.

Logicamente, a partir da conscientização do papel do Estado na vivência de direitos econômicos e sociais, natural passa a ser o movimento de consolidação de estrutura processual instrumentalizadora e de incremento de incumbências institucionais dirigidas à formação de um juiz capaz de efetivar estes direitos pelo processo.

Em uma análise história da Justiça do Trabalho no mundo, percebe-se que os primeiros organismos especializados na solução dos conflitos entre patrões e empregados a respeito do contrato de trabalho surgiram na França, os conseils de prud’hommes, em 1806. Diante da experiência bem sucedida, outros Estados resolveram adotar o modelo, buscando via conciliatória a preceder o contencioso jurisdicional346.

Na Itália surgiu o probiviri, em 1893; na Inglaterra, os industrial tribunals, em 1919; na Alemanha, o Arbeitgrichts, em 1926; na Espanha, os comites paritarios para conciliación y reglamentación del trabajo; e em Portugal, os Tribunais de Árbitros Avindores, em 1931.

Originariamente, os organismos jurisdicionais trabalhistas foram compostos por juízes letrados, sucedidos pela sistemática das representações paritárias. Finalmente, surgiu o modelo de juízo tripartite, onde, aos representantes das cate-gorias econômica e profissional se somava, como elemento de desempate, o representante estatal. Diante da insuficiência de juízes leigos, muitos países acabaram por retornar à jurisdição técnica do magistrado letrado, como ocorreu com a Espanha e a Itália. A título de mera ilustração, vivenciaram, ou ainda vivenciam, a representação classista a Alemanha, o Brasil, Camarões, Costa do Marfim, Grã-Betanha, Madagascar, República Dominicana e Senegal. Em contrapartida, não contam com representação classista a Bolívia, Costa Rica, Chile, Espanha, Itália, Paraguai, Peru e Uruguai347.

A tendência moderna segue no sentido da supressão da representação classista nos órgãos jurisdicionais trabalhistas, com incentivo para respectiva reminiscência ou incremento em conselhos de conciliação e arbitragem.

Gize-se, em alguns países os conflitos trabalhistas são absorvidos pela justiça comum ou administrativa, como é o caso dos EUA, França, Índia, México, Suíça. Na Argentina, Bolívia, Colômbia, Costa Rica, Chile, Espanha, Itália e Panamá, não obstante as causas trabalhistas serem processadas pela justiça comum, restam apartadas das demais em varas e/ ou procedimentos especializados. Em geral, nos países que adotam tal sistema, qual seja, de atribuir a um dos ramos da justiça comum a apreciação das questões laborais, funcionam, em primeira instância, juízos monocráticos, de caráter...

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