Direito a um Juízo Independente e Imparcial

AutorCarolina Tupinambá
Ocupação do AutorMestre e Doutora em Direito Processual. Professora Adjunta de Processo do Trabalho e Prática Processual Trabalhista na UERJ
Páginas203-220

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1.1. O conteúdo da imparcialidade e sua natureza de garantia componente de um processo justo

Garantidos um tribunal competente e o direito de acessá-lo, um processo verdadeiramente justo demanda, outrossim, um juiz imparcial651.

A garantia de um juiz imparcial envolve questões conexas relevantes a serem superadas. Neste contexto, não deve passar sem análise, máxime pela peculiar referência do processo trabalhista, a questão sobre o papel e a participação do juiz na produção do resultado justo do processo. Este estudo equivale à apreciação do ativismo judicial e aparente correlação com o princípio protecionista, que, segundo alguns autores, seria distintivo do processo do trabalho.

Após o término da Segunda Guerra Mundial, a imparcialidade judicial galgou status de postulado universal consubstanciado em diversos tratados internacionais difundidos nas democracias ocidentais.

Antes até, em distintos documentos constitucionais que foram surgindo a partir de 1776, na América do Norte, já se postulava, além da independência do Poder Judiciário como substrato da liberdade, a imparcialidade como garantia de um processo legítimo. O mais categórico a ser apontado refere-se à Declaração de Direitos de Virgínia, anterior à Declaração de Independência Americana, cujo Enunciado VIII estabeleceu que “em todos os processos criminais ou de pena capital o acusado tem direito a conhecer a causa e a natureza de sua acusação, a ser confrontado com os acusados e testemunhas, a aduzir testemunhos em seu favor e a um julgamento rápido por um jurado imparcial de homens de sua vizinhança, sem cujo unânime consentimento não poderá ser considerado culpado, e não poderá obrigar a ninguém declarar contra si mesmo; nem nenhum homem poderá ser privado de sua liberdade, senão de acordo com o direito do país ou pelo julgamento de seus pares”. A independência e a imparcialidade do juiz foram reconhecidas muito tempo antes nos Estados Unidos da América, que no próprio continente europeu652, incorporando-se aos demais sistemas constitucionais, bem como nos documentos internacionais.

Atualmente, o Direito a um juízo independente e imparcial encontra-se expressamente reconhecido em diversos textos legislativos supranacionais653, a exemplo da (i) Declaração

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Universal dos Direitos Humanos (art. 10); (ii) Declaração Americana dos Direitos do Homem (art. 26.2); (iii) Convenção Americana de Direitos Humanos (art. 8.1); (iv) Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (art. 14.1); (v) Convênio Europeu para a Proteção dos Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais (art. 6.1), dentre outros de similar relevância.

Apesar da recorrente referência à imparcialidade do órgão jurisdicional em trechos de tratados e convenções internacionais, de fato, o conceito e conteúdo da garantia não têm sido explorados ou delimitados de forma clara pela doutrina e jurisprudência. Aliás, em verdade, sequer apresentam contornos concretos nos próprios textos legais que atestam a norma garantística.

Neste particular, a Corte Europeia de Direitos Humanos, por meio de decisão proferida no precedente reconhecido como “caso Piersack”, em 1º.10.1982, construiu singular tese de diferenciação entre o aspecto subjetivo e o objetivo da imparcialidade654. De acordo com o entendimento da Corte, o contorno subjetivo da imparcialidade diria respeito à convicção pessoal de um determinado juiz em um caso concreto. Por outro lado, o aspecto objetivo pretenderia certificar a existência de um juiz que pudesse oferecer garantias suficientes para excluir qualquer dúvida razoável a esse respeito. Na referida decisão, o Tribunal europeu asseverou (i) que as aparências são importantes nesta matéria, uma vez em jogo a própria legitimação dos Tribunais em sua atuação; (ii) que, por isso, bastariam sobrepairar dúvidas sobre sua imparcialidade para se excluir um juiz suspeito; (iii) que são transcendentais os critérios de caráter organizativo da atuação judicial, de forma que não é preciso comprovar seus resultados sobre a convicção pessoal do juiz, sendo possível afirmar que o exercício prévio no processo de determinadas funções processuais pode provocar dúvidas de parcialidade655.

A distinção entre imparcialidade subjetiva e objetiva proposta pelo Tribunal Europeu de Direito Humanos tem sido objeto de críticas, uma vez que a referência à parcialidade, por mais que se objetive, conduz sempre a situar o problema nas circunstâncias subjetivas do julgador. Para Joan Picó I Junoy656, não obstante a indiscutível autoridade da Corte da qual emanou dita distinção, a mesma resulta incorreta, na medida em que toda parcialidade ou imparcialidade será sempre subjetiva657. José Antonio Díaz Cabiale, amparado nas lições de Gonzalez Montes, da mesma forma inclina-se pela corrente subjetivista658.

As tentativas de sistematizar o tema e dissecar a matéria pretendem apenas responder a um único questionamento central, qual seja, quais os elementos concretos da garantia a um juiz imparcial? Um juiz imparcial revela-se um julgador que não tenha restrições intelectuais ou preconceitos para visualizar e alcançar quaisquer das possíveis soluções de um caso concreto.

Em verdade, a imparcialidade merece mais ser percebida pela sensibilidade e consciência do justo e do injusto do que simplesmente conceituada. Nesse particular, para se perseguir um conceito direto, mais nítido se revelaria explorar o significado do termo “parcialidade”, compreendido em dois sentidos distintos, quais sejam, (i) como parte de uma disputa ou conflito, ou (ii) como sinônimo de “parte de um todo”659. Um

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juiz parcial é um juiz que se compromete, idealiza ou envida esforços em favor de uma das partes litigantes. O juiz imparcial é aquele, portanto, desprendido de motivações e razões alheias.

O conceito e a exigibilidade da imparcialidade por parte de agentes públicos têm se espraiado para além das garantias do processo, como um direito dos cidadãos. Não obstante inicialmente exigível em face do Poder Público apenas com relação ao Judiciário, atualmente, a imparcialidade revela-se como regra de conduta própria e exigível de todas as autoridades públicas, razão pela qual sua aplicação dissemina-se nas diversas atividades do comportamento humano desenvolvidas no âmbito dos poderes públicos (atividades legislativa, administrativa e judiciária).

No direito português, a imparcialidade na administração está expressamente consagrada no Título IX (Administração Pública), art. 266 (Princípios Fundamentais), item 2 da Constituição portuguesa: “Os órgãos agentes administrativos estão subordinados à Constituição e à Lei e devem actuar, no exercício das suas funções, com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça e da imparciabilidade”. Em outras palavras, a referida garantia tem se aproximado cada vez mais do artefato simbólico de uma sociedade ética, civilizada e justa.

Não obstante o movimento crescente experimentado pela compreensão atual do conceito de imparcialidade, a questão é que os juízes e demais agentes públicos não vivem em redomas de vidro e trazem consigo experiências, crenças, bem como suas respectivas vivências pessoais, muitas vezes assentadas em preconceitos, predileções e prévias concepções660, fatores que muitas das vezes podem mascarar ou os impedir de enxergar a realidade, comprometendo-lhes a imparcialidade perante os conflitos em que inseridos661.

Se é certo que juízes e demais agentes públicos não nasceram junto com os conflitos ou com as diversas situações que demandam suas respectivas intervenções, é preciso, ao menos, que renasçam sem preconceitos ou vinculações intelectuais em cada drama a que convocados a solucionar, garantindo uma sociedade mais justa e aberta para a evolução. Neste sentido, logicamente, o juiz, antes de julgar, deve colocar na mesa abertamente para as partes todas as suas impressões apriorísticas permitindo-lhes que participem ativamente do itinerário de seu raciocínio. Tal conduta representaria o fim do famoso dizer popular segundo o qual “de cabeça de juiz ninguém sabe o que vem”662.

1.2. A independência jurisdicional como pressuposto da imparcialidade

A imparcialidade, sem dúvida, pressupõe independência jurisdicional, princípio enfático em diversos documentos constitucionais a partir do século XVIII.

Owen Fiss, na consagrada obra The Democracy in Latin America: the role of Judiciary, citado por Salete Maria Polita Maccalóz663, estabelece três tipos diferentes de independência judicial: (i) neutralidade de partido, que configura a independência da magistratura em relação aos interesses dos partidos políticos; (ii) independência individual, em relação à estrutura burocrática judicial, isto é, em relação aos outros juízes664; e (iii) isolamento político, que é a independência de outras instituições governamentais. Em verdade, a totalidade dos aspectos observados pelo autor garante um juiz desassombrado para julgar a lide que lhe seja posta, sem prévios compromissos, ainda que inconscientes, e tampouco restrições políticas. Somente um juiz livre pode “se dar ao luxo” de fazer uma escolha imparcial.

Aliás, a consciência de que apenas um juiz independente pode ser imparcial já vem de longa data. Na Inglaterra, por exemplo, a independência dos juízes já estava expressamente consignada na Acta de Establecimiento de 1701. A referência prioritária à independência do Poder...

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