O Direito Processual do Trabalho em um Paradigma Neoliberal e Neoconservador: a Lei n. 13.467/2017 como proposta de marco normativo de um processo precário e individualista

AutorNasser Ahmad Allan e Ricardo Nunes de Mendonça
Páginas77-86

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Ver Nota12

1. Introdução

Os objetivos traçados para este artigo são: i) delimitar o contexto de mudança de racionalidade e paradigma de modelo jurídico que experimenta o Brasil em seguida à ruptura da ordem institucional democrática ocorrida em 2016; ii) demonstrar que o Direito Processual do Trabalho, a exemplo do direito substantivo que instrumentaliza, se transforma e se amolda à essa nova racionalidade e paradigma, perdendo características que o distinguiam como ramo do Direito brasileiro; iii) aportar impressões a respeito das mudanças plasmadas na Lei n. 13.467/2017 no tocante a algumas regras de Direito Processual do Trabalho.

Claro que não se pretende esgotar o tema, mas desenvolver ideias que permitam verificar se o Direito Processual do Trabalho, institucionalizado e constitucionalizado como ferramenta cujo propósito deveria ser a efetiva proteção do trabalhador em juízo, se distancia de sua função precípua a partir das reformas apresentadas na Lei n. 13.467/2017.

2. Uma nova racionalidade e um novo paradigma de direito no Brasil

Em outubro de 2014, a maioria da população brasileira, pela quarta vez consecutiva, rechaçou um projeto de governo que tinha como pauta a adoção de medidas neoliberais com o propósito claro de excluir os mais pobres do orçamento e subtrair direitos conquistados pelos trabalhadores e trabalhadoras em seus processos históricos de lutas sociais por dignidade.

Dentre outras coisas, o que a resposta das urnas significou foi uma negativa clara a projetos denominados de “austeridade”, que quisessem impor ao povo os ônus da crise – cíclica e conjectural – gerada pelo mercado financeiro.

Pois bem. O golpe – enquanto processo histórico e contínuo – está permitindo, dia após dia, a subversão da vontade popular e privilegiando, primeiro, os interesses obscuros do denominado “capital especulativo”, com medidas que constitucionalizam a austeridade (PEC n. 241 de 2016) e sacralizam a prioridade do pagamento da dívida pública3 em detrimento dos gastos primários (saúde, educação e seguridade social), e, segundo, os interesses não menos perversos do dito “capital produtivo”, que, atingido pela crise financeira, pretende socializar o resultado de sua ineficiência com os mais pobres e, com isso, obter maiores taxas de lucro.

Todo esse processo se dá num contexto global de ampliação da racionalidade neoliberal e neoconserva-dora4, que reflete exatamente o contrário do que vati-

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cinaram alguns em seguida à eclosão da crise de 2008, quando afirmaram que o neoliberalismo havia morrido. Em verdade, o capitalismo está vencendo5 e o trabalho perdendo sua centralidade na sociedade moderna.

Sabe-se que a estratégia não é nova. É parte de um conjunto de decisões de política econômica pautada num tripé: i) reestruturação produtiva, mercantilização do trabalho humano e fragmentação da solidariedade de classe; ii) desregulamentação financeira e laboral;
iii) hegemonização ideológica neoliberal pautada no individualismo e na competitividade.

É a receita proposta como alternativa à crise de demanda da década de 1970. Esse receituário, somado a outras medidas previstas no Consenso de Washington, foi o responsável por 124 crises financeiras sistêmicas () em mais de 90 países, no período de 1970 até 2007, conforme denuncia o estudo de Luc Laeven e Fabian Valencia, publicado pelo “insuspeito” Fundo Monetário Internacional. Foi o receituário responsável pela maior crise financeira e monetária que o mundo moderno vivenciou. É a racionalidade que nos condena a uma desigualdade social irreversível acaso triunfe definitivamente.

Paradoxalmente – mas não por acidente – a saída sistêmica para a crise do próprio sistema capitalista tem sido radicalizar esse receituário. Países periféricos como Espanha, Grécia e Brasil, por exemplo, são obrigados por credores ocultos (poder transnacional, difuso e incontrolável), que se valem de políticos ilegítimos e apontados pela própria mídia como corruptos, a: i) desprezar a democracia; ii) privilegiar o pagamento da dívida pública, em detrimento de gastos primários (saúde, educação, seguridade social); iii) desregulamentar as relações de trabalho para reduzir salários diretos, indiretos (direitos sociais atrelados ao trabalho) e diferidos (pensões), bem como aniquilar a representação sindical; iv) ampliar os privilégios de uma classe social em detrimento da maioria da população; v) manter intocada a desregulamentação do mercado financeiro.

Contaminando o Direito com todo esse contexto,6 o que se observa? Uma inequívoca proposta de mudança de paradigma.

O Direito, tomado como fenômeno cultural, não está imune ao entorno. Ao contrário, é fruto dele.

Didaticamente, a doutrina do Direito na moderni-dade costuma apontar dois paradigmas normativos distintos que estão espacial e temporalmente atados aos momentos de seus respectivos desenvolvimentos. O paradigma do Direito Liberal ou Privado Clássico7 – reflexo da proeminência das relações da economia liberal no seio da sociedade burguesa europeia, em detrimento de outras relações étnicas, de gênero, filosóficas, afetivas e culturais que havia no primeiro período da modernidade – e o paradigma do Direito Social8, que se desenvolve a partir do final do século XIX e início do século XX, e tem como primeiros grandes marcos normativos as Constituições Mexicana de 1917 e de Weimer de 1919, as quais, pela primeira vez, constitucionalizam direitos ditos sociais, como o direito ao trabalho e à seguridade social, e que, adiante são ampliados, especialmente em seguida à segunda guerra mundial, com a normatização de um Direito Internacional dos Direitos Humanos, que emerge como resposta aos horrores da guerra e parte de um grande pacto – desde os países do norte9 – entre capital e trabalho.

Normas como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, e, especialmente, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (PIDCP) e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC), denunciam, no período da guerra-fria, uma polarização dos Direitos Civis e Políticos, marcadamente individuais, de um lado, e os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, isto é, direitos coleti-

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vos, de outro. Aqueles exigíveis – como buscou afirmar a doutrina hegemônica dos países ocidentais do norte10 – e estes – segundo esta doutrina – programáticos e condicionados à existência de recursos para a realização por parte do Estado11.

No Brasil do capitalismo hipertardio, dependente e colonial12, ambos os modelos se fizeram presentes em alguma medida, muito embora seja evidente a predominância das regras liberais em detrimento da garantia e promoção dos direitos sociais.

Não nos esqueçamos, todavia, que nos longos anos da ditadura civil e militar que iniciou com o golpe de 1964, nem sequer os direitos civis e políticos serviram para proteger os cidadãos da odiosa violência do Estado13.

A Constituição Federal de 1988, por sua vez, consagrou no ordenamento jurídico brasileiro um catálogo aberto de Direitos Civis e Políticos e Direitos Econômicos, Sociais e Culturais como Direitos Humanos, como se infere, exemplificativamente, de regras consagradas no Título I, Capítulos I e II, de seu texto.

Durante a década de 1990, todavia, período de grande influência da racionalidade neoliberal14, um novo paradigma jurídico que se consolidava na Europa desembarca em terras brasileiras15.

A técnica jurídica da desregulamentação, que, como bem pondera Maria José Fariñas Dulce, marca um paradigma de crise do Direito Estatal, chega ao país. Ao tratar da desregulamentação e o Direito, afirma a professora espanhola:

(...) En las últimas décadas estamos asistiendo a un paulatino proceso de desregulación, que está plan-teando retos importantes al Estado de Derecho moderno y a su monopolio de producción jurídica. Durante mucho tiempo el sistema jurídico estatal ha sido el medio por excelencia de garantizar la regulación de la sociedad, con la consiguiente inflación legislativa en muchos casos. En las últimas décadas se están desarrollando, junto a/o em sustitución de las formas tradicionales de la regulación jurídica, un incremento de formas de regulación que no son las del derecho estatal. Esta es una manera de desregulación, siempre y cuando entendamos por tal el hecho de no regular a través del derecho estatal ciertas relaciones sociales anteriormente reguladas. La actual desregulación es, por lo tanto, anti-pública y, como veremos, antidemocrática. (...) 16

Essa técnica não significa falta de regulação ou mera revogação de normas jurídicas existentes. Vai muito além. Em áreas sensíveis como o mercado financeiro, os meios de comunicação, o mundo do trabalho e a política, a

(...) desregulación ha consistido, básicamente, en la supresión de mecanismos jurídicos de control, seguida de procesos de privatización de servicios públicos y espacios sociales. (...) e (...) Cada una de estas desregulaciones por separado, y todas ellas juntas están produciendo una anomia en la protección jurídica de los derechos humanos constitucionalmente reconocidos, así como una desregulación del estatus de ciudadanía. (...)17

No Brasil, no mundo do trabalho particularmente, foram muitos os processos de desregulamentação levados a cabo durante a década perdida18.

A terceirização, o trabalho a tempo parcial, o banco de horas, a adoção de jornadas para além do limite le-

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gal, como, por exemplo, as jornadas de 12x36, os contratos precários de trabalho temporário, a proliferação de contratos fraudulentos de estágio, a “pejotização”, entre outras formas de precarização e ampliação da mais valia por parte dos empresários brasileiros, emergem por vias de reformas legislativas precarizantes, construções jurisprudenciais de...

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