O direito da sociedade

AutorParanaguá, Pedro - Branco, Sérgio
Páginas65-92

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Função social dos direitos autorais

Direito autoral como propriedade intelectual

A Constituição Federal prevê, em seu art. 5º, incisos XXII e XXIII, que é garantido o direito de propriedade, devendo esta atender a sua função social. Adiante, no art. 170, que inaugura o capítulo a respeito dos princípios gerais da atividade econômica, a Carta Magna estabelece que a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados determinados princípios, entre os quais se destaca a função social da propriedade.40Ora, se, de acordo com a doutrina dominante o direito autoral é ramo específico da propriedade intelectual, há que se averiguar em que medida a funcionalização social da propriedade incide sobre o direito autoral.

Preliminarmente, dadas as características dos direitos de propriedade, observa-se que é possível atribuir ao direito autoral as

40Ambos os grifos são nossos.

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peculiaridades atinentes à propriedade, exceto no que diz respeito à perpetuidade. Como se sabe, o titular do direito autoral tem sua propriedade limitada no tempo nos termos da LDA. Afinal, os direitos patrimoniais do autor perduram por 70 anos, contados de 1º de janeiro do ano subsequente ao seu falecimento, obedecida a ordem sucessória da lei civil.41Na limitação temporal do direito autoral reside a primeira distinção entre os direitos autorais e os demais direitos de propriedade. Mas essa não é a única distinção, nem a mais relevante.

Segundo Antônio Chaves (1987:16), a diferença entre o direito autoral e os demais direitos de propriedade material revelase pelos modos de aquisição originários (já que o direito autoral só surge para o autor mediante a criação da obra) e pelos modos de aquisição derivados. Afinal, no tocante a estes, no direito autoral não existe perfeita transferência entre cedente e cessionário, uma vez que a obra intelectual não sai completamente da esfera de influência da personalidade de quem a criou, em decorrência da manutenção dos direitos morais.

Quando adquire um bem móvel, seu titular exerce sobre o referido bem as faculdades de usar, gozar, dispor e reivindicar. Dessa forma, o proprietário pode, por exemplo, usar a coisa, abandoná-la, aliená-la, destruí-la, ou ainda limitar seu uso por meio da constituição de direitos em nome de terceiros.

Mas, quando se trata de direito autoral,42faz-se necessário apontar uma peculiaridade que constitua uma diferença básica entre a titularidade de um bem de direito autoral e a titularidade dos demais bens: a incidência da propriedade sobre o objeto.

A aquisição de um livro cujo texto se encontre protegido pelo direito autoral não transfere ao adquirente qualquer direito

41 LDA, art. 41.

42A LDA, em seu art. 28, “atribui explicitamente ao autor o direito exclusivo de utilizar, fruir e dispor da obra literária, artística ou científica”.

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sobre a obra, que não é o livro, mas o texto contido no livro. Dessa forma, sobre o livro — bem físico —, o proprietário pode exercer todas as faculdades inerentes à propriedade, como se o livro fosse um outro bem qualquer, como um relógio ou um carro. Pode destruí-lo, abandoná-lo, emprestá-lo, alugá-lo ou vendêlo, se assim o desejar.

Mas o uso da obra em si, do texto do livro, só pode ser efetivado dentro das premissas expressas da lei. Por isso, embora numa primeira análise ao leigo possa parecer razoável, não é facultado ao proprietário do livro copiar seu conteúdo na íntegra para revenda. Afinal, nesse caso não se trata de uso do bem material “livro”, e sim de uso do bem intelectual (texto) que o livro contém.

Esse princípio se encontra na LDA, em seu art. 37, que dispõe que a aquisição do original de uma obra, ou de um exemplar, não confere ao adquirente quaisquer dos direitos patrimoniais do autor, salvo convenção em contrário entre as partes e os casos previstos nessa lei.

Mesmo que se trate de um quadro, caso em que a obra está indissociavelmente ligada a seu suporte físico, a alienação do bem material não confere a seu adquirente direitos sobre a obra em si, de modo que ao proprietário do quadro não é facultado, a menos que o contrato com o autor da obra assim preveja, reproduzir a obra em outros exemplares. A única exceção é feita pelo art. 77, que prevê, salvo convenção em contrário, que o autor de obra de arte plástica, ao alienar o objeto em que ela se materializa, transmite o direito de expô-la, mas não transmite ao adquirinte o direito de reproduzi-la.

Remuneração do autor versus acesso ao conhecimento

Não só na construção jurídica os direitos autorais — bem como os demais direitos de propriedade intelectual — distinguem-se dos direitos de propriedade. Há aspectos relevantes de natureza econômica e mercadológica. Nesse ponto, é importante

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fazer referência à teoria do market failure a que a doutrina, especialmente a norte-americana, vem se dedicando nos últimos anos.

Supõe-se que o mercado seja idealmente capaz de regular as forças econômicas que regem a oferta e a demanda, de modo que o próprio mercado se encarregue de providenciar a distribuição natural dos recursos existentes e dos proveitos a serem auferidos. Mas essa regra não se aplica quando se trata de propriedade intelectual.

Em suma, uma vez efetivada a transmissão de um bem móvel qualquer, o novo proprietário pode exercer sobre o bem adquirido todas as faculdades inerentes à propriedade, havendo total desprendimento do bem quanto a seu titular original. Mas aquele que adquire um bem material que contenha uma obra protegida por direito autoral (uma obra de artes plásticas, por exemplo) pode exercer as faculdades da propriedade sobre o bem material, mas não sobre o bem intelectual, exceto no que a lei permitir, ou por previsão contratual. Além disso, o vínculo entre autor e obra jamais deixa de existir, pois, ainda que o original da obra seja alienado e venha a ser destruído, o autor tem resguardado seus direitos morais, que preveem, inclusive e entre outros, o direito de ter seu nome indicado ou anunciado como autor da obra.43Finalmente, como o mercado não é capaz de regular eficientemente a oferta de obras intelectuais, é indispensável a intervenção estatal a fim de garantir a continuidade de investimentos. Afinal, se um agente do mercado investe no desenvolvimento de determinada tecnologia, que, por suas características, resulta em altos custos de investimento, mas facilidade de cópia, o mercado será insuficiente para garantir a manutenção do fluxo de investimento.4443 LDA, art. 24, I.

44 Barbosa, 2003:71-72.

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Quando, no mundo físico, A é proprietário de um carro, isso impede que B o seja, simultaneamente com A, exceto numa situação de condomínio. Mas, ainda assim, se A estiver usando o carro de que é proprietário, isso impede B de o usar autonomamente, ao mesmo tempo. Isso significa que, no mundo físico, palpável, existe uma escassez de bens, o que equivale a dizer que a utilização de um bem por alguém normalmente impede a utilização simultânea desse mesmo bem por outrem.

Dessa forma, se C furta o carro de A, A descobre o furto rapidamente, porque o furto o impede de usar o próprio carro. A provavelmente reportará o furto do carro e tomará as medidas necessárias para recuperá-lo. Mas o mesmo não ocorre com a propriedade intelectual. Se C reproduz o trabalho intelectual de A, A pode não descobrir essa reprodução não autorizada por longo tempo (ou talvez nunca), porque a reprodução feita por C não impede A de usar o próprio trabalho. Além disso, a reprodução pode ocorrer em outro estado ou país.45Esse sempre foi o grande dilema da propriedade intelectual. Daí, inclusive, surgiu a preocupação em se obter sua proteção internacional, o que acarretou o surgimento dos primeiros tratados internacionais sobre a matéria.

Na internet, os conflitos são ainda mais graves. No mundo digital, não só o trabalho intelectual pode ser copiado sem que seu titular se aperceba do fato (o que torna ainda mais evidente a “falha do mercado” que vimos anteriormente), como muitas vezes não é possível distinguir o original da cópia. Com um agravante particularmente preocupante: as cópias podem, a rigor, ser feitas às centenas, em pouco tempo e a custo reduzido.

É portanto evidente que estamos diante de novos paradigmas, novos conceitos e novos desafios doutrinários e legislativos. Des-

45 Landes e Posner, 2003:18-19.

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sa forma, “se a propriedade intelectual forjada no século XIX passa a apresentar sérios problemas de eficácia quando nos deparamos com a evolução tecnológica, não cumpre apenas ao jurista apegar-se de modo ainda mais ferrenho aos seus institutos como forma de resolver o problema, coisa que a análise jurídica tradicional parece querer fazer”.46Entendemos que o meio-termo deve ser buscado. Em princípio, e em linhas gerais, os direitos autorais têm a nobre função de remunerar os autores por sua produção intelectual. Do contrário, os autores teriam que viver, em sua maioria, subsidiados pelo Estado, o que tornaria a produção cultural infinitamente mais difícil e injusta.

Por outro lado, os direitos autorais não podem ser impeditivos do desenvolvimento cultural e social. Conjugar os dois aspectos numa economia capitalista, globalizada e, se não bastasse, digital é uma função árdua a que devemos, porém, nos dedicar.

É na interseção dessas premissas, que devem abrigar ainda os interesses dos grandes grupos capitalistas e dos artistas comuns do povo, bem como dos consumidores de arte, independentemente de sua origem, que temos que acomodar as particularidades...

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