Direito & estilo - Primeiras conjecturas sobre a estilística jurídica

AutorMaria Francisca Carneiro
CargoDoutora em Direito (UFPR). Pós-doutora em Filosofia (Universidade de Lisboa)
Páginas121-132

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1. Conceito de estilo

Estilo é o conjunto de características que distinguem determinada forma de expressão2. Na origem, a ideia de estilo expressou-se, em francês, como le style c’est l’homme même, para considerar que o estilo é a manifestação do sujeito, tal qual ele é3. Discute-se, todavia, se o estilo está no sujeito ou no material empregado, no caso da obra de arte, pois é a matéria que toma forma e expressa o estilo. A questão remanesce aberta, pois não há respostas conclusivas a respeito. Assim, indaga-se se o estilo está no sujeito (essência) ou na coisa (matéria); ou seja, se no conteúdo ou na forma.

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O estilo pode ser conceituado como a maneira ou o caráter especial de exprimir os pensamentos, falando ou escrevendo, podendo classificar-se os estilos em simples, natural, elegante, grácil, opulento, enérgico, sublime, nobre, afetado, burlesco, temperado, didático, histó-rico, ortodoxo etc.4Os estilos podem atender ainda a diferentes escolas do pensamento ou da arte, tais como gótico, clássico, barroco, expressionista, impressionista etc. Podem ser infinitos os estilos, tão infinita quanto for a criatividade humana e a sua capacidade expressiva.

Por maior que seja a diferença entre matéria e expressão, algumas obras de arte obedecem a características comuns, como por exemplo a predominância das linhas, a representação por planos e a nitidez dos contornos, que informam um determinado tipo de visão estruturante5: aí está a base da classificação dos estilos. Os estilos são, portanto, categorias estruturantes, sendo que se pode passar de uma a outra historicamente, embora cada estilo tenha a sua perenidade. Nesse sentido, os estilos são temporais e atemporais, dependendo do ponto de vista sob o qual se os analisa.

O estilo relaciona-se ao gosto, dele depende e conforme ele varia. Para David Hume, "é demasiado óbvia para deixar de ser notada por todos a extrema variedade de gostos que há no mundo, assim como de opiniões"6. Hume procurava encontrar um padrão do gosto, para o qual convergiriam as diferentes opiniões, pois acreditava na existência de princípios universais do gosto, portanto, do estilo. Para Hume, tal padrão estaria principalmente na ética e na moral, das quais decorreriam, em última instância, os princípios que fundamentam o gosto. Ora, não se pode negar a plausibilidade dessa afirmativa, a qual não é de todo negada pela maior parte dos tratadistas e filósofos de todos os tempos, pois é patente a ligação que existe entre ética e estética. Desse modo, os princípios éticos influenciam, sim, o estilo.

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2. Evolução social do estilo e do ornamento

O estilo é uma espécie de método que se ressente claramente dos sentimentos, ideias e entusiasmo dos seus artistas e autores, de acordo com as variações sociais, nas mais diversas épocas das quais se tem registro7. Nesse sentido, o estilo pode ser considerado um espelho das transformações históricas e, por conseguinte, dos valores que as imbuem. Enquanto há signos estilísticos ascendentes, há outros em declínio, em um movimento constante no bojo das sociedades8.

Cabe lembrar, todavia, que a reprodução fiel aos padrões ornamentais que caracterizam o estilo pode ser menos importante do que a contribuição de cada artesão, ao progresso infinito destes padrões. Aí está presente a questão da autoria que, no medievo, ainda não se fazia presente. Somente a partir do Renascimento é que a autoria - primórdio do direito autoral e do direito sobre as cópias - se manifesta, não por acaso em consonância com o desenvolvimento do conceito de sujeito de direitos, cada vez mais amplo e abrangente no âmbito jurídico, até nossos dias.

O ornamento é uma forma de diferenciação que caracteriza o estilo. Gilberto Paim, citando Ruskin, afirma que "a industrialização inter-rompeu a mutação dos padrões ornamentais, fixando-os e esvaziando-os em seu potencial expressivo"9. Apenas os ornamentos realizados artesanalmente, diz ele, são capazes de trazer para o mundo a variedade da natureza e da sociedade, pois a mecanização substituiu a variedade conquistada pelo trabalho artesanal por uma tenebrosa monotonia10.

Os estilos ornamentais do passado respeitaram as leis que regulam a distribuição da forma na natureza. Portanto, para interpretá-los, é preciso antes observar a natureza11.

As formas abstratas são mais recentes. De qualquer modo, o impulso ornamental pode ser entendido como um poderoso e inalienável instinto, presente em todos os povos12.

É interessante observar, todavia, que pela expressão estilística, principalmente dos poemas, passam também traços subliminares e irracionais, que nem sempre correspondem a um determinado saber explícito13. Por isso, na estilística, reside uma espécie de fenomenologia e de

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uma dialética, talvez prenhe de essencialidades a serem desveladas, na qual os elos linguísticos desempenham o papel de elos vitais. As miniaturas e os panegíricos são exemplos cabais desse fenômeno, pois os elogios e as reduções são tipos de sínteses de valores e de ideias.

Entretanto, não se pode falar em estilo sem mencionar a célebre expressão "estilo de vida", a qual, na modernidade, relaciona-se à compra e ao consumismo: You are what you buy14, tão diferente e tão em oposição aos primórdios do estilo e do ornamento, que se reportavam às formas encontradas na natureza.

No Ocidente, a estilística em geral foi influenciada, em seus primórdios, pela cultura grega clássica. Assim, a nobreza era considerada fonte de cultura e a educação dos heróis, modelo. O ideal espartano e platônico era inspiração e limite da beleza e da arte, inclusive da poesia15. Mas isto foi só o início, pois, com o decorrer dos séculos, as mudanças políticas e sociais trataram logo de se expressar também através dos estilos.

No Brasil Colonial, as incursões estilísticas no neoclassicismo foram esporádicas, pois a personalidade do povo não se adequava à frieza e ao intelectualismo que caracterizavam esse estilo. A tradição brasileira, na época, era marcadamente o barroco-rococó, na qual a emotivi-dade e o sensualismo do mestiço brasileiro encontravam formas mais próprias de expressão, suscetíveis de autenticidade, embora a estilística neoclassicista fosse imposta, desde as escolas até as mais altas cortes de justiça, como que "por decreto"16.

No decorrer deste escrito, analisaremos a estilística jurídica contemporânea, no caso, expressa especificamente por meio da argumentação, embora não seja possível ignorar que há diferentes estilos permeando todo o universo jurídico, inclusive coexistindo em variados espaços e tempos.

Como síntese deste breve tópico, temos que o ornamento é a expressão prática do estilo, sendo este um método que comporta diferenciações históricas e geográficas.

Vejamos, a seguir, aspectos da formação intelectual do estilo, que pode ser considerada um aporte à teoria do conhecimento.

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3. Arquitetura cognitiva do estilo: estrutura ou statement

Não resta dúvida de que, didaticamente, podemos distinguir nossas experiências do "belo" (quer natural, quer artístico), das percepções sensoriais comuns, como a visão, o olfato, o tato e a audição. tanto pela experiência estética como pela experiência sensorial comum, adquirimos conhecimento; e isto interessa também à gnoseologia ou teoria do conhecimento. Ora, o estilo é uma expressão do "belo" e, assim sendo, também pode ser analisado sob o prisma gnoseológico.

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