A unificação do direito privado e as relações entre o código de defesa do consumidor e o código civil

AutorAntonia Espíndola Longoni Klee
Páginas175-193

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1. Introdução

Para se ter uma idéia a respeito da unificação do direito privado no Brasil e a influência que este fenômeno tem sobre as relações entre o Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil, optei por dividir o trabalho em duas partes. Na primeira parte (item 2) exponho a influência de Augusto Teixeira de Freitas no Direito Brasileiro e os aspectos históricos da tentativa de unificação do direito privado no Brasil. Na segunda parte (item 3) apresento a unificação do direito das obrigações no Brasil, com a entrada em vigor do Código Civil de 2002, e as relações deste diploma legal com o Código de Defesa do Consumidor.

O tema da unificação do direito das obrigações no Brasil é o resultado do desenvolvimento social, cultural e jurídico que ocorreu no Direito Brasileiro desde a recepção do Direito Romano em Portugal (1); passando pelos antecedentes do Código Civil de 1916 e o papel de Augusto

Teixeira de Freitas na codificação (2); pela adoção da Parte Geral do Código Civil e sua função sistematizadora do direito privado (3); pelas idéias norteadoras do Código Civil de 1916 (4); e, finalmente, culminando com a edição do Código Civil de 2002 e as alterações em relação às matizes do Código de 1916(5).

Devido à demora na aprovação do atual Código Civil, viu-se na promulgação da nova Constituição (1988) uma oportunidade para "modernizar" o Direito pátrio, inserindo na Carta os novos ideais com relação à família (por exemplo, a igualdade da mulher com relação ao homem e a consagração do instituto da união estável), à propriedade (por exemplo, o princípio da função social) e ao contrato (por exemplo, a determinação de se elaborar um Código de Defesa do Consumidor, para regular as relações entre sujeitos desiguais).

Depois da elaboração, aprovação e entrada em vigor do Código de Defesa do

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Consumidor, trazendo em seu bojo uma nova forma de pensar os sujeitos de uma relação jurídica em que um é hipossufi-ciente em relação ao outro (consumidor e fornecedor) e, por isso, deve ser tratado de uma forma diferenciada, houve uma verdadeira alteração da doutrina e da jurisprudência brasileiras.

Mais tarde, com aprovação e a entrada em vigor do atual Código Civil, em 2003 -12 anos depois de vigente o Código de Defesa do Consumidor -, houve a necessidade de se estabelecer um "diálogo" entre os dois sistemas: o macrossistema de direito civil e o microssistema de direito do consumidor, porque este trouxe muitas inovações àquele, como a aplicação do princípio da boa-fé objetiva nos contratos.

Mesmo que tenha havido a unificação do direito das obrigações no Brasil, não se pode negar que o direito comercial continua sendo disciplina autônoma, pois diferente histórica e substancialmente do direito civil. No aspecto formal, entretanto, atualmente ambos estão regulados por um mesmo sistema codificado, que é o Código Civil brasileiro de 2002.

2. Evolução histórica da tentativa de unificação do direito privado no Brasil

Foram muitas as tentativas de unificação do direito privado no Brasil, a pioneira iniciada pelo jurisconsulto Augusto Teixeira de Freitas, através de seus estudos para a preparação da Consolidação das Leis Civis, que deu origem ao que chamou de Esboço do Código Civil, no qual propunha a unificação das obrigações civis e comercias. Freitas faleceu sem ver sua vontade concretizada, como adiante se verá.

2. 1 O papel de Augusto Teixeira de Freitas para a unificação do direito privado no Brasil

Afirma Antônio Chaves: "A grande variedade das leis herdadas desde os tem-pos da Colônia, a vigência das Ordenações que já haviam sido revogadas em Portugal, os difíceis conhecimento e interpretação deste conglomerado de normas, em que os próprios profissionais encontravam embaraços, deixaram desde logo patente a necessidade de um Código Civil que espancasse as dúvidas e servisse de orientação segura ao aplicador da lei".1

Foi por isso que, em 1855, Freitas foi contratado pelo Governo Imperial para organizar um novo Código Civil. Esse estudioso foi muito influenciado pelas idéias de sua época, que aprendeu por meio da leitura dos pensadores europeus do Direito, principalmente Savigny.2 A concepção de totalidade3 é tipicamente oitocentista, consagrada pelo Código Civil francês de 1804. Quando propôs a elaboração de um Código Geral de Direito Privado e um Código Civil, subjacente estava a idéia de completude do ordenamento,4 para evitar uma "calamitosa duplicação de leis civis".5 Além disso, é do estudo do Código de Na-

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poleão que resultaram as célebres idéias de Freitas, quais sejam, a da necessária inclusão, num código, de uma parte geral e a da unificação das obrigações civis e comerciais.6 O Código Civil de 1916 já continha uma Parte Geral, mas a unificação do direito obrigacional só se operou com o Código Civil de 2002.

Freitas considerava que "um Código Civil não seria suficiente para resolver o problema de uma perfeita estruturação da nossa legislação civil".7 Por isso, propôs uma modificação no plano inicial: em vez de um só Código, seriam elaborados dois, um geral e outro especial, ao mesmo tempo em que propunha a unificação de todas as disposições do direito privado - idéia precursora de importância fundamental para o Direito Brasileiro, uma vez que almejava a unificação substancial ou jurídica de dois ramos do Direito, o civil e o comercial.

Freitas pretendia unificar o direito privado no Código Civil, trazendo, no código unificado, preceitos do direito comercial referentes aos contratos em geral.8 Ademais, dizia que estariam presentes "no Código Geral as leis que ensinam, no Código Civil as leis que mandam; o Código Geral para os homens da ciência, o Código Civil para o povo".9 Assim, o Código Geral conteria todas as noções preliminares que serviriam para a interpretação de quaisquer leis; e no Código Civil unificar-se-iam as regras de direito civil e de direito comercial.10

Por isso, já se afirmou que o espírito criador de Freitas "encontra particular relevância" nestes dois temas, "quais sejam, o da unificação do direito privado - no qual a questão da unidade sistemática da matéria privada é levada às últimas conseqüências - e do caráter da Parte Geral, que virá a reformular".11

"A unificação do direito privado ocorreu-lhe quase ao término da elaboração do Esboço, tendo, por ela, se desinteressado da conclusão do Projeto de Código Civil."12 Como relata Martins-Costa: "(...)

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sistematizar a matéria civil separadamente da comercial repugnava-o, porque detinha uma concepção abrangente de sistema jurídico internamente considerado, que o conduziu, pioneiramente, a pôr a nu a arbitrariedade da divisão entre o direito civil e o comercial".13

Foi então que, em 1867, propôs a unificação do direito privado.

"Isso significaria a modificação profunda de tudo quanto se pensara àquele tempo sobre a legislação do direito privado. O Conselho de Estado, formado por três jurisconsultos de peso no cenário nacional de então, Nabuco de Araújo, Mon-tezuma e Torres Homem, aprovou o plano, mas o Ministério da Justiça, à época a cargo de José de Alencar, não aceitou a proposta, por achar fruto prematuro."14

Entretanto, Meira afirma que não se tratava de fruto prematuro, "porquanto o tema vinha sendo objeto de estudos na Europa, especialmente na França e Alemanha. Já era preocupação constante dos jurisconsultos europeus a unificação do direito privado, a bipartição do civil e do comercial, tanto assim que na Suíça, (...) em 1881, promulgou-se o Código das Obrigações".15

Freitas pensava que: "Não há tipo para a arbitrária separação de leis, a que se dá o nome de direito comercial ou Código Comercial, pois que todos os atos da vida jurídica, excetuados os benéficos, podem ser comerciais ou não-comerciais, isto é, tanto podem ter por fim o lucro pecuniário como outra satisfação da existência".16

Ademais, acreditava que: "O meio de sair de tais embaraços, de sanar tantos inconvenientes, de reparar os erros do passado, de fixar os conhecimentos jurídicos, de estabelecer a unidade da legislação e de estremar os verdadeiros limites da codificação civil só o acharemos na composição de dois códigos (...)".17

A idéia de Freitas era a de que o Código Comercial fundir-se-ia, unificando-se o direito privado. Note-se que essa proposta foi feita em 1867 - antes, portanto, do Código Suíço das Obrigações, como observa Pontes de Miranda.18

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Importante ressaltar, por último, que muito antes do Código Civil de 2002, e com a vigência do Código de 1916, mesmo que Freitas não tivesse concretizado a unificação entre o direito civil e o direito comercial, como almejava, "o Código de 1916 incorporou, em larga medida, a noção de sistema formulada por Teixeira de Freitas".19

2. 2 As demais tentativas de unificação do direito privado no Brasil

Antônio Chaves afirma: "O Direito Romano não estabelecia qualquer distinção entre atos de comércio e atos da vida civil em geral, porque a autoridade do legislador, o poder do juiz, eram suficientes para resolver as ocorrências que aos mesmos atos dissessem respeito, sem necessidade de qualquer discriminação".20

Foi na Idade Média, com o surgimento das corporações comerciais, que passou a se desenvolver o jus mercatorum, com regras especiais para os mercadores, pessoas que desenvolviam a atividade de comércio.21

Para se falar na unificação do direito privado, é preciso citar...

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