O direito penal do inimigo e o estado democrático de direito

AutorBernardo Feijoo Sánchez
CargoProfessor Titular da Universidade Autônoma de Madri
Páginas100-134

Traduzido por: Julio Pinheiro Faro Homem de Siqueira* e Igor Rodrigues Brito**

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Introdução

O denominado direito penal do inimigo expôs uma questão que tem preocupado bastante todos os grandes teóricos do surgimento do Estado moderno: que fazer com aqueles que não aceitam ser cidadãos e não se submetem à soberania do Estado? Formulado nos termos da teoria do contrato social, que acontece com aqueles que não se submetem ao contrato social (expressa ou tacitamente) e que, por isso, não se vêem submetidos ao resultado de acordos sociais mais importantes, de modo a ficar à margem de regras sociais essenciais? Se na atualidade os cientistas do direito penal têm posto tais tipos de questões é por uma singela razão: um dos teóricos mais influentes atualmene do direito penal do inimigo, Guenther Jakobs, está dedicando, no final de sua vida acadêmica, um grande esforço intelectual para que uma profunda distinção entre cidadãos e inimigos estruture o direito penal moderno. É evidente que Jakobs não coloca a questão em termos individual-contratualistas acerca de existirem sujeitos que não querem assumir o papel de cidadãos1, e sim parte da idéia de que se trata de uma definição do sistema jurídico. É este que decide quais características mínimas têm de reunir os sujeitos para que possam ser considerados cidadãos, de maneira que quem não cumprir tais requisitos mínimos não pode ser tratado como cidadão, senão como inimigo; em termos jakobsianos, o reconhecimento como cidadão por parte do sistema jurídico exige o cumprimento de determinados deveres ou obrigações irrenunciáveis: quem não cumpre esse mínimo não pode ser tratado como cidadão. Apesar do que dizem algumas críticas simplistas, não se trata de definir todo delinquente como inimigo2, e sim se há pessoas que devem ser excluídas do tratamento normal dispensado pelo Estado aos seus cidadãos, com os respectivos princípios e garantias3. Esse projeto teórico de grande envergadura que parte da distinção entre um direito penal de cidadãos e um direito penal de inimigos obriga indubitavelmente os penalistas a se posicionarem a favor ou contra como todos os anos os teóricos do direito penal fazem quando se vêem compelidos a falar sobre a posição do dolo dentro da teoria jurídica do delito. Se existe um livro coletivo como este4 é devido única e exclusivamente à elaboração de Jakobs de um direito penal do inimigo.

O estado da questão é que, com exceção de alguns de seus discípulos, a doutrina tem se posicionado radicalmente contra o desenvolvimento de um direito penal do inimigo, do modo visualizado por Jakobs e, inclusive, se pode perceber uma generalizada e apaixonada posição de beligerância contra as perigosas consequências que para o Estado democrático de direito pode acarretar esse projetoPage 102 teórico do autor alemão5 (e não apenas nos habituais encontros de penalistas). Este livro será seguramente uma magnífica prova dessa situação.

Para participar com rigor neste debate doutrinário é preciso esclarecer primeiro o conceito e os fundamentos do direito penal do inimigo, a qual, como se verá, não é uma tarefa fácil já que o que se deve primeiro dizer tange um conceito ambíguo com pluralidade de significados. Uma vez esclarecida essa questão, apresentarei meu posicionamento: o direito penal do inimigo tal como o concebeu Jakobs vai de encontro às bases de nosso Estado democrático de direito6. É redondamente rechassável a idéia de que todo aquele que é definido pelo sistema jurídico como inimigo seja automaticamente excluído do âmbito das pessoas, isto é, fique juridicamente desprotegido, sem direito, liberdades fundamentais e garantias de um cidadão. Não compartilho, portanto, da idéia essencial de Jakobs de que um direito penal do inimigo claramente delimitado é melhor para o Estado de direito do que mesclar todo o direito penal com fragmentos de regulamentações próprias do direito penal do inimigo7. Essa idéia é a que sustenta seu argumento principal de que manter um direito penal do inimigo é a melhor maneira de conservar um direito penal de cidadãos. Em minha opinião, a melhor forma de evitar que se filtre um direito penal do inimigo difuso é combater genericamente a existência normativa de inimigos enquanto não nos encontrarmos em tempos de guerra e a denunciar entretanto as diversas manifestações no direito positivo do direito penal para inimigos8.

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Todavia, apesar desse ponto de partida, a oposição frontal e sem matizes também não é acertada. A proposta de Jakobs é tão ampla que em seu interior é possível identificar várias questões ou temas que não têm sido tratados adequadamente pela doutrina e que é um mérito especial da construção desse autor as ter posto sobre a mesa como objeto de discussão científica (mesmo que já sejam objeto de discussão em outros âmbitos). Uma vez ventiladas tais questões já não se pode esconder a cabeça embaixo da terra como o fazem os avestruzes ou desviar os olhos. São provocações que, antes ou depois da ciência do direito do século XXI, aqueles têm de enfrentar. Teremos, pois, que analizar o que pode ocasionar por fim – apesar do rechaço – a idéia do direito penal do inimigo. Por outro lado, se dogmaticamente podemos definir as características do que podemos denominar direito penal do inimigo e identificá-lo, isto por nos ser útil para deslegitimar algumas partes do ordenamento vigente; de se dizer, trata-se de um instrumento para separar os modelos legítimos dos modelos ilegítimos de direito penal9 (não mais difundido que as referências ao direito penal simbólico ou ao direito penal do risco).

1. Um ponto de partida necessário: os conceitos de direito penal do inimigo e de inimigo

Como ponto de parte da análise crítica da construção de Jakobs pode-se afirmar que não está claro o limite entre o direito penal do cidadão e o direito penal do inimigo ou entre cidadãos e inimigos10, especialmente de uma perspectiva prática ou de aplicação judicial de tal distinção. Esta não pretende ser uma observação nova, haja vista que o próprio Jakobs em seus trabalhos sobre essas questões tem reconhecido sem circunlóquios que se trata de uma distinção difícil tanto na teoria quanto na prática. Apesar deste problema genético, à medida que o debate atual tem sua fonte na construção deste autor é preciso expor os elementos essenciais da definição de dois conceitos estreitamente vinculados: o direito penal do inimigo e o de inimigo.

Segundo Jakobs, as características do direito penal do inimigo seriam as seguintes: 1) ampla melhoria da intervenção do direito penal, em muitos casos com um enriquecimento subjetivo dos tipos; 2) falta de uma redução da pena proporcional à referida melhoria; 3) supressão de garantias processuais. Tratar-se-ia do modelo de um ordenamento jurídico-penal próprio de um Estado preventivo que se caracteriza por uma estratégia pró-ativa e não re-ativa na gestão dos riscos sociais. Em termos jakobsianos, com esses tipos de normas não importa manter a configuraçãoPage 104 normativa ou a vigência do ordenamento jurídico, e sim melhorar a prevenção dos delitos.

Em relação ao conceito de inimigo, Jakobs11 fundamenta este status de inimigo do seguinte modo: “aquele que pretende ser tratado como pessoa deve dar em troca uma garantia cognitiva de que vai se comportar como pessoa. Se não existir essa garantia ou se ela for expressamente negada, o direito penal passa a ser uma reação da sociedade ante o ato de um de seus membros para ser uma reação contra um inimigo. Isso há de implicar que tudo está permitido, a incluir uma ação desmedida; ou melhor, é possível que ao inimigo seja reconhecida uma personalidade potencial, de tal modo que na luta contra ele não se pode ir além do necessário”. De acordo com essa idéia só pode ser tratado pelo Estado como pessoa aquele que oferece certa segurança cognitiva de que irá se comportar de acordo com o direito. “A situação existente em relação à pessoa no direito é a mesma que a da vigência do ordenamento jurídico, que a do Estado enquanto conjunto de um ordenamento jurídico, em geral, que a de qualquer pessoa antes (e não apenas em) do direito: para concordar com a realidade, para oferecer orientação, a situação normativa precisa de um apoio cognitivo12”. O inimigo, segundo Jakobs, “é um indivíduo que, não só de maneira incidental em seu comportamento [...] ou em sua ocupação profissional [delinquência econômica, deliquência organizada e especialmente, tráfico de drogas (...)], isto é, que em qualquer caso, de forma presumidamente duradoura abandonou o direito13” Os inimigos são, em definitivo, autores suscetíveis de culpabilidade que geram insegurança.

2. A perspectiva metodológica: mera descrição ou legitimação

É evidente que a descrição que Jakobs oferece acerca do direito penal do inimigo corresponde com a evolução do direito penal moderno e com determinadas tendências das últimas reformas do direito penal, não apenas na Espanha como nos países vizinhos14. Jakbos descreve adequadamente parte do novo panorama emPage 105 que nos encontramos muitas das vezes. Como já assinalou Silva Sánchez15, “constatada a existência real de um direito penal de tais características – sobre o que não se pode estabelecer dúvida alguma – a discussão fundamental versa sobre a legitimidade do mesmo”, já que “à vista de tal tendência [...] o círculo do...

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