O direito processual civil e do trabalho no estado democrático brasileiro: compromisso processual com a efetividade da constituição cidadã

AutorLuciana Cristina de Souza
Páginas9-13

Page 9

1. Introdução

A reflexão aqui apresentada traz como ponto focal a análise dos potenciais conflitos hermenêuticos entre a aplicação do Novo Código de Processo Civil (Lei
n. 13.105, de 16 de março de 2015) e o Processo do Trabalho, sob a vertente do Direito Constitucional. Defende-se que a relação entre esses dois ramos do Direito deve ser mediada pela aplicação das normas de validade constitucional das legislações, mas sob uma perspectiva mais extensa do que a tradicional. Parte-se da premissa apresentada por Rosenfeld de que a identidade constitucional de uma sociedade contempla não somente a igual-dade, mas também as diferenças ali presentes e de que, diante disso, é necessário uma “constituição transversal” (JACOBSON apud ROSENFELD, 1994, p. 10-11). E o objetivo primaz dessa Constituição é efetivar os direitos nela inscritos e que conferem aos seus indivíduos a condição de cidadãos.

Considera-se que, uma vez que as normas jurídicas são instrumentos de efetivação de direitos fundamentais pelos quais a cidadania se exerce, toda ação estatal e legislativa no sentido de diminuir ou dificultar o acesso a esses direitos deve resultar na declaração de inconstitucionalidade da norma que originou o ato impeditivo da efetividade do direito prejudicado. Assim, a transformação da área processual civil, que impactou fortemente nas Justiças Especiais, tem por finalidade aperfeiçoar o modo pelo qual se garante a cidadania, concretizando direitos fundamentais e assegurando princípios constitucionais processuais como o contraditório e a ampla defesa. Desse compromisso, entre processo e texto magno, infere-se que seria possível arguir a inconstitucionalidade, pela via incidental, de toda norma cuja aplicação prejudicasse a efetivação da identidade constitucional brasileira.

Isso é possível porque a inconstitucionalidade das normas interfere no grau de obediência que alcançarão no ordenamento jurídico pátrio e, também, no modo como tornam concretos direitos, ab initio, meramente abstratos, mas fulcrais para a efetividade da cidadania. Pode-se afirmar que: “A inconstitucionalidade, como categoria dogmática, é um fenômeno relacionado ao reconhecimento da Constituição como norma dotada de supremacia e imperatividade.” (PEREIRA; GONÇALVES, 2015, p. 131). É uma relação lógica entre o “objeto controlado” (tradicionalmente uma norma jurídica ou omissão normativa) e o “parâmetro de referência” (o sistema normativo constitucional), que justifica invalidar-se o primeiro em decorrência de sua desarmonia para com a norma fundamental. Assim, apontar a inconstitucionalidade dogmática de uma norma infraconstitucional é indicar sua falha quanto à técnica legislativa usada em sua elaboração ou quanto às matérias por ela tratada, que não seriam de sua competência, por exemplo.

No entanto, para garantir a qualidade do regime democrático brasileiro e a nossa identidade constitucional, é preciso apurar a existência de inconstitucionalidade para além da mera verificação sobre o caráter formal e material das normas inferiores à Constituição. Nesse segundo caso, mais do que aferir-se a pertinência da forma e do conteúdo infraconstitucional em relação à Carta Magna, faz-se mister verificar a efetividade do processo de densificação constitucional que a legislação infraconstitucional deveria comprometer-se em promover junto à realidade, como propõe Härbele (2002, p. 13). Logo, sob esse prisma, uma norma poderá, igualmente, ser considerada inconstitucional quando for legislada de tal modo que dificulte a concreção de direitos fundamentais inscritos no texto da Constituição vigente, pois sua existência no ordenamento jurídico inviabilizaria o cumprimento de prerrogativas basilares para o exercício da cidadania no Brasil.

Assim, a democracia depende do respeito a estas premissas apontadas por Härbele, bem como por Pereira e Gonçalves: a) a inconstitucionalidade deve ser também aferida no aspecto da efetividade das normas, o que se traduz no cumprimento e adequação das políticas públicas

Page 10

de concreção de direitos fundamentais; b) o Estado deve estar atento às demandas dos atores sociais para que o cumprimento dos direitos prescritos na Constituição seja promovido pelos seu aparato institucional. Como explica Procopiuck, o Estado Democrático de Direito, na atuali-dade, deve ater-se à multiplicidade de agentes envolvidos no debate sobre direitos e sobre políticas públicas e, para tanto, deve ressignificar o que é governança, inclusive.

Surgem, hoje, novos termos para essa relação entre Estado e Sociedade civil: “governança multinível, governança multicamada, governança policêntrica... entre outros” (PROCOPIUCK, 2013, p. 182). Como recordam Coutinho e Morais (2016, p. 179), o amplo e longo processo histórico que se desenvolveu nos últimos decênios teve por finalidade principal empoderar cidadãos e promover a sua participação na tomada de decisões do Estado. Após a promulgação da Constituição Cidadã, portanto, não se pode considerar legítima nenhuma política pública ou legislação que não tenha por objetivo fulcral a defesa dessa participação e dos direitos fundamentais constitucionalmente assegurados às pessoas.

Portanto, para diagnosticar uma norma infraconstitucional como ofensiva ao texto magno é essencial identificar sua regularidade em três aspectos, e não apenas dois, como tradicionalmente se faz, a saber, aspecto formal, aspecto material e aspecto da efetividade, o qual se mede pelo alcance e pelos resultados das políticas públicas de implementação de direitos fundamentais. Por exemplo, quando o Poder Público diz defender política trabalhista de qualidade para os cidadãos, mas diminui investimentos de infraestrutura para a Justiça do Trabalho, isso evidencia uma inconstitucionalidade da norma inferior que, por sua aplicação junto à realidade, inviabiliza o acesso a direitos fundamentais laborais, ainda que tenha sido elaborada sob os requisitos técnico-formais exigidos e seu conteúdo se atenha à matéria de sua competência. Não pode o legislador infraconstitucional reduzir ou prejudicar prerrogativas asseguradas pela...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT