O direito fundamental ao conteúdo do próprio trabalho: uma reconstrução normativa do Direito ao Trabalho

AutorRaimundo Simão de Melo/Cláudio Jannotti da Rocha
Páginas231-243

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1. Introdução

Ousa-se sustentar que o direito ao trabalho é o mais importante, embora talvez o menos efetivo, dos direitos fundamentais. Por isso, vai-se privilegiar, neste espaço, uma abordagem voltada às perspectivas de sua implementação atual na ordem constitucional brasileira vigente, em detrimento dos aspectos relativos ao seu devir histórico e do aporte crítico que o direito ao trabalho, como expressão de necessidades que demandam uma profunda transformação da institucionalidade vigente, traz diante dessa mesma ordem que o consagra.2 Isso não significa, porém, que não seja necessário revolver os elementos de fundamentação desse direito. Ao contrário da clássica afirmação de Bobbio (1992, p. 37), para quem “[...] o importante não é fundamentar os direitos do homem, mas protegê-los”, postula-se, na esteira do que foi sustentado por Herrera Flores (2005, p. 36-38), que já é mais que tempo de parar para refletir como, para proteger os direitos humanos, é indispensável repensar-se a sua fundamentação.Na primeira seção, procura-se identificar o contexto normativo do direito ao trabalho, cuja importância é desmerecida por um escasso desenvolvimento dogmático, colocando-se a questão das condições para se superar essa paralisia. Na segunda seção, sintetizam-se alguns elementos da reconstrução da fundamentação do direito ao trabalho que subsidiarão uma releitura concretizadora, cujos contornos gerais se esboçam nas seções 3 e 4. Na seção 3, procura-se desenhar a figura complexa de um direito multidimensional, cuja dimensão central é explicitada na seção 4, como um direito fundamental ao conteúdo do próprio trabalho.

2. O problema: a centralidade inefetiva do direito fundamental ao trabalho

Reiteradamente proclamado nos textos constitucionais e de normas internacionais relativas a direitos humanos, o direito ao trabalho é considerado pela doutrina internacional mais abalizada como “[...] el arquetipo de los derechos sociales” (SASTRE IBARRECHE, 1996, p. 19) ou “o direito social por antonomásia”3ou, ainda,“[...] il primo dei diritti sociali” (GIUBBONI, 2006). Sua centralidade para o discurso jurídico é reiterada na literatura, não somente por razões de ordem normativa, mas também por razões de ordem histórica – como primeira bandeira que levou ao constitucionalismo social – e de ordem cultural – pela necessária hierarquia valorativa que assume na “sociedade do trabalho” (MONEREO PÉREZ; MOLINA NAVARRETE, 2002, p. 288). No dizer de Mello (2003, p. 228) seria “[...] o direito ao trabalho o mais importante, ou o direito básico dos direitos sociais.”Sobretudo, tal direito é reconhecido como a condição indispensável para outros direitos humanos, como articulado de modo taxativo na Resolução n. 34/46, de 1979, da Assembleia Geral da ONU: “[...] a fim de garantir cabalmente os direitos humanos e a plena dignidade pessoal, é necessário garantir o direito ao trabalho.”4 Recentemente, o Conselho de Direitos Humanos (CDH) da ONU, em sua 28ª Sessão, reafirmou a importância e a urgência da realização do direito ao trabalho diante da crise mundial e colocou-se em permanente cuidado do tema.5 Na 31ª Sessão, acolheu um relatório do Alto Comissariado que faz uma síntese doutrinária do seu conteúdo normativo (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2016a) e uma nova resolução que encaminha os próximos passos do CDH na matéria.6

Com efeito, no plano internacional há um grande acervo de normas de direitos humanos em geral e, em especial, de direitos sociolaborais, que se referem explicitamente ao reconhecimento e a formas de implementação do direito ao trabalho. A principiar, o art. 23 da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), de 1948.7 É relevante que o item I desse dispositivo distingue o direito ao trabalho, como expressão

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mais geral, de suas expressões parcelares, como o direito à livre escolha de emprego, o direito a condições justas de trabalho e o direito à proteção contra o desemprego. Bem assim, os itens II a IV consignam o direito à igualdade salarial para igual trabalho, o direito de organização e filiação sindical e, em especial, o direito a uma remuneração que assegure ao trabalhador e sua família uma existência digna. Não se olvide, ainda, o vínculo indivisível firmado no art. 22 da DUDH entre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (DESCs) e a dignidade e o desenvolvimento da personalidade. Em termos dogmáticos, esse desenho de um direito geral, que se desdobra em aspectos parcelares, expressa a pluralidade de dimensões normativas característicado direito ao trabalho, como se verá adiante.

Já o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais – PIDESC, de 1966 e que deu prosseguimento à positivação dos direitos enunciados na DUDH, assegura o direito ao trabalho e suas especificações nos arts. 6º, 7º e 8º, elencando, de forma não exaustiva, a liberdade de trabalhar e o direito ao pleno emprego, bem como condições justas e favoráveis de trabalho e de liberdade de organização sindical, gravitando em torno do direito a uma “[...] ocupação plena e produtiva, em condições que garantam as liberdades políticas e econômicas fundamentais da pessoa humana.”8

Diversas outras normas e declarações internacionais consagram, com central normatividade, o direito ao trabalho. Exemplificativamente: o art. 6º do Protocolo de São Salvador9 e o art. 45, b, da Carta da Organização dos Estados America-nos.10 No âmbito da Organização Internacional do Trabalho (OIT), embora não seja utilizada a locução “direito ao trabalho”, já em sua criação, em 1919, ficou consagrado o princípio fundamental de que “o trabalho não é uma mercadoria”, como consta no Tratado de Versailles, o que veio a ser reafirmado na Declaração de Filadélfia, de 1944, incorporada à Constituição da OIT e na Declaration on Social Justice for a Fair Globalization, de 2008. Esse é o princípio que funda a compreensão de que o Trabalho é essencial à dignidade e que deve ser protegido como direito fundamental. Dentre as normas da OIT,11 destaca-se o disposto no art. 1º da Convenção 122 da OIT,12 que dispõe sobre a política de emprego não somente quantitativo, mas qualitativo, e que deverá procurar garantir:

  1. que haja trabalho para todas as pessoas disponíveis e em busca de trabalho; b) que este trabalho seja o mais produtivo possível; c) que haja livre escolha de emprego e que cada trabalhador tenha todas as possibilidades de adquirir e de utilizar, neste emprego, suas qualificações, assim como seus dons, qualquer que seja sua raça, cor, sexo, religião, opinião política, ascendência nacional ou origem social.

Com o art. 6º do PIDESC, antes mencionado, o qual ressalta que as condições de trabalho são determinantes para o exercício das liberdades políticas e econômicas fundamentais da pessoa, esse dispositivo forma a base normativa que explicita a projeção do direito ao trabalho sobre o princípio do pleno emprego qualitativo, ressaltando que este deverá possibilitar ao trabalhador adquirir e utilizar as suas qualificações e dons. Da mesma forma, a Declaração da OIT de 2008 ressalta um trabalho no qual “[...] indivíduos possam desenvolver e atualizar as capacidades e habilidades que os habilitem a empregá-las produtivamente para a sua autorrealização e para o bem comum.”Consagra-se aí, em especial, o vínculo do direito ao trabalho com o que denominamos de direito ao conteúdo do próprio trabalho, que, como se explicita adiante, constitui o cerne do sentido desse direito.13

A Constituição brasileira de 1988 é igualmente enfática em assegurar a mais proeminente hierarquia normativa ao direito ao trabalho, como expressão da íntima relação que estabelece entre a dignidade humana, o valor do trabalho e os direitos e instituições que afetam a vida daqueles que vivem do trabalho. Designa o trabalho como direito social fundamental (art. 6º) ao qual acresceum amplo rol de direitos e garantias dos trabalhadores (art. 7º), cada qual instituído como um direito fundamental autônomo, e disposições relativas à liberdade sindical (art. 8º), direito de greve (art. 9º) e participação dos trabalhadores nos colegiados públicos de seu interesse (art. 10) e na gestão das empresas (art. 11), além de vários dispositivos esparsos que, em diferentes medidas, contemplam aspectos do direito ao trabalho e da proteção do trabalho em geral, especificando-o ou fortalecendo o seu âmbito geral.

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Tais dispositivos que consagram direitos e garantias são contextualizados, no plexo constitucional, pela atribuição, ao trabalho, da força jurídica de um valor social elevado à máxima hierarquia e que, com a livre iniciativa, é fundamento da República (art. 1º, IV), ao lado e intimamente ligado à dignidade da pessoa humana (art. 1º, III). A mesma tríade de valores fundamentais é encontrada no caput do art. 170, que estabelece os princípios da ordem econômica: “[...] fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social [...]” Note-se que, sendo o trabalho uma das principais expressões da dignidade humana, a ordem econômica somente se legitima à medida que estiver a seu serviço e não o contrário. Ainda, o art. 193 estabelece que a ordem social “[...] tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais.” Por fim, o art. 205 estabelece que os fins da promoção da educação associam o “[...] pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”, ressaltando o vínculo entre desenvolvimento da personalidade, educação para a cidadania e qualificação para o...

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