Direito e incertezas da biotecnologia: custo social das pesquisas

AutorRachel Sztajn
Páginas34-51

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A desconfiança crescente da sociedade com produtos obtidos a partir de experimentações e progressos da ciência, notàdamente da biotecnologia, é sensível, provocando a geração dè temores e dúvidas que se amplificam na velocidade da maior divulgação de resultados das inovações. Essa desconfiança tem fundamento na falta de conhecimento dos procedimentos e modelos de raciocínio investigativo próprios de certas áreas do conhecimento, que têm posto em xeque tanto a certeza do conhecimento quanto a segurança no aceitar afirmações de que os novos produtos são benéficos para as coletividades.

A incerteza tem dominado o discurso de cientistas, denotando ausência do consenso que costumava predominar em certas áreas técnicas, alastrando-se daí para toda a sociedade. Como comportamentos prudentes ou prudenciais sempre fizeram parte de esquemas de sobrevivência das sociedades, operando como mecanismo de composição de riscos, não espanta a perplexidade geral diante de novas e, aparentemente, promissoras informações sobre terapêuticas ligadas a manipulações genéticas que prometem a cura de moléstias hereditárias ou vistas como letais.

A perplexidade e resultado da incerteza científica, das retratações sobre efei-. tos nocivos de certas drogas, sobre resultados inesperados de outras, do temor do des-' conhecido e dos riscos que possa esconder. O risco é conhecido da humanidade.

O mito de Prometeu pode'ser uma das. maneiras dè explicar á busca do desconhecido e os perigos que possa encobrir. Mas as pessoas, algumas delas ao menos, não. se deixam intimidar por eventuais resultados adversos e perseguem o novo com afinco. Os cientistas sao uma dás categorias dè pessoas que optam pelo enfrentamento de dificuldades de riscos na expectativa de-resultados favoráveis.

Aceitar riscos - e suportar seus efeitos - integra qualquer pesquisa, e importa compreendê-lo como maneira de aumentar a capacidade de entender e administrar in-, certezas futuras. Esse processo facilita a adaptação dos seres vivos às mutações ambientais e, pode-se dizer, é parte do processo de evolução das espécies. A aptidão, para lidar com riscos desenvolve a capaci-. dade de apreender em que medida turbur -lências são aceitáveis e quando, ao se tornarem real perigo, devem ser afastadas ou contornadas.

Pode-se dizer que os limites da sobre-. vivência, individual e coletiva, são determinados pelos riscos assumidos - por indir víduos e coletividade -, especialmente se agem sobre a vida, a saúde, o ecossistema - em suma, a vida em todas as suas manifestações. Quando as inovações tecnológicas alteram a velocidade de manifestação do risco, a percepção de sua interferência na adaptação dos seres vivos, sendo a vida o cerne do problema, o temor de impactos -

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adversos se acentua. Por isso a decisão de. limitar o presente discurso à biotecnologia.

Bio, do Grego, significa vida; tecnologia, originada de técnica, novamente do Grego, significa arte ou habilidade; tecnologia significa o ramo do conhecimento que estuda a aplicação da ciência em procedimentos industriais, massivos, oú, ainda, a aplicação de conhecimento prático a certas áreas práticas. Biotecnologia (bio + tecnologia) é, portanto, o estudo dás relações entre seres humanos e procedimentos in-; dustriais ou, ainda, a aplicação de processos biológicos à produção de materiais e substâncias para uso industrial, medicinal, farmacêutico; vale dizer, uso de conhecimentos (ou habilidades) técnicos, de forma industrial, relativamente à vida de diferentes espécies de organismos vivos, não apenas seres humanos.

Como, num quadro de instabilidade técnica que tem caracterizado o desenvolvimento das ciências biológicas, se incluem as inovações da pesquisa genética e a responsabilidade de pesquisadores, empresários e órgãos da Administração Pública? Por que a sociedade teme inovações quando se sabe que. os seres humanos, de longa data, fazem pesquisas no campo da Genética, da Biologia?

Átividade genética em animais e plantas, práticas que levem ao aperfeiçoamen- to das espécies, são velhas conhecidas da sociedade moderna. Técnicas de cruzamento de animais com determinadas características que se deseja reproduzir, empregando para isso a inseminação artificial, melhorar o plantei; o administrar horrnônios visando a reduzir o tempo de engorda - são atiyidades comuns nas fazendas brasileiras, experimentais ou não:

Transferir genes de um animal para outro não era fato merecedor de elucubrações dos operadores do Direito, dada a prática dos criadores. Atualmente, porém, a percepção é diferente. Igualmente, no que tange a vegetais os cruzamentos ocorrem, às vezes, espontaneamente, por força de correntes de vento que transportam elementos de uma para outra planta, a polinização feita por insetos. Algumas vezes as alterações resultam de átividade humana com a criação de variedades ou introdução de características distintas em variedades conhecidas.

Se ninguém reclama das plantas enxertadas, por que há reclamações- quando as manipulações resultam da biotecnologia? Creio que pela percepção de que a manipulação do DNA aparece como mais perigosa do que a simples mescla de células no caso de animais ou a enxertia no das plantas.

Isolar o DNÀ de animal ou vegetal, alterar sequências e criar desenho novo, e transpô-las em outro organismo yivo,comp faz a biotecnologia, resulta nos organismos geneticamente modificados (genes são1 sequências de PNA - ácido desoxiribonu-cléico - em que ficam as informações de unidades hereditárias que determinam as características físicas e biológicas de cada indivíduo; rnapeamento do genoma significa mapeaf a vida, animal ou vegetal; conhecido o mapa, é possível imaginar alterá-lo, para mudar as características individuais . e, depois, reproduzi-las).

O grande salto entre a biotecnologia e os procedimentos anteriores, pela facilidade da seleção dos genes, a serem transferidos, é que gera incerteza.

Certo que a manipulação genética pretende o mesmo resultado da seleção e apri-moramento visados na cultura ou criação tradicionais, mas o atual processo utiliza meios sofisticados; e, por isso mesmo, provocam o temor do desconhecido.

A forma tradicional dè aprimoramen-to de espécies parece mais segura, de vez que conhecida e também, creio, porque o processo requeira mais tempo para que se chegue ao resultado Visado, facilitando còr-reções quando se constatam resultados intercorrentes indesejados, pois além de encontrar a característica desejada é preciso não só dominar o como transferi-la mas, ao mesmo tempo, eliminar as negativas. A

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enxertia ou enxerto em vegetais nada mais é do que forma de introduzir genes de uma espécie em outra para "melhorar o produto final". As novas espécies que resultam dos genes transmitidos de um a outro ser e a interação com o meio ambiente reúnem características dos genes combinados. Mas com os processos novos o controle do produto final é maior, pela certeza de transferir material genético específico, depurado de características indesejáveis.

A tecnologia altera a forma e velocidade mediante as quais novas variedades são criadas, facilita a seleção de genes e sua mescla, encurta o prazo de aparecimento de resultados. Ora, se melhoramento genético não é obra de pesquisadores deste último quarto de século, como explicar a amplificação da percepção de riscos?

A sensação de que a velocidade com que se processam as mudanças genéticas cria riscos maiores do que aqueles resultantes dos procedimentos tradicionais é patente. Também se assimila ã insegurança com que os pesquisadores avaliam os resultados das inovações, e, como se tem demonstrado, dentro de lapsos temporais não muito longos, afirmações tidas como definitivas não encontram amparo em face de novos avanços no conhecimento. Inúmeros casos amparam a desconfiança - exemplo: a sacarina foi acusada de cancerígena; o sol, de benéfico para os ossos a vilão, causador de câncer de pele.

Esse tipo de risco é mais visível, sensível, na biotecnologia. Sua quantificação, se viável, a razoabilidade de aceitar riscos novos comparados aos benefícios sociais, as precauções a serem adotadas para hipóteses de incapacidade de administrar danos futuros, tudo depende da percepção da relação risco/benefício. Qualquer equívoco nessa percepção é motivo para indagar de responsabilidades se houver danos. Como compô-los se forem massivos?

A inovação da biotecnologia implica dominar a pesquisa científica e sua aplicação, prever a reparação de danos mediatos, evitar se tornem irreparáveis se o padrão de risco for fixado somente com base no benefício imediato ou aparente. Intervenções biotecnológicas requerem a adoção de precauções para consequências imprevistas (ou imprevisíveis). Também é importante ter presente que, muitas vezes, as inovações provocam externalidades negativas.

Por exemplo, a luta contra a desnutrição depende do aumento da oferta de alimentos, o que justifica intervenções genéticas em animais e vegetais; a busca de cura para moléstias hereditárias leva à manipulação de genes de seres humanos, igualmente justificada pela vontade de eliminar imperfeições. Efeitos adversos de algumas dessas manipulações genéticas dão origem a riscos da biotecnologia, como a antecipação da puberdade, a cuja precocidade são imputados danos psicológicos; diminuição da eficácia de medicamentos por larga exposição a princípios ativos; no plano económico levam à dependência de produtores por sementes, já que as espécies geneticamente manipuladas são, em geral, estéreis; esgotamento mais rápido do solo ou alteração de suas qualidades, como ocorreu na índia.

Os benefícios decorrentes das manipulações são reduzidos pelas consequências prejudiciais que afetam algumas pessoas. É nesse sentido que se fala em externalidade negativa. Parte da sociedade paga o preço da pesquisa, sofrendo os efeitos negativos do emprego de produtos geneticamente alterados.

Quaisquer que sejam os cuidados ado-tados, independentemente da...

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