Direito do trabalho: espaço de construção e luta

AutorJosé Eymard Loguercio
Páginas44-52

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O professor Roberto Lyra Filho define o Direito como "enunciação dos princípios de uma legítima organização social da liberdade". Olhar o Direito a partir da "legítima organização social da liberdade" nos exige acostumar a retina. Vasculhar no horizonte de construção da norma jurídica, nela e para além dela. Como diria Eduardo Galeano, um olho no microscópio e outro no telescópio, ou seja, o Direito passa a ser espaço de luta e construção permanentes. Inserido na história e, como tal, com ela construído. O Direito do Trabalho é paradigmático desse espaço.

Este texto é puramente exploratório. Trago aqui reflexões mais do que propostas e análises. Uma trajetória e, como tal, como no arco e na flecha, a exigir um contorno, um recuo e uma direção. No contorno, o contexto. No recuo, um pouco de história e, na direção, princípios que orientam a trajetória da flecha. Penso em tantas pessoas ao escrever. Do organizador, professor Marcio Túlio Viana à homenageada, professora Gabriela Delgado, a síntese de uma escola mineira de Direito do Trabalho, que, sendo das Gerais é igualmente universal. Tem história, compromisso e direção.

Meu objetivo, neste trabalho, é instigar a consciência daqueles que pretendem fazer uso da CLT à luz da Constituição, como provocados pela coletânea. Mas, da mesma forma que o artesão, que ao iniciar seu trabalho, mesmo que o não saiba, tem ele teoricamente projetado, o jurista, quando pratica o direito, não prescinde de repensá-lo e reconstruí-lo. Para isso, será preciso um recuo histórico e a escolha de um tema, para pôr à prova. O tema geral é Direito do Trabalho. O mais específico, a liberdade de contratar e, no microcosmo dele, a relação de emprego protegida. O enlace macroscópico, a Constituição de 1988.

Lyra Filho, em Conferência realizada em 09 de agosto de 1982, em Porto Alegre, depois publicada em um pequeno volume da Editora Fabris1, recorda as visões reducionistas do Direito do Trabalho, "resumidas pelo notável mestre francês,

Lyon-Caen: a) o Direito do Trabalho como disciplina que legaliza a exploração capitalista, "cloroformizando" a ação operária; b) o Direito do Trabalho como disciplina que supera a luta de classes e põe termo à questão social, através de normas tutelares".

Segue dizendo que, como Lyon-Caen, rejeita as duas concepções reducionistas, para visualisar uma mistura destes dois aspectos, nas suas contradições. O Direito do Trabalho, assim, em perspectiva histórica, carrega as contradições de todo o sistema e, nas sociedades capitalistas, se converte em espaço de luta entre o capital e o trabalho. Aquele, querendo expandir-se, encontrará mecanismos legítimos de ação e contenção. Nesse sentido, o direito também representa o espaço normativo-valorativo de contenção do capital que, por sua natureza, não é axiomático. Sua tendência é a expansão sem limites.

Se tomarmos um único item para reflexão, ainda que de forma ilustrativa, poderemos ver a força dessas contradições no Direito do Trabalho.

Examinemos a questão da liberdade de contratação. Começo com a leitura de um não jurista. O professor Luiz Gonzaga Belluzzo, no seu "O capital e suas metaformoses"2 sintetiza, em uma nota de rodapé, décadas de reflexão sobre o tema do contratualismo em perspectiva liberal e seus embates:

Locke exigia vigorosa ação do Estado para disciplinar a chusma de vagabundos e desempregados. Essa rafameia deveria ser internada, para recuperação, em workhouses, verdadeiros antecessores dos campos de concentração. Alexis de Tocqueville indagava-se com as tentativas demagógicas dos trabalhadores de reduzir a jornada de trabalho, uma interferência indevida na liberdade de contratação - entre patrões e empregados. Mas não trepidava em exigir severas limitações ao afluxo da

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população do campo para as cidades. Os liberais modernos e também os contemporâneos como Hayek estão, portanto, preocupados em criar condições para que a troca de mercadorias, a venda e a compra da força de trabalho, bem como o comércio do dinheiro transcorram sem peias, regidos exclusivamente pelas normas de livre contratação. Se os indivíduos concretos se estrepam na história, porque são fracos, pobres, deficientes, é preferível deixá-los à sua sorte desgraçada do que colocar em risco a arquitetura que sustenta a operação insubstituível dos mercados. [...] A justiça adequada às funções dos proprietários independentes é meramente comutativa - do ut des. Na impossibilidade da troca de equivalentes ou da presença do equivalente geral, o dinheiro, essa forma peculiar de justiça, não reconhece nenhum outro fundamento, nenhuma legitimidade nas outras formas de reciprocidade entre os homens. Ela, a justiça dos mercados, não pretende reconhecer, na ver-dade, nenhum direito, senão o que nasce do intercâmbio de mercadorias.3

Liberais históricos foram superados pela perspectiva contemporânea, incorporada no paradigma do Estado social e, mais recentemente, aprofundada no paradigma do Estado Democrático de Direito, de onde emerge nossa Constituição de 1988.

No entanto, antes de retomar o fluxo, no direcionamento da flecha do direito do trabalho contemporâneo, retomemos o sobrevoo histórico do contexto dos embates travados ao longo dos séculos na construção desse tema.

Os historiadores Michael E. Tigar e Madeleine R. Levy, ao refazerem o trajeto histórico entre os séculos XI e XVIII em termos da "luta havida entre uma sociedade capitalista em ascensão e uma estrutura feudal em declínio", amplia nossos horizontes quanto ao papel do direito e da jurisprudência constitutivos que são da realidade econômica em transformação, em especial no debate que até hoje parece ser central, acerca da chamada liberdade de contratar no âmbito das relações de trabalho. É sabido que a teoria da liberdade contratual do direito natural foi o substrato teórico na passagem da estrutura feudal para o primado de uma burguesia comer-cial e, posteriormente, industrial:

Nas novas fábricas, operários e proprietários defrontavam-se diretamente, e não através da mediação da guilda, e faziam acordos que, em teoria, refletiam-lhes as necessidades mútuas, isentas de quaisquer limitações referentes a horas ou condições de trabalho. Leis fixando salários mínimos e exigindo que todos trabalhassem contribuíram para induzir indivíduos erradicados de atividades pastoris e agrícolas a ingressar na indústria. Para os financistas revestia-se de evidentes vantagens a instalação dessas fábricas. Isso constituía um exemplo perfeito do uso do comércio, como escrevera

Montesquieu, para criar uma ordem social baseada no direito natural.

Voltaire descrevera as guildas como uma conspiração destinada a oprimir os trabalhadores. [...] Porta-vozes das guildas, homens como Marat, por outro lado, mostravam-se um tanto ambíguos:

Nada há de melhor do que libertar todos os cidadãos dos grilhões que impedem o desenvolvimento do talento e deixam os infelizes na miséria. Mas não sei se é prudente essa liberdade plena, essa abolição de toda aprendizagem, ou de um período de treinamento em todas as ocupações. Se, na ânsia de logo enriquecer, o indivíduo põe de lado o desejo de formar uma reputação, então adeus boa-fé. Pouco depois, todos os ofícios poderão degenerar em intriga e patifaria. Uma vez que tudo o que é necessário para vender o próprio trabalho é dar-lhe certa capacidade de atrair a vista e um preço baixo, sem menor preocupação com a solidez e a perícia, todo o artesanato descerá ao nível de refugo....Isso será a ruína do consumidor pobre.

Marat escrevia como reação à adoção pela Assembléia Nacional, em março de 1791, de uma lei dispondo que "são suprimidos todos os privilégios de profissão. A partir de 1º de abril, todos os cidadãos serão livres para exercer qualquer profissão ou ocupação que desejarem, após obterem e pagarem o respectivo alvará". As guildas foram, em consequência, destruídas. Apenas o dinheiro contava - dinheiro suficiente para comprar o alvará ao Estado e estabelecer-se por conta própria.4

O que se viu, na sequência, foi a proibição dos trabalhadores se organizarem, sendo que o que começou como a "abolição dos privilégios das guildas e pequenos empregadores assumiu forma final como expressão da teoria contratual burguesa pura: que a empresa individual negociasse com o trabalhador individual"5, ou seja, uma perspectiva puramente individualista, retomada na figura simbólica do Código Civil.

Foi somente no contexto do século XX que se procurou superar a perspectiva liberal pura, ampliando as zonas de proteção do trabalho subordinado (proteção estatal) e reconhecendo o direito à associação e à Liberdade Sindical (proteção pela ação sindical efetiva).

Os limites à liberdade de contratar (e, portanto, a inter-pretação conferida às "esferas de liberdades") passam a ser exigência constitucional nas democracias contemporâneas, tanto em relação ao papel do Estado (como agente de regulação), quanto da proteção social que se estabelece por inter-médio de agentes como as entidades sindicais (igualmente produtoras de normas jurídicas pela via da negociação cole-tiva). Se, de um lado, se protege o trabalhador, de outro, beneficia as próprias empresas no mercado concorrencial, como chama a atenção Wieackerna seguinte passagem:

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[...] As limitações da liberdade contratual derivam precisamente desta função. No domínio da economia da empresa estas limitações restringem-se ao controle, do ponto de vista da economia de mercado, dos cartéis e dos preços de monopólio inadmissíveis. Por outro lado, no domínio global das empresas de abastecimento, de transporte (incluindo o transporte de mercadorias de longo curso), de seguros e das profissões liberais, a retribuição de serviços está geralmente sujeita ao tabelamento pelos poderes públicos. No domínio do comércio de produtos alimentares agrícolas, domina - tanto no interesse dos produtores agrícolas como de fixação pública de preços - uma organização dirigida do mercado, apesar de uma progressiva...

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