O direito à prova como projeção do direito ao processo justo

AutorFabiana Pedroso Paz
Páginas41-59

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Em que pese à condição de Direito Humano e Fundamental ocupada pelo Direito Previdenciário, bem como sua relevância, nitidamente acentuada em razão de seu caráter alimentar, são inúmeros os casos em que os segurados, ao buscarem a prestação previdenciária, têm seu direito indeferido pelo ente administrativo. Com isso, faz-se necessária a busca pelo Poder Judiciário para que esse direito de proteção social se realize.

Nessa esteira, o processo judicial previdenciário torna-se um instrumento de concretização do direito humano e fundamental à Previdência Social, sendo indispensável que seu processamento atenda aos ditames do Direito ao Processo Justo. Nesse cenário, deve ser assegurada às partes a produção de provas que formarão a convicção do julgador, sendo imprescindível que esse direito seja exercido de forma adequada à realidade da lide previdenciária, a qual apresenta suas peculiaridades. Assim, para possibilitar a análise da temática que envolve o presente debate, tornam-se necessárias a abordagem e a conceituação do Direito ao Processo Justo, bem como do direito humano e fundamental à prova. É o que será feito nas seções que seguem.

O direito humano e fundamental ao processo justo

Inicialmente, cumpre destacar a previsão constitucional do direito fundamental ao devido processo legal, preceituado no art. 5º, LIV, da Constituição Federal de 1988, o qual dispõe: "ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal".

A referida garantia constitucional está originariamente vinculada ao Direito inglês, sendo a Magna Carta de João Sem Terra,71 do ano de

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1215, o primeiro ordenamento a fazer menção a essa garantia. A respeito, esclareceu Oteiza:

La noción de debido proceso se la vincula com el derecho inglés. Cansados de la tiranía del rey Juan los barones, los obispos y los ciudadanos se levantaron em armas y lograron que se les otorgara una Carta de libertades conocida como la Carta Magna del año 1215. La sección 39 de dicha Carta establleció que: ningún hombre libre será aprehendido ni encarcelado ni despojado de sus bienes ni desterrado o de cualquier forma desposeído de su buen nombre, ni nosostros iremos sobre él ni mandaremos ir sobre él, si no media juicio en legal forma efectuado por sus pares o conforme a la ley del país [law of the land o ley del reino].72 73

A Magna Carta de 1215 assegurava que nenhum homem livre teria sua liberdade ou propriedade sacrificadas, salvo na conformidade da law of the land, estando o rei proibido de agir de acordo com sua própria vontade. Em razão disso, tem-se esse diploma legal como origem do devido processo legal, o qual é assim denominado por exigir que o processo deva ser regido rigorosamente de acordo com a lei, significando não estar sob o arbítrio de autoridade.74 Posteriormente, no século seguinte, no ano de 1354, durante o reinado de Eduardo III, por intermédio da edição de uma lei do Parlamento inglês, a expressão law of the land foi substituída pela expressão due process of law.75

Ainda em relação às origens do devido processo legal, Castro explicou como sendo de decisiva importância, em sua evolução, o fato de essa cláusula, "sempre respeitável por sua relevância político-constitucional nas instituições saxónicas, ingressar desde o primeiro instante nas colónias

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inglesas da América do Norte"76, tendo sido incorporada à Constituição dos Estados Unidos da América; o direito norte-americano foi "herdeiro direto dessa garantia constitucional, tendo o mérito de embalá-la, criá-la e fazê-la florescer com inexcedível criatividade".77

Em um primeiro momento, o due process of law era empregado para significar um processo anteriormente previsto em lei, destinado a todos, tratando-se de um processo justo a que têm direito os homens antes de serem privados de sua vida, liberdade e propriedade.78Foi após a introdução da 5a e da 14a emendas na Constituição Americana79 que a cláusula do due process of law se consagrou, tendo seu âmbito de alcance ampliado. A esse respeito, aclarou Barroso:

Modernamente, sua consagração em ttexto posittivo deu-se através das Emendas 5a e 14a à Constituição norte-americana, a partir de onde se irradiou como um dos mais ricos fundamentos da juris-prudência da Suprema Corte [..]. Na primeira fase a cláusula teve caráter puramente processual (procedurall due process), abrigando garantias voltadas, de início, para o processo penal e que incluí-am os direitos a citação, ampla defesa, contraditório e recursos. Na segunda fase, o devido processo llegal, passou a ter um allcance substantivo (substantive due process), por via do qual o Judiciário passou a desempenhar determinados conttrolles de mérito sobre o exercício de discricionariedade pelo llegislador, tornando-se importante instrumento de defesa dos direitos fundamenttais — especialmente da liberdade e da propriedade — em face do poder político.80

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O devido processo legal ganhou novos contornos, em sua concepção original, estava ligado apenas ao aspecto puramente formal, tendo passado também a estar ligado ao aspecto substancial. Acerca desse conteúdo substancial, comentou Canotilho:

A teoria substantiva pretende justificar a ideia material de um processo justo, pois uma pessoa tem direito não apenas a um processo llegal, mas sobretudo a um processo legal, justo e adequado quando se ttrate de llegitimar o sacrifício da vida, lliberdade e propriedade dos particulares. Esta úlltima teoria é, como sallienta a doutrina norteamericana, uma value-oriented theory, pois o processo devido deve ser materialmente informado pelos princípios da justiça. Mais do que isso: o 'processo devido' começa por ser um processo justo logo no momento da criação normativo-legislativa.81

Ainda em relação ao conteúdo substancial do devido processo legal, sustentou Nery Junior:

A clláusula due processo of law não indica somente a tutella processual, como à primeira vista pode parecer ao intérprette menos avisado. Tem sentido genérico, como já vimos, e sua caracterização se dá de forma biparttida, pois há o substantive due process e o procedural due process, para indicar a incidência do princípio em seu aspecto substancial, valle dizer, atuando no que respeita ao direito material, e, de outro llado, a tuttela daqueles direitos por meio do processo judicial ou administrativo [..].

O conceito de 'devido processo' foi-se modificando no tempo, sendo que a doutrina e jurisprudência alargaram o âmbito de abrangência da cláusulla de sorte a permitir interpretação elástica, o mais amplamente possíível, em nome dos direitos fundamentais do cidadão.82

Assim, haveria uma distinção entre as noções de devido processo legal — quando visto apenas sob o aspecto puramente formal — e o processo justo, o qual pressupõe a observância de outras determinações igualmente positivadas.83 Nessa perspectiva, o devido processo legal será tido como processo justo quando, além de uma regularidade formal, buscar realizar o melhor resultado concreto em face do direito material. Conforme mencionou Theodoro Júnior:

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Nessa moderna concepção do processo justo, entram preocupações que não se restringem aos aspectos formais ou procedimentais ligados à garantia de contraditório e amplla defesa. Integram-na também escopos de ordem substancial, quando se exige do juiz que não seja apenas a 'boca da lei' a repetir na sentença a literalidade dos enunciados das normas ditadas pello legislador. Na interpretação e aplicação do direito positivo, ao julgar a causa, cabe-lhe, sem dúvida, uma tarefa integrattiva, consiste em atualizar e adequar o enunciado da norma aos fatos e vallores em jogo no caso concreto. O juiz tem, pois, de complementar a obra do llegisllador, servindo-se de critérios éticos e consuetudinários, para que o resultado final do processo seja realmente justo;; no plano substancial. É assim que o processo será, efetivamente, um instrumento de justiça.84

Essa concepção de processo, a partir da experiência norte-americana, destacou-se nos cenários constitucionais contemporâneos. No Brasil, de forma inovadora, o artigo 5º, inciso LIV, instituiu o Direito Fundamental ao Processo Justo, representado, conforme dito alhures, pela expressão devido processo legal.

Consoante o magistério de Del Claro, diferentes expressões são utilizadas para expressar esse direito fundamental. Nesse sentido, elucidou:

[..] em Portugal fala-se em direito à tutela jurisdicional ou em direito a um processo equitativo, na Itállia, em giusto processo, na Espanha, fala-se em derecho a tutela judicial efectiva e na Alemanha, em Anspruch auf rechtliches gehõr e em recht auf ein faires verfahren, mesmo adotando uma nomenclatura própria, importa que todos guardam o mesmo objetivo, quall seja, o de atingir justiça no processo.85

Atualmente, encontram-se, no âmbito internacional, vários diplomas legais que consagram o Direito ao Processo Justo, conforme explicou Reichelt:

No âmbito internacional, é possível encontrar uma série de diplomas que, atuando na regulação dos direitos humanos, consagraram o direito a um processo justo sob diversos rótulos e formulações. A Declaração Internacional dos Direitos do Homem de 1948, prevê, no art. 8º, que 'toda pessoa tem direito a receber dos tributos nacionais competentes remédio efetivo para os atos que violem os direitos fundamentais

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que lhe sejam reconhecidos pela constituição ou pela lei' e, no seu art. 10, que 'toda pessoa tem direito, em plena igualdade, a uma audiência justa e pública por parte de um tribunal independente e imparcial, para decidir de seus direitos e deveres ou do fundamento de qualquer acusação criminal contra ele'. A Convenção...

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