O direito natural na práxis dos canonistas

AutorJavier Hervada
CargoProfessor de Direito Canônico da Universidade de Navarra, Espanha
Páginas7-15

    Artigo publicado originalmente em español sob o título: El derecho natural en la praxis de los canonistas. Traduzido com a gentil permissão do autor.

Tradução Adam Kowalik

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O melhor modo de expor a práxis dos canonistas sobre o direito natural é evocar a posição que o direito natural ocupava no direito romano e no direito europeu, após a Recepção até a aparição do positivismo jurídico no início do século XIX. Neste sentido, a práxis canônica representa a continuação da tradição clássica. Não é de se estranhar, por ter vindo de longe, a influência – por muitos motivos, perniciosa para a teoria do direito natural – do chamado iusnaturalismo moderno, como as profundas mudanças introduzidas pela filosofia kantiana na dita teoria e a rápida expansão do positivismo jurídico.

Em nenhum momento, a existência do direito natural e sua influência no ordenamento jurídico foram objetos de dúvida ou objeções. Isto foi, sem dúvida, fruto da fidelidade ao pensamento católico, do qual forma parte a existência da lei natural. Detenhamos-nos brevemente neste ponto.

A existência da lei natural não é, portanto, uma verdade que faz parte dos mistérios do cristianismo. Constitui uma verdade natural, conhecida pela razão natural. Recordemos que a idéia do justo natural surge com o nascimento do pensamento filosófico na Grécia. Os sofistas expuseram – embora duvidosamente aceitável – a distinção entre physis e nómos, entre o justo natural e o justo positivo, a qual foi difundida por Aristóteles de tal modo que este foi chamado, não sem razão, o pai do direito natural. Também a lei natural foi peça precursora da teoria moral dos estóicos – que cobrem quinhentos anos da história da filosofia –, e de autores por eles influenciados, como Cícero. E é bem notório que o direito natural teve um papel de primordial importância no direito romano, que deve ao iusnaturalismo boa parte de sua perfeição e harmonia.

Entretanto, é verdade que a lei natural compõe o ideário do cristianismo ou, em termos mais precisos, faz parte do depósito revelado. É num muito conhecido texto do Novo Testamento, Rom 2, 14-16, que aparece a lei natural como lei divina gravada por Deus no coração humano, da qual a consciência dá testemunho. Esta lei natural é projeto divino para a vida moral do homem, mas é também projeto divino para a sociedade humana. Graças à passagem paulina, a teoria da lei natural alcançou a Patrística e, através dela, o magistério eclesiástico, constituindo uma peça fundamental do pensamento social católico.

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Sendo assim, é lógico que a legislação canônica aceite plenamente o direito natural, e que a canonística, desde que nascera com Graciano, tenha assumido uma teoria e uma prática do direito, que se fundamente nas teses iusnaturalistas.

Neste ponto, parece-me que é o momento de expor a concepção canonista do direito natural. Facilmente pode-se advertir que não se trata de nenhuma teoria original, mas sim da concepção clássica da tradição jurídica, aquela que começou em Roma, foi recebida pela ciência jurídica medieval e se prolongou até o início do positivismo, entre o fim do século XVIII e o início do século XIX. Portanto, expor a concepção canonista do direito natural não é expor uma concepção original e singular, senão o que foi a comum tradição da ciência jurídica até o advento do positivismo jurídico. Não é, pois, uma experiência jurídica alheia à ciência jurídica secular, senão a sobrevivência, depois de quase dois séculos de positivismo, da melhor tradição jurídica européia.

Para compreendê-la, é preciso lembrar que a teoria do direito natural teve dois modos de transmissão: a tradição filosófica e a tradição jurídica. Até a Codificação do século XIX, a tradição jurídica se transmitiu através dos comentários sobre as primeiras passagens do Digesto, incluído no Corpus Iuris Civilis, e sobre a primeira distinção do Decreto de Graciano, componente do Corpus Iuris Canonici. Uma das características da tradição jurídica foi ser escassamente sensível às disquisições filosóficas, que pouco influíram nessa tradição. Tão-somente a elaboração aristótelico-tomista, que é um reflexo da tradição jurídica, teve influxo nos canonistas, apartadamente no século XVII, e mais perceptivelmente a partir do século XIX, com não escassa influência também de Suárez. Não são, pois, os filósofos que vamos analisar aqui, e sim uma construção de juristas.

  1. A primeira afirmação fundamental da tradição clássica pode estabelecer-se deste modo: o direito natural é verdadeiro direito. Com isso, não só quer dizer que existe o direito natural, mas que também é incontestável que possui natureza especificamente jurídica. Esta afirmativa requer explicação, para manifestar seu sentido.

    O direito natural, a partir do positivismo, enfrentou-se com duas classes de negação. De um lado, a negação da mesma existência de uma ordem moral ou jurídica natural ou de qualquer outro elemento natural que, de uma forma ou de outra, limite ou condicione o direito positivo: é o positivismo extremado. Por outro, a negação do direito natural como uma classe ou tipo de direito vigente, unida à afirmação da existência de algum fator moral, ontológico, axiológico ou gnosiológico condicionador do direito que, em algum sentido, chamou-se de direito natural: é o positivismo moderado, também denominado de objetivismo jurídico. É bem sabido quão múltiplas são as teorias que abrangem o objetivismo jurídico. Nele se podem incluir correntes kantianas e neokantianas que falam do direito natural como forma a priori do direito, como idéia ou ideal em termos formais do direito; a doutrina da natureza das coisas; a jurisprudência de princípios; os traços da estimativa e axiologia jurídicas; e as posturas de muitos outros autores que, de uma forma ou de outra, postulam a existência de fatores que condicionam a interpretação do direito positivo e, por conseguinte, do próprio direito positivo...

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