O direito laboral português na crise atual

AutorJoão Carlos Simões Reis
Páginas9-42
Direito e Desenvolvimento, João Pessoa, v.7, n. 2, p. 12-45
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O DIREITO LABORAL PORTUGUÊS NA CRISE ATUAL
João Carlos Simões Reis*
RESUMO: Partindo da análise das medidas laborais adotadas no período de crise aguda em
Portugal, mais propriamente das alterações legislativas introduzidas nos regimes laborais
durante o período de austeridade imposto pela Troika, pretende-se dilucidar se o Direito do
Trabalho foi responsável pela crise ou foi uma vítima dela, se as modificações introduzidas
provocaram uma alteração na natureza do direito laboral e, por outro lado, atingiram os
objetivos tidos em vista, nomeadamente, se contribuíram para uma melhoria da economia
portuguesa e para o aumento do emprego. Parece-nos que, da reflexão realizada, o direito do
trabalho português sofreu profunda alteração, orientada para diminuição da sua função tutelar
e ocultação do conflito básico entre trabalho e capital, para uma subalternização da sua
dimensão coletiva e para uma menorização do trabalho enquanto atividade primordial da
espécie humana.
Palavras chave: Crise européia. Austeridade econômica. Redução da tutela laboral.
INTRODUÇÃO
As transformações sofridas pelo direito do trabalho português em consequência
dasdificuldades económicas e financeiras, nacionais e estrangeiras, têm sido muitas e
profundas. Não admira. A permeabilidade do direito do trabalho à infraestrutura económica é
uma característica frequentemente destacada pela doutrina. O surgimento e evolução deste
ramo do direito refletiu sempreo modo de organização do mercado do trabalho, o valor do
trabalho, ou, o que é o mesmo, o valor atribuído à pessoa que o produz numa dada sociedade.
É, pois, natural que a intensificação das trocas comerciais, da liberalização dos
mercados, da magnificação da concorrência, numa palavra, da crescente mundialização ou
globalização da economia, acabe por acarretar consequências significativas na regulação do
trabalho. É mesmo de admitir que o capitalismo tenha entrado numa nova fase ou, pelo
menos, venha assumindo características novas1. Mas não se confundam as coisas. Se as
* Professor na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, co-coordenador do 1 Ciclo de Estudo em
Direito e do Curso de Pós-Graduação em Direito Laboral do Instituto de Direito das E mpresas e do Trabalho
(IDET), Leciona Direito do Trabalho e Relações Coletivas de Trabalho, é membro da direção da Associação dos
Estudos Laborais e do IDET e árbitro-presidente Junto do Conselho Económico e Social. E-mail:
.
1 Na verdade, acabaram-se algumas ilusões e certo tipo de manipulações ideológicas são hoje mais evidentes.
Como salienta Avelãs Nunes, o «capitalismo sem crises, o capitalismo que já não era capitalismo (como
pretendiam os defensores da teoria da convergência dos siste mas) deu lugar ao capitalismo do risco sistémico, ao
capitalismo de casino … Mais recentemente passou-se ao capitalismo sem risco e se m falências, à ―economia da
mentira‖ (como alguém lhe chamou), ao capitalismo assente no crime sistémico (crime sem castigo, porque os
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adaptações da legislação do trabalho ao inevitável dinamismo das relações laborais, fruto da
incessante inovação na produção e comercialização de bens e serviços são naturais, já a ideia
de que o tipo e o sentido das alterações ocorridas são inevitáveis carece de demonstração.
Mais do que uma inevitabilidade indesejada, o direito do trabalho que se vem construindo
corresponde a uma escolha, a uma opção ideológica desejada. Um uso mais flexível da força
de trabalho não impõe necessariamente um contrato de trabalho temporário, o combate ao
desemprego não justifica maior facilidade no regime da cessação do contrato, a igualdade
entre os trabalhadores não tem de implicar um nivelamento por baixo, etc. A causa destas
tendências laborais não se explica apenas, nem principalmente, pelas transformações do
processo de trabalho em si; encontra sobretudo a sua razão de ser no específico sentido com
que se quer conformar tais mudanças.
E o específico sentido que se procura insuflar no direito do trabalho corrente, em
última instância, traduz-se, segundo o figurino único neoliberal, na promoção do
enfraquecimento das estruturas representativas dos trabalhadores e, em geral, da dimensão
coletiva associada ao trabalho, principalmente dos sindicatos2 e, por via da progressiva
descrença ―nos amanhãs que cantam‖, criar a convicção social de que não há espaço para um
direito do trabalho diferente deste. Só haveria lugar, segundo esta crença, para um ―direito de
trabalho de exceção‖3. Esta orientação integra-se na ofensiva ideológica para aumentar o
poder patronal na relação de trabalho e na distribuição de rendimento.
Não devemos, portanto, procurar explicar as alterações do direito do trabalho
unicamente em imperiosas e inelutáveis exigências de ordem económica, mas também (ou
sobretudo) em causas de ordem social, política e ideológica.
E, especificamente em relação ao direito do trabalho português, deve ser tido em conta
que Portugal faz parte da União Europeia e sofre, naturalmente, as decorrências da integração
económica e monetária e da proeminência esmagadora das liberdades económicas do mercado
sobre a dimensão social. Neste panorama, a concorrência é a mola real do funcionamento do
mercado comunitário e o direito laboral, mais do que um instrumento intencionado ao justo
bancos são too big to fail, mas são também too big to jail, no dizer de TheEconomist)». ―Uma tentativa de
compreender a crise à luz do marxismo», Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Vol. LIII
N.ºs 1 e 2, Coimbra Editora, 2012, p. 19.
2 Sobre os ataques do neoliberalismo ao sindicalismo, visto como u m ―grosseiro tipo d e socialismo‖, e ao
sindicato, considerado como ―um inimigo interno‖, entre outros, Avelãs Nunes, As Voltas que o Mundo Dá ….
Reflexões a Propósito das Aventuras e Desventuras do Estado Social, Edições Avante, 2010, p. 140 a 145,
AntonioBaylos, NunziaCastelli, Francisco Trillo, Negociar en Crisis, Negociacióncolectivaen los países delSur,
Editorial Bomarzo, 2014, p. 14-15.
3 Expressão retirada do título do livro de António Casimiro Ferreira, Sociedade da Austeridade e direito do
trabalho de exceção ‖, VidaEconómica, 2012. Sobre o significado desta expressão, cfr. p.75 -77.
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à busca da justiça social historicamente possível surge frequentemente como suspeito de
falsear as regras da concorrência4, de encarecer os custos empresariais, enfim de criar
empecilhos ou entraves às liberdades do mercado e à plena in repotestas de que é suposto o
titularda empresa gozar.
Os ventos do liberalismo vêm soprando fortemente em Portugal, estando a provocar,
nalguns domínios, como a laboral e o financeiro, uma verdadeira tempestade. Mas ainda não
conseguiram rebentar e varrer todos os seus obstáculos e resistências. É o que sucede no
campo jurídico, onde a Constituição portuguesa, ainda que com uma acentuada perda de
fulgor, continua a resistir, proclamando:
a) Que «Portugal é uma República baseada na dignidade da pessoa humana e …
empenhada na construção de uma sociedade não só livre como «justa e solidária» (art.º 1º);
b) Que é tarefa fundamental do Estado promover «o bem-estar e a qualidade de vida
do povo e a igualdade real entre os portugueses, bem como a efectivação dos direitos
económicos, sociais e culturais …» (art.º 9).;
c) Um importante catálogo de direitos laborais que goza do regime privilegiado dos
direitos, liberdades e garantias fundamentais (arts. 53º a 57º).
Ora, o liberalismo pode conviver com a difusa ideia de ―sociedade livre‖ ou pelo
menos com uma certa ideia de liberdade, desde que baseada no livre jogo dos interesses ou
egoísmos, mas dificilmente se dá com a procura de uma ―sociedade solidária‖, e muito menos
se conforma com a intervenção económica do Estado para limitar a abusiva ―liberdade dos
sujeitos económicos‖ – ou mesmo a tirania de uns sobre outros -, na mira de alcançar uma
―sociedade justa‖. A relação de tensão entre as medidas liberais e a Constituição portuguesa é,
pois, inevitável5, sendo sempre de averiguar, em relação a cada uma delas, se ainda se situam
ou não no quadro constitucional.
Portanto, para perceber o complexo quadro jurídico português na sua globalidade, não
deve perder-se de vista esta dissonância entre os desígnios consagrados no bloco
4 Talvez tenha sentido questionar se mesmo as disposições sociais do direito comunitário, em geral apresentadas
como um tempero da esmagadora dimensão mercantilista da União Europeia, mais do que procurar a justiça
social, não terão como objetivo eliminar as normas sociais estatais que possam constituir obstáculos ao
desenvolvimento do mercado e distorções à concorrência. Ador aciónHernández e Albert Fernández respondem
afirmativamente a esta questão (cfr. Derechossociales, integración económica y medidas de austeridade: la EU
contra el constitucionalismo social, Editorial Momarzo, 2014, p. 20 e ss.).
5 No sentido de que ―a rejeição do modelo liberal‖ é uma das importantes características da ―filosofia social‖ da
Constituição portuguesa, Jorge Leite, Direito do Trabalho , Vol. I, Serviços de Acção Social da U.C., Serviços de
Textos, Coimbra 2003, p. 78-79.

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