Direito e Marxismo: e possivel uma emancipacao pelo direito?/Law and Marxism: is it possible an emancipation by law?

AutorCunha, Jose Ricardo
CargoReport

The most fruitful form of power is power over oneself, and democracy means the collective exercise of this capacity. (3) Um ano antes de sua morte, Eric Hobsbawm compilou uma serie de textos seus sobre processos de mudanca social e a relacao de tais processos com o pensamento de Marx. Estes textos foram publicados num livro com o sugestivo nome How to Change the World: Reflections on Marx and Marxism. (4) No mesmo ano de 2011, o critico literario e filosofo Terry Eagleton publica pela Yale Universty Press seu livro com o provocador nome Why Marx Was Right. (5) No primeiro livro, Hobsbawm cita um almoco acontecido na virada do seculo XX para o XXI, onde o especulador George Soros lhe pergunta o que achava de Marx. Hobsbawm, entao, deu uma resposta ambigua para evitar discussao e ouviu de seu interlocutor, Soros, o seguinte comentario: "Esse homem (Marx) descobriu uma coisa com relacao ao capitalismo, ha 150 anos, em que devemos prestar atencao." (6) No segundo livro, Eagleton inicia o prefacio com a seguinte pergunta: "What if all the most familiar objections to Marx's work are mistaken?" (7) Na sequencia o autor vai, capitulo a capitulo, respondendo aos criticos do pensamento marxista e apresentando os equivocos de interpretacao da obra de Marx.

O paragrafo anterior e um breve exemplo de como a obra e o pensamento de Marx continuam nao apenas atuais, mas tendo importancia no debate filosofico e politico contemporaneos. Pode-se discordar de Marx, por obvio, ou ainda reinterpreta-lo e buscar novos horizontes conceituais para seu pensamento, mas, em qualquer caso, e preciso dialogar com ele. Isso vem acontecendo especialmente no ambito da assim chamada ciencia juridica, onde o marxismo parece realimentar uma teoria critica do direito que, embora nao se confine aos tradicionais canones da obra de Marx, tem nessa obra uma importante inspiracao para repensar os temas mais caros da teoria juridica, tais como Estado, cidadania, constituicao, democracia, violencia, forca, soberania, hegemonia, justica, liberdade etc. Isso, e claro, alem de permitir que se revisite com um olhar mais arguto tradicionais institutos do direito positivo, tais como contrato, propriedade, familia, heranca, tributo, empresa, trabalho assalariado, crime, sancao, administracao publica e jurisdicao. Basicamente, nao ha area do direito que nao tenha sido analisada a partir de uma interacao com o legado marxista. (8)

Ora, como afirmou Terry Eagleton (9), nao se trata de incensar a tradicao marxista como se ali nao houvesse erros ou mal-entendidos, mas de reconhecer que, talvez mais do que qualquer outra tradicao, e o movimento de pensamento de base marxiana que gerou o legado mais frutifero quando se tem em mente uma preocupacao com a questao da emancipacao. Claro que esse e um tema caro a todo movimento da ilustracao e mesmo a tradicao liberal. Basta lembrar a famosa afirmacao kantiana ao responder a indagacao acerca do iluminismo: Sapere aude! Tem a coragem de te servires do teu proprio entendimento! Eis a palavra de ordem do Iluminismo. (10) Mas enquanto Kant identifica as tutelas que impedem a autonomia como produto da preguica ou covardia humana ou, ainda, na supersticao, Marx consegue perceber, alem de Kant, as condicoes materiais de vida que sao determinantes na producao de tais tutelas, alem do arcabouco ideologico que perpassa as instituicoes sociais. Kant e um genio, nao se discute. A diferenca entre este e Marx certamente esta no metodo de investigacao, o que produz analises diferentes. Na introducao aos Grundrisse, Marx fala sobre o metodo de pesquisa da economia politica e apresenta as bases metodologicas do materialismo dialetico que trabalha sempre num movimento de concrecao e abstracao. O ponto de partida, enfatiza Marx, e o dado empirico: "Parece ser correto comecarmos pelo real e pelo concreto..." (11) No entanto, alerta que nao se trata de fazer uma representacao caotica e simploria destes dados empiricos. E necessario que sejam formuladas categorias abstratas de analise, que ao serem aplicadas aos dados empiricos da realidade permitam tanto a compreensao da totalidade como, e sobretudo, suas determinacoes e relacoes. O concreto importa para Marx exatamente por ser o campo onde se dao as relacoes reais e, dessa forma, as determinacoes sociais. E ai que o pensamento deve instalar-se para ter uma compreensao verdadeira dos processos de producao da vida humana. Vejamos:

O concreto e concreto porque e a sintese de multiplas determinacoes, portanto, unidade da diversidade. Por essa razao, o concreto aparece no pensamento como processo da sintese, como resultado, nao como ponto de partida, nao obstante seja o ponto de partida efetivo e, em consequencia, tambem o ponto de partida da intuicao e da representacao. (12) Interessa ao pensamento marxiano uma perspectiva de analise que tenha no centro a vida social como ela de fato se desenrola, por isso afirma que "tambem no metodo teorico o sujeito, a sociedade, tem de estar continuamente presente como pressuposto da representacao". (13) Essa forma de pensar, segundo Marx, corresponde ao processo historico efetivo. (14) Por isso o materialismo dialetico e tambem materialismo historico. Ao comentar como Adam Smith trata a atividade criadora do trabalho, oferece o exemplo da atividade laboral nos Estados Unidos da America, para concluir o seguinte:

"Esse exemplo do trabalho mostra com clareza como as proprias categorias mais abstratas, apesar de sua validade para todas as epocas--justamente por causa de sua abstracao--, na determinabilidade dessa propria abstracao, sao igualmente produto de relacoes historicas e tem sua plena validade so para as relacoes no interior delas." (15) A citacao acima mostra a coerencia de Marx que aplica seu metodo ao proprio metodo, revelando que nada escapa a historicidade radical que marca a vida humana. Portanto, a dialetica entre concreto e abstrato, que existe no processo de investigacao marxiano, tanto percebe como revela que a sociedade e os sujeitos nela existentes sao marcados por um movimento de desenvolvimento historico que possui etapas conectadas, embora isso nem sempre se apresente de forma evidente. Em outras palavras, toma a vida social na relacao historica que as partes estabelecem entre si e com o todo, formando uma complexidade concreta. E precisamente isso que intensifica o potencial emancipatorio da tradicao marxista.

Coerente com seu metodo centrado no concreto da vida real, Marx, quando mergulha nas relacoes e determinacoes da vida social, nao encontra os sujeitos idealizados comuns a parte da tradicao filosofica. Antes, encontra pessoas reais inseridas na luta pela propria existencia ou subsistencia. (16) Veja-se, apesar de longa, a citacao:

Pode-se distinguir os homens dos animais pela consciencia, pela religiao ou pelo que se queira. Mas eles mesmos comecam a se distinguir dos animais tao logo comecam a produzir seus meios de vida, passo que e condicionado por sua organizacao corporal. Ao produzir seus meios de vida, os homens produzem, indiretamente, sua propria vida material. O modo pelo qual os homens produzem seus meios de vida depende, antes de tudo, da propria constituicao dos meios de vida ja encontrados e que eles tem de reproduzir. Esse modo de producao nao deve ser considerado meramente sob o aspecto de ser a reproducao da existencia fisica dos individuos. Ele e, muito mais, uma forma determinada de sua atividade, uma forma determinada de exteriorizar sua vida, um determinado modo de vida desses individuos. Tal como os individuos exteriorizam sua vida, assim eles sao. O que eles sao coincide, pois, com sua producao, tanto com o que produzem como tambem com o modo como produzem. O que os individuos sao, portanto, depende das condicoes materiais de sua producao. (17) A ideia de que aquilo que os individuos sao coincide com aquilo que eles produzem e com a maneira como produzem, conduz a investigacao marxiana, inevitavelmente ao dominio economico e ao mundo do trabalho. Marx procura entender as leis que regem o capital e sua relacao com o trabalho, isto e, as leis de troca de mercadorias, materiais ou imateriais. Por isso mesmo um dos aspectos centrais em O Capital e a questao da jornada de trabalho. O trabalho e a encarnacao daquilo que o homem produz e de como ele produz na luta pela sua propria existencia (subsistencia), seja nas condicoes que ele herda seja nas condicoes que ele cria. Nesse sentido, o mundo do trabalho--meio de vida e suas condicoes materiais--e orientado por um antagonismo fulcral entre o capitalista e o trabalhador, que tem no centro a questao da transformacao de dinheiro em capital, o que, segundo Marx, se da na mais rigorosa harmonia com as leis economicas da producao da mercadoria e com o direito de propriedade delas derivado. A partir do estudo desse antagonismo entre capitalista e trabalhador, Marx desenvolve a teoria do valor (trabalho e mais-valia) que afirma que i) o produto do trabalho do trabalhador pertence sempre ao capitalista e nao ao proprio trabalhador; ii) o valor desse produto inclui um mais-valor (mais-valia) que muito embora tenha custado trabalho ao trabalhador e nada ao capitalista, torna-se propriedade do capitalista e nao do trabalhador; e iii) o trabalhador sempre conserva consigo sua forca de trabalho e pode vende-la sempre que encontrar alguem disposto a pagar por ela. (18)

O que a teoria do valor revela e um processo sistematico e brutal de espoliacao do trabalhador. Citando O Capital:

A troca de equivalentes, que aparecia como a operacao original, torceu-se ao ponto de que agora a troca se efetiva apenas na aparencia, pois, em primeiro lugar, a propria parte do capital trocada por forca de trabalho nao e mais do que uma parte do produto do trabalho alheio, apropriado sem equivalente; em segundo lugar, seu produtor, o trabalhador, nao so tem de repo-la, como tem de faze-lo com um novo excedente. A relacao de troca entre o capitalista e o trabalhador se converte...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT