O direito à renda cidadó e os princípios de justiça

AutorIvanilda Figueiredo
CargoDoutoranda em direito constitucional (PUC-RIO)
Páginas1-28

Doutoranda em direito constitucional (PUC-RIO); mestre em direito constitucional (UFPE); autora do livro Políticas Públicas e a Realização dos Direitos Sociais, Sergio Fabris Editor; professora licenciada de Teoria da Constituição e Direito Internacional Público da Associação Caruaruense de Ensino Superior; coordenadora da pesquisa Acesso à Justiça nos Países do IBSA: um diagnóstico, patrocinada pela Ford Foundation após aprovação no III Concurso de Dotações para Pesquisa Ford Foundation/IUPERJ. Email: ivanilda.figueiredo@gmail.com.

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A Justificação Pública de Rawls e os Efeitos Brinde e Segurança gerados pela Renda de Cidadania

As incertezas da sociedade atual, a escassez de postos de trabalho (muitos deles extintos pela expansão da tecnologia), a volatilidade da economia, dentre outros fatores, têm gerado um sentimento de insegurança experimentado pelas camadas sociais mais diversas.12Pode-se objetar desde as grandes navegações, a existência de um comércio mundial para se negar a originalidade do fenômeno da globalização, mas é incontestável que os avanços tecnológicos e a expansão das empresas multinacionais, dentre outros fatores, engendram, contemporaneamente, um novo tipo de capitalismo, no qual a inserção social se torna ainda mais melindrosa.3 De acordo com a OIT, ao menos 700 milhões de pessoas em todo o mundo estão desempregadas ou subempregadas.4

A nova ordem mundial deixa sobrar um incômodo contingente de trabalhadores sem trabalho, abrindo a arena da competitividade na qual 'há, a todo custo, que se vencer o outro, esmagando-o para tomar seu lugar. Esse movimento marca a exacerbação dos individualismos: na vida econômica, na ordem política, na ordem dos territórios, na relação social e afetiva, produzindo subjetividades muito perversas e eticamente Page 2 fracassadas. Pelo fato de não se ter trabalho numa sociedade salarial (na qual o universo de referência identitário é o trabalho), a extrema competitividade, o abandono do compromisso ético-político, tanto no campo material quanto simbólico tem implicações extremamente importantes. Os comportamentos de inclusão e exclusão social são cada vez mais interiorizados pelos próprios sujeitos e tornados inquestionáveis.5

A insegurança experimentada pelos cidadãos reflete diretamente no senso de justiça da população e esse é essencial para extrair um princípio de justiça aceitável por dada sociedade, pois uma teoria de justiça não pode ser tão somente algo formado por um cabedal de filósofos e pensadores do direito, ela necessita de uma justificação pública. Essa justificação é uma dos pressupostos da justiça como eqüidade de Rawls. De acordo com seus escritos, a concepção pública de justiça estabelece um lastro através do qual os cidadãos legitimam uns para os outros seus juízos políticos.6

Não se pretende um ajuste completo acerca de toda e qualquer questão política, mas a minoração dos desacordos e, para isso, é forçoso, ao menos, concordância sobre dois aspectos básicos, os princípios fundamentais da estrutura de governo e as liberdades básicas.7

Enquanto houver um acordo firme sobre os elementos constitucionais essenciais, mantém-se a expectativa de que a cooperação política entre cidadãos livres e iguais possa perdurar. Um dos objetivos da justificação pública é certamente o de preservar as condições de uma cooperação social efetiva e democrática.8

Antes de prosseguir, é preciso estabelecer os limites de nossa investigação. O objetivo aqui delineado não é discutir a teoria rawlsiana como um todo ou fazer uma tese sobre sua aplicação ou não à sociedade brasileira contemporânea. Pretende-se apenas discutir, neste e nos pontos a seguir, a partir da revisão de sua teoria expressa na obra Justiça como Eqüidade: uma reformulação, como os princípios de justiça por ele adotados podem contribuir (positivamente ou não) para a teorização a respeito do direito à Renda de Cidadania. Dito isso, parece importante submeter o direito à RC ao imperativo da aceitação pública. Ainda que essa aceitação social represente apenas uma parcela das considerações a serem levadas a cabo para se verificar a adequação da RC à realidade local. Page 3

Talvez uma das melhores palavras para definir a sociedade contemporânea seja diversidade. As características econômicas, sociais, culturais, presentes em cada local e as idiossincrasias dos indivíduos formam uma sociedade bastante complexa. A coexistência dos diferentes de forma mais igualitária possível é o intuito da teoria de Rawls ao lidar todo o tempo com um chamado pluralismo razoável. Na impossibilidade de se estudar em todas as nuances sociais e pessoais dos cidadãos de dado local, é preciso questionar "quais são as diversidades significativas neste contexto?"9 antes de prosseguir qualquer análise.

Sendo a Renda de Cidadania um direito ao recebimento de pecúnia cedida pelo Estado a todas as classes econômicas, resta claro que o importante a esse estudo é dividir as pessoas de acordo com a classe econômica na qual estão insertas. Para isso, três conceitos serão utilizados: ricos, remediados e pobres. Os ricos correspondem às classes A e B, os remediados à classe C e os pobres, à D e E.

Quanto à classe pobre, é presumível uma aceitação de um programa de distribuição de renda direta, pois o benefício é essencial à manutenção dos mesmos em melhores condições. Ademais, a Renda de Cidadania, por ser universal, os exime do estigma (pessoal e social) de "pobres coitados" sustentados pelo Estado, porém esse ponto será detalhado quando da discussão acerca da Renda de Cidadania e dignidade. Por isso, em seqüência, se terá a preocupação de demonstrar como a Renda de Cidadania pode gerar o chamado efeito brinde e disseminar bem-estar aos ricos e remediados.

Após o desenvolvimento das teorias humanistas ao longo dos séculos, autores como Amartya Sen crêem ser insustentável se advogar uma plausibilidade geral para uma teoria ética, sem que essa trate, em algum nível, os cidadãos de modo igualitário.10 É com pesar que se constata a proliferação de teorias nas quais não apenas se admite o privilégio de alguns, mas se vai além, se defende a iniqüidade dos não-contemplados:

Se a pobreza se deve principalmente ao comportamento dos pobres antes do que as barreiras sociais, então é o comportamento que deve mudar, mais do que a sociedade. E é preciso antes de tudo desencorajar a gravidez ilegítima e elevar o nível de trabalho. A melhor resposta à pobreza não é subvencionar as pessoas ou abandoná-las: é dirigir sua vida.11O principio de base aqui é dizer que, sim, é justo ser intolerante com os sem teto nas Page 4 ruas.12

Muitas pessoas se inclinam a pensar que os criminosos são pessoas oriundas dos bairros ruins da cidade. Têm razão no sentido de que é messes bairros que residem de maneira desproporcional pessoas de baixa capacidade cognitiva.13

Tais concepções levam deslegitimação de políticas sociais de combate à pobreza e a desigualdade. Trata-se do que se chamará aqui de egoísmo imediatista da sociedade contemporânea. A descrença num futuro melhor, a desconfiança com as instituições, o desespero ante as dificuldades infindáveis, sentimentos esses especialmente presentes no imaginário dos brasileiros têm levado à legitimação social de políticas egoísticas em nada focadas na igualdade e na aceitação de seus argumentos teóricos. Apenas quando pobres, remediados e ricos, são capazes de se sentir parte de uma sociedade estável na qual podem desenvolver-se e sonhar sem medo nela tende a existir maior estabilidade social.14 A garantia de uma vida com qualidade é fator redutor de insurgências sociais em todas as classes, porque o desejo pela existência de um panorama no qual se mostre viável almejar (e buscar) a felicidade é uma característica humana.

A Renda de Cidadania, ao semear um valor constante todos os meses às três classes, talvez pudesse contribuir para essa sensação de estabilidade. No entanto, pode-se argumentar que uma política de distribuição de renda focalizada nos pobres também teria o mesmo efeito sobre os ricos e remediados, pois estes não precisam de tais valores. Por isso, o intuito, neste ponto, é analisar se há razão, a partir dos anseios das duas classes mais abastadas, para se defender uma política universal.

Pode parecer à primeira vista que aos ricos a concessão direta do valor só lhes serviria caso restasse provado ser a distribuição universal a melhor forma de contribuir para o fim da pobreza, mas há um fator psicológico a ser considerado: os ricos (e os remediados) consideram-se pagadores de impostos em demasia ao Estado e, como não se vêem como beneficiários da rede social outorgada por este (têm plano de saúde, escola particular para a prole, etc.), sentem como que um grande peso sob suas costas, pois nada recebem e muito doam. Assim, ainda que a Renda de Cidadania não fizesse diferença em termos de majoração de rendimentos, teria o efeito psicológico de os fazer se sentir incluídos na proteção estatal, ou mesmo a lhes outorgar uma satisfação por imaginar estar o Estado finalmente lhes dando algo. Page 5

O efeito do recebimento desse direito seria como de um brinde dado em uma loja de departamentos: o consumidor sabe que, de um modo ou de outro, acaba pagando por ele e talvez, ele nem lhe sirva tanto, mas, ao recebê-lo, tem uma sensação instantânea de satisfação. Ou, para os realmente abastados, seria como se um/a comprador/a da Daslu se ressentisse com a vendedora por não ter recebido um chaveiro de brinde. Em termos monetários, não lhe faria qualquer diferença, mas, uma vez que ele/a já gasta tanto, vê como justo receber algum benefício ainda que ilusório.

Em relação aos remediados, há ainda outros argumentos a serem...

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