O Direito Fundamental ao Trabalho Digno e a Discriminação por Orientação Sexual nas Relações de Emprego

AutorRodrigo Leonardo de Melo Santos
Ocupação do AutorAdvogado
Páginas114-139

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4.1. O valor trabalho no Estado Democrático de Direito brasileiro: o direito fundamental ao trabalho digno

Segundo Delgado, o trabalho, enquanto espécie de atividade humana, constitui suporte de valor, na medida em que a ele, no plano ético, podem ser atribuídas qualidades que lhe coniram um sentido positivo ou negativo:

(...) tem-se o trabalho como depositário de valor. Se o trabalho for penoso, insalubre ou perigoso, o valor apreendido é negativo; caso o trabalho seja realizado em condições dignas, possibilitando que o trabalhador se reconheça na sua condição humana por meio de sua identidade social, tem-se um valor positivo. Perceba-se: o suporte é o mesmo, o trabalho; o que varia é a sua qualiicação482.

Reale, em sua teoria tridimensional, já advertia que o Direito, para além de seu âmbito fático e normativo, comporta também uma dimensão valorativa, relacionada à concretização de ideais de justiça. Isso implica dizer que a norma jurídica, ao prescrever determinadas consequências às hipóteses fáticas nela descritas, tem em mira a consecução de objetivos especíicos: seja o de alcançar algo valioso ou desejável em um dado contexto histórico; seja o de reprimir a realização do que se reputa pernicioso ou indesejável483.

Para o constitucionalismo contemporâneo, a pessoa humana torna-se a fonte primeira dos valores incorporados pelo Direito, de forma que a proteção e a promoção da dignidade, qualidade intrínseca, universal e distintiva da condição humana, se constitui como núcleo da concepção de justiça que subjaz às normas jurídicas484.

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No Brasil, a promulgação da Constituição Federal de 1988 foi o que promoveu o deslocamento do eixo axiológico do ordenamento jurídico, antes notoriamente patrimonialista, para a pessoa humana e a dignidade que a qualiica.

No âmbito justrabalhista, Delgado e Borges frisam que a disciplina celetista da década de 1940 limitava o escopo de aplicação do princípio da proteção485, de início, à modalidade de trabalho urbano, bem como à resolução de questões de matiz contratual e aos direitos patrimoniais do trabalhador. E, mesmo com a paulatina expansão do âmbito de tutela justrabalhista, ao longo das décadas pré-1988, incluindo sob o seu manto formas de prestação do trabalho até então deixadas à margem do regime jurídico especializado (como é o caso do trabalho rural, no im da década de 1960), não se observou mudança na inclinação patrimonialista das questões objeto da regulação jurídica486.

Essa concepção restritiva e fechada do princípio protetivo só viria a ser submetida a uma releitura, a partir das novas lentes inclusivas aportadas ao Direito do Trabalho pela promulgação da Constituição Federal de 1988, em termos de democracia participativa e da centralidade da igura da pessoa humana, amparada e promovida pela realização de direitos fundamentais487.

A adoção da nova matriz principiológica pelo Direito brasileiro, em 1988, impõe, por conseguinte, uma revisitação de todo o direito pré-constitucional, de modo que, excluído no que for incompatível com a nova ordem, seja o restante reinterpretado às luzes dos parâmetros que orientam a novel Constituição.

Nesse contexto, em se tratando o trabalho de um direito humano de segunda dimensão e, concomitantemente, de um direito fundamental incorporado pelos textos constitucionais que, a exemplo da Constituição Federal de 1988, se alinham ao paradigma do Estado Demo-crático de Direito, a deinição de seu sentido axiológico passa a se vincular necessariamente à realização da dignidade.

É dizer, o valor da pessoa humana serve de chave para o discurso constitucional trabalhista, seletivamente, delimitar a ideia positiva de trabalho que a Constituição

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tutela e estimula, ao mesmo tempo em que baliza as concepções negativas de trabalho constitucionalmente rechaçadas e combatidas.

Em relação ao Direito do Trabalho, a mudança de paradigma operada pela Constituição Federal de 1988 importou uma ressigniicação de seus institutos e normas, em especial do princípio tuitivo, cujo escopo foi signiicativamente ampliado em comparação com sua origem celetista.

O direito fundamental ao trabalho ao qual alude a Constituição da República em seu art. 6º, assegurado principalmente por meio dos institutos, valores, princípios e regras que compõem o Direito do Trabalho, diz respeito, portanto, às conigurações de trabalho que digniicam a pessoa humana; jamais ao labor que instrumentaliza o obreiro e desconsidera a pessoa como um im em si mesmo, que busca no trabalho as condições para se realizar e participar de forma paritária da vida social488.

Essa premissa se torna evidente, na Constituição de 1988, quando são elencados lado a lado, como princípios fundamentais da República, a dignidade da pessoa humana e o valor social do trabalho (art. 1º, III e IV), fontes das quais decorrem os direitos fundamentais trabalhistas arrolados em seu art. 7º. A ideia é reairmada pelo constituinte, ao asseverar que a ordem econômica e a ordem social, fundadas no primado e na valorização do trabalho humano, têm por objetivo assegurar a existência digna e realizar a justiça social (arts. 170 e 193). Essa inalidade, vale frisar, só se cumpre quando a atividade econômica se orienta pelo princípio da defesa do meio ambiente equilibrado – inclusive o meio ambiente do trabalho (arts. 170, VI, e 200, VIII).

Nesse quadro, a função teleológica do Direito, em relação ao trabalho, é a de garantir o acesso e o seu exercício em condições de dignidade, suprimindo modalidades que aviltem a condição humana. Isso se perfaz pela estruturação de uma rede protetiva de direitos de indisponibilidade absoluta, que não se sujeitam à transação, nem individual nem coletiva489, por:

(...) se constituírem em um patamar civilizatório mínimo que a sociedade demo-crática não concebe ver reduzido em qualquer segmento econômico-proissional, sob pena de se afrontarem a própria dignidade da pessoa humana e a valorização mínima deferível ao trabalho490.

Esse conjunto inegociável de direitos que ampara o patamar mínimo civilizatório do sujeito trabalhador, como derivação e concretização do valor dignidade, são direitos humanos e, no que constitucionalmente positivados, também direitos fundamentais491.

Nessa esteira, proteger e fomentar a dignidade do sujeito trabalhador na maior amplitude possível, em atenção ao paradigma inclusivo e aberto de direitos fundamentais inaugurado pela Constituição Federal de 1988, exige do discurso constitucional trabalhista a revisitação do modelo protetivo arquitetado pela CLT quarenta anos antes, conferindo-lhe um enfoque

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multidimensional em contínuo aperfeiçoamento, com pretensão de fazer frente à hipercomplexidade da vida nas sociedades contemporâneas492.

Não basta mais, para o padrão tuitivo inaugurado pelo Texto Constitucional de 1988, uma tutela circunscrita a interesses patrimoniais oriundos da relação contratual empregatícia bilateral. Para que se possa falar em efetivo trabalho digno, de viés inclusivo, o Direito do Trabalho hodierno precisa atentar para outras formas de trabalho ainda não alcançadas pelo ordenamento justrabalhista. Igualmente, deve voltar-se para os indivíduos que, por sua condição socioeconômica ou por estigmas sociais, encontram maiores diiculdades para verem concretizado o direito ao acesso e à manutenção no emprego em condições dignas. E, no mesmo passo, não pode descuidar dos interesses extrapatrimoniais de natureza individual, coletiva e difusa dos trabalhadores. Nesse sentido, o princípio protetivo, à vista do constitucionalismo brasileiro de 1988, deve levar em conta simultaneamente “o sujeito trabalhador, o objeto do trabalho e o meio ambiente de trabalho”, na realização de sua função teleológica493.

Uma estrutura similar de valoração do trabalho, pode ser encontrada também no plano internacional.

Com efeito, se a ideia de direitos humanos denota um conjunto mínimo de direitos que, por consenso, são universais e devem ser garantidos a toda e qualquer pessoa como condição para uma vida digna, é nesse elenco de direitos que se deve buscar o verdadeiro sentido de trabalho decente, isto é, trabalho exercido em condições de dignidade494.

O homem enquanto trabalhador é, pois, sujeito de direitos humanos de segunda dimensão, de conotação social, positiva, expressamente abordados pela Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, simbolicamente o mais importante diploma já editado sobre a temática dos direitos humanos495. Também irmado no âmbito da Organização das Nações Unidas, o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, ratiicado pelo Brasil em 1992, enuncia o direito de toda pessoa a ganhar a vida mediante um trabalho livremente escolhido ou aceito, prestado em condições justas e favoráveis496.

Sem embargo, para Brito Filho, o corpo mais completo de garantias mínimas de que se pode dessumir o efetivo conteúdo do trabalho decente há de ser buscado no rol de Convenções Fundamentais irmadas pela Organização Internacional do Trabalho, quais sejam: as de números 87497 e 98, sobre liberdade sindical e de associação, bem como reconhecimento

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das negociações coletivas; 27 e 105, sobre a proibição ao trabalho forçado; 138 e 182, sobre proibição ao trabalho infantil; e 100 e 111, sobre proibição da discriminação498.

Os direitos e garantias enunciados por esses diplomas encontram-se elencados na Declaração da OIT sobre os Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho e seu seguimento, adotada em 1998499, e constituem o parâmetro...

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