O Direito do Trabalho e a Negociação Coletiva no Brasil

AutorLuciano Castilho
Ocupação do AutorMinistro do Tribunal Superior do Trabalho - aposentado. Advogado em Brasília. Membro Efetivo do Instituto dos Advogados Brasileiros. Professor no Curso de Pós-Graduação no IESB.
Páginas58-66

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1. Breve visão histórica

É sempre conveniente lembrar que antes de 1930, nada, ou quase nada, existia no Brasil, com relação ao Direito do Trabalho.

O Brasil era herdeiro de uma economia agrária totalmente voltada para a Europa, sustentada, inter-namente, pelo trabalho escravo.

A população brasileira, na sua esmagadora maioria, vivia no meio rural, e padecia de enorme isolamento, com precaríssimos meios de comunicação.

Além disso, era extraordinariamente grande o índice de analfabetismo que agravava o isolamento.

José Murilo de Carvalho traça o quadro social brasileiro, no início da década de 20 do século passado, com estes dados: a população brasileira era de 20 milhões de habitantes, com 76% de analfabetos; com direito a voto, somente um milhão, destes, apenas cem mil com aptidão cívica, acrescentando, com pessimismo, que tal número poderia ser reduzido a 10 mil (cf. Cidadania no Brasil - o longo caminho. Civilização Brasileira, 2001. p. 64/65).

Assim, nesta rápida visão histórica, fica evidente que, no passado, era praticamente impossível cogitar-se de grandes movimentos trabalhistas que envolvessem os trabalhadores de todo o Brasil.

Dai poder dizer Márcio Pochmann que:

"a partir do fim da escravidão (1888) e do Império (1889), foram criadas expectativas de mudanças estruturais que se frustraram com a evolução do capitalismo no Brasil. O avanço inegável que decorreu da instalação da República foi contraposto pela democracia, com escassa participação política. O circuito econômico também permaneceu fechado, uma vez que a abolição da escravatura representou pouco mais do que a simples passagem do cativeiro para a condição de miséria, com a fome e marginalização do mercado de trabalho da maior parte da população pobre e negra." (cfr. Atlas da exclusão. São Paulo: Cortez, jan. 2005. v. 5, p. 23).

Na mesma linha, doutrina Tânia Regina de Lucca que:

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"não se pode subestimar o fato de as relações de trabalho continuarem, no início do século XX, fortemente impregnadas por padrões herdados da escravidão. A mão de obra ainda era encarada como algo que deveria ser usado e abusado sem limites. (...) Cada industrial gerenciava sua empresa da forma que melhor lhe aprouvesse: criava regulamentos internos, impunha normas quanto à idade de admissão de crianças, estipulava o valor dos salários, que poderiam ser rebaixados a qualquer momento. (...) Qualquer reclamação era tomada como uma afronta pessoal, um desacato à sua autoridade". (cfr. Indústria e trabalho na história do Brasil. Contexto, 2001. p. 27/28).

Por estas breves razões históricas, Márcio Poch-mann escreveu que o trabalho valorizado não é algo difundido no Brasil. Somente com a industrialização nacional, a partir da Revolução de 1930, é que o Brasil começou, sem terminar ainda, o caminho da valorização do trabalho humano (cf. Direito ao trabalho: da obrigação à consequência. In: PINSKI, Jaime (org.) et al. Práticas de cidadania. São Paulo: Contexto, 2004. p. 107).

Com isto não se está a sustentar que, no Brasil, a classe operária antes de 1930 não tenha lutado por melhores condições de trabalho, como aconteceu especialmente na Europa, que era o centro adiantado do mundo, naquela quadra histórica. Nem se pretende dizer que a legislação trabalhista, elaborada a partir de 1930, seja uma dádiva de Vargas, como até hoje se afirma, com absoluta abstração de nossa realidade histórica.

Movimentos operários existiram, nos poucos centros urbanos que nasciam no Brasil, onde apareceram os primeiros núcleos industriais.

Mas o eco desses movimentos, alimentados pela imigração europeia no inicio do século XX, não chegou aos muitos brasis do interior, onde estavam o núcleo forte de nossa economia e a maior parte de nossa população, respirando ainda os ares da escravidão nas relações de trabalho.

É com a Revolução de 1930 que tem início no Brasil uma forte intervenção do Estado nas relações de trabalho, quebrando a vetusta regra do pacta sunt servanda. É a partir desse momento que pode ser identificada de forma incisiva toda uma política trabalhista, previdenciária, sindical e também a instituição da Justiça do Trabalho. Acreditar na capacidade de mudança através de um Estado Forte e interventor, capaz de adotar medidas para promover um desenvolvimento voltado para dentro, tendo a indústria como mecanismo propulsor da mudança econômica e social, significava partilhar das ideias da modernidade e inserir-se no clima intelectual então vigente em boa parte do mundo capitalista, descrente das ideias do livre mercado. (cfr. GOMES, Ângela de Castro. Ideologia e trabalho no estado novo. In: PANDOLFI, Dulce (org.). Repensando o estado novo. Rio de Janeiro: FGV, 1999. p. 55. cf. ainda LEOPOLDI, Maria Antonieta P. Estratégias de ação empresarial em conjunturas de mudança política. In: Repensando o estado novo, cit., p. 115/116).

Assim, passou a ser possível ler o contrato individual do trabalho com a consideração de que as partes que o celebraram não eram iguais e que esta desigualdade deveria ser considerada pela lei e pelo juiz que a fosse aplicar. Esta conclusão era um escândalo para o direito brasileiro da década de 30 do último século, que pregava, com muito rigor, o respeito absoluto ao que havia sido contratado, sem o que seria impossível cogitar-se da segurança jurídica.

Decorreu dessa novidade trazida pelo nascente direito uma explícita e indisfarçável reação contra o Direito do Trabalho, que seria agente da insegurança jurídica, o que impediria o regular desenvolvimento do Brasil. Entendia-se que a lei trabalhista quebrava a igualdade das partes, regra basilar na sustentação dos contratos.

Neste contexto histórico, é difícil compreender de que modo foi editada a Consolidação das Leis do Trabalho, em 1943, tendo contra si o mundo empresarial brasileiro de então. Mas aprofundando-se um pouco em nossa realidade - sem o que não é possível estudar o Direito, especialmente o Direito do Trabalho - descobre-se que, basicamente nos anos 40 do século passado, a economia brasileira dependia fundamentalmente da economia agrária, pois nas cidades estava apenas uma pequena parte da população, ainda sem expressão econômica. A legislação trabalhista não se aplicava, inteiramente, ao trabalhador rural. O que somente veio a acontecer, em 1963.

Sobre esta realidade socioeconômica, é sempre lembrada esta lição grande processualista civil, Humberto Theodoro Junior:

"No sistema capitalista, Max Weber ressalta no contrato, como uma de suas fundamentais funções, a de tornar ‘previsíveis’ e ‘calculáveis’ as operações econômicas, o

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que se revela condição necessária tanto para a realizar o proveito individual de cada operador como também para funcionamento do sistema em seu conjunto. (...) ‘Partindo da igualdade e liberdade dos contratantes, não se cogita de injustiça nas cláusulas avençadas. Apenas a ordem pública e os bons costumes representam limites à autonomia da vontade, pois, na ótica do liberalismo, "não é função do Estado intervir no contrato’. ‘Dita intervenção comprometeria o equilíbrio e implicaria uma injustiça’." (Direito do consumidor. Rio de Janeiro: Forense, 2000. p. 7).

Mas daquele tempo a esta parte muita coisa mudou, na vida social e econômica do Brasil, embora, de quando em vez, parece estarmos ouvindo as mesmas vozes que verberavam as bases do direito do trabalho, como espúria herança de Vargas.

Rapidamente, cresceu o movimento industrial, que também é fruto da Revolução de 1930 e, nos anos 80 do último século, a população brasileira já se deslocara para as cidades, criando enormes problemas, ainda não resolvidos, na área da educação, da saúde, da segurança pública etc. E neste novo clima urbano, tudo ficou mais aberto aos questionamentos sociais.

Passamos até por vinte anos de intolerável regime autoritário, que foi instalado para "defender a democracia"! Devemos voltar ao emérito processualista civil Humberto Theodoro Júnior, a lecionar:

"O Estado liberal do século XIX foi substituído pelo Estado Social do século XX, que não mais se ocupa apenas da organização política da sociedade e de meras declarações de direitos fundamentais do homem, como a igualdade e a liberdade, pois, também, se encarrega de garantir direitos sociais e econômicos."

Nessa nova ordem jurídica, a intervenção do Estado no domínio do contrato deixou de ser apenas...

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