O Direito Pessoal ('Moral') de Autor nas Obras Criadas em Execução de Contrato de Trabalho ou de Prestação de Serviços em Portugal e no Brasil

AutorFlaviana Rampazzo Soares
Ocupação do AutorCoordenadora
Páginas13-28

Page 13

1. Em geral (I) - titularidade, características e exercício das faculdades pessoais de autor

I – O direito de autor é um exclusivo de exploração econô-mica da obra intelectual que serve também à preservação da sua genuinidade e integridade. Este direito pertence ao criador intelectual da obra e pode ser atribuído, por convenção, a quem encomenda a obra. Pode constituir-se, originariamente, na titularidade de uma empresa, pessoa singular ou coletiva, no caso das obras coletivas.

A outorga deste exclusivo implica que o autor possa excluir todos os demais da exploração econômica da obra. E apenas do aproveitamento econômico, não da fruição intelectual da obra, já que esta é espiritualmente universal, de todos.

II – Nos termos do art. 9º/1 e/3 CDA(P)1, a par das faculdades de utilização patrimonial da obra ligadas à sua exploração econômica, o autor “goza de direitos morais”. Dá-lhe esta mesma designação a lei de autor brasileira.2Escrevemos já sobre as razões pelas quais achamos preferível a designação direitos pessoais para nomear o conjunto dessas faculdades3. Preferimo-la, não obstante a terminologia da lei, já que a expressão “direitos morais” não só nada diz que elucide sobre a natureza dessas faculdades, como deixa supor – erroneamente – a existência de direitos “não morais” ou a inserção dos direitos pessoais de autor numa ordem de valores extra-jurídica (moral), o que equivoca sobre a realidade.

Não nos parece também útil a caracterização dos direitos pessoais como direitos de personalidade. Os direitos de personalidade – pelo menos os direitos de personalidade inatos (vida, integridade física, honra) – constituem-se com o nascimento do seu titular, os direitos pessoais de autor só se constituem com a criação da obra. Os direitos de personalidade extinguem-se por morte do titular, os direitos pessoais de autor perpetuam-se post mortem auctoris, podendo ser exercidos pelos seus sucessores. Os direitos de personalidade existem com a pessoa e por causa desta, os direitos pessoais de autor existem com a obra e apenas por causa dessa.4III – O direito pessoal de autor, dito de conteúdo ético, está ligado à preservação da genuinidade e integridade da obra e afirma dois axiomas:

Page 14

  1. o autor é dono e senhor originário do destino da sua obra no comércio jurídico – enquanto tal, decide soberanamente se e quando a sua obra é divulgada e o modo da sua divulgação; pode também interromper a circulação da obra, invocando razões pessoais ponderosas; exerce, com este conteúdo, os direitos ou faculdades de divulgação ou ao inédito e de retirada;

  2. por outro lado, o autor tem o direito de ser conhecido e reconhecido como tal e de preservar a obra tal como a exteriorizou, aceitando ou não as modificações que lhe proponham e realizando as que entender; exerce, com este conteúdo e em relação à obra, os direitos de menção da designação de autoria, de reconhecimento da paternidade, de defesa da integridade, de modificação e de acesso ao exemplar.

Os direitos pessoais de autor podem dizer-se instrumentais da exploração econômica da obra: o criador intelectual, ao defender a integridade da obra, ao reivindicar a sua paternidade e, mais obviamente, ao decidir a divulgação se, quando e pelo modo que entender, bem como ao retirá-la de circulação, está também a garantir que as utilizações patrimoniais da sua obra são conformes ao que dela e para ela idealizou.

Isto é particularmente nítido nas obras criadas por contrato (no âmbito de dever funcional ou em execução de contrato de trabalho ou em cumprimento de contrato de prestação de serviço). Nestas (art. 15 CDA(P)): se for voluntariamente atribuído o direito de autor ao comitente (ao que encomenda a obra) as utilizações consentidas ao autor não podem “prejudicar a obtenção dos fins para que foi produzida”; se o direito permanecer na titularidade do criador intelectual, a obra “apenas pode ser utilizada para os fins previstos na convenção”.5

2. Em geral (II) - a criação de obras em execução de contrato de trabalho ou de prestação de serviços
2.1. Liberdade criativa e subordinação jurídica – uma contradição?

I – Na criação de obra em execução de contrato, não é a “liberdade criativa” que se cerceia, são as condições concretas em que se desenvolve o processo criativo que se preedeterminam. O contrato de trabalho ou de prestação de serviços para criação de obras intelectuais pode concretizar o modo, tempo, lugar e, em geral, as condições materiais em que a obra ou obras devem ser criadas, mas neles não se estipulam mais do que os tipos, características gerais e finalidades de utilização das obras a criar. A expressão formal criativa, aquilo que individualiza cada obra como criação de uma pessoa determinada, deve ser deixada à liberdade criativa de cada autor contratado.

II – O empregador define as condições concretas (objeto, tempo, local) em que a atividade criadora se realiza. Ao dirigir a atividade laboral, determina a função e conforma o conteúdo da prestação; deve identificar, o mais que seja possível considerando a autonomia criativa do trabalhador, o gênero e características das obras a criar. Mais, preedetermina os fins a cuja realização a prestação laboral deve subordinar-se e, ao fazê-lo, deixa conhecer os fins de utilização patrimonial das obras a criar em cumprimento do contrato.

2.2. A relevância da fixação dos fins de utilização consentida das obras criadas em execução de contrato

I – A determinação dos fins de utilização das obras intelectuais criadas em cumprimento de um contrato de trabalho ou de prestação de serviços é essencial para fixar as utilizações consentidas das obras criadas com esse enquadramento.

Idealmente, empregador e trabalhador criativo convencionariam os fins de utilização das obras a criar; estes também poderiam deduzir-se dos fins da própria organização/empresa do empregador, a quem o trabalhador criativo está vinculado.

A concessão de uma ou mais faculdades de utilização patrimonial de obras intelectuais é uma atribuição finalista de direitos, como, aliás, toda a atribuição patrimonial jusautoral.6Por esta via, apenas se outorgam os poderes expressamente designados no ato de licenciamento/autorização de utilização ou, na falta de designação, estritamente os que se mostrem necessários à prossecução dos fins da atribuição.78Os fins da atribuição podem ser expressamente enunciados no ato de concessão ou deduzir-se, por exemplo, dos fins da organização para a qual a obra é criada.

Page 15

A concessão de faculdades (de)limitada pelo fim da atribuição não é mais do que uma regra interpretativa, a aplicar quando subsistam dúvidas sobre o âmbito dos direitos concedidos. Cede sempre que o âmbito (objeto) da atribuição esteja expressamente enunciado ou resulte inequívoco do ato.

A determinação dos fins de utilização patrimonial consentida à obra ou obras criadas em execução de contrato, como o de trabalho (ou o de prestação de serviços), limita o aproveitamento econômico que possa ser feito das mesmas. O seu criador, ainda que permaneça titular do direito de autor sobre as suas criações, não pode utilizá-las para fins diferentes dos convencionados no contrato (art. 15/1 CDA(P)), o mesmo sucedendo com o empregador.9II – A lei refere os “fins previstos na convenção” sem indicar qual esta seja. Deve entender-se que se trata daquela em que está estipulada a atribuição do direito de autor sobre as obras assim criadas. Convenção esta, que, como veremos, assoma como autônoma, específica, no contrato de trabalho.

Na falta de convenção, não pode, em qualquer caso, o trabalhador-criador fazer da obra ou obras criadas em cumprimento do contrato utilização que prejudique os “fins para que foi produzida” (art. 15/3 CDA(P)): os da exploração econômica da mesma segundo os fins para que foi criada e que são, como...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT