Da evolução do direito a ser deixado em paz à proteção dos dados pessoais

AutorTêmis Limberger
CargoDoutora em Direito pela Universidade Pompeu Fabra (2004)
Páginas28-49

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Introdução

Os dados pessoais têm um valor na sociedade atual voltada ao consumo, por isso é necessário que haja uma preocupação dos juristas com esse tema. 1O mundo globalizado apresenta problemas que envolvem diferentes países e, como tal, demanda soluções no âmbito nacional e internacional. Hoje, se assiste a um incremento tecnológico capaz de lesar os direitos fundamentais. Assim, os correios eletrônicos não desejados, denominados spams, representam aproximadamente 2/3 do tráfego mundial de mensagens e provocam o desperdício de tempo e dinheiro. Um estudo realizado pela União Europeia revelou que a circulação diária de lixo eletrônico por e-mail custa U$ 9,36 bilhões para os internautas a cada ano. Considerando que há aproximadamente 500 milhões de internautas no mundo, o spam tem um custo individual de U$ 20,00 (ORTUÑO, 2008).

Desta forma, instrumentos que podem ser utilizados para armazenar uma infinidade de conhecimento, bem como para transmiti-lo de uma maneira célere, são desvirtuados pelos spammers ou até pelo uso de práticas criminosas pelos hackers. Destarte, além do elevado custo econômico e desperdício de tempo que estas práticas provocam, a lesão ao direito à intimidade resta evidente. Por isso, as questões referentes às novas tecnologias e os direitos fundamentais, por afetarem a distintos países, passam por soluções de regulação na órbita jurídica internacional e nacional.

Das situações da vida cotidiana surgem possibilidades de interferência na intimidade, como as videocâmeras de segurança (colocadas em edifícios públicos e privados, especialmente em bancos e lojas) ou de controle da atividade no local de trabalho, os programas de televisão interativos e os rastreadores em Internet. Page 29 Também podem ser considerados os bancos de dados pessoais, voltados na maioria das vezes ao consumo. Percebe-se, desse modo, que o homem vigiado constantemente pelo Grande Irmão de George Orwell (1984) não é mais ficção, mas se converteu em realidade. Por isso, é atual a lição do jusfilósofo Norberto Bobbio (1992, p. 24), quando assevera: o desafio principal dos direitos do homem, atualmente, não é o de justificá-los, mas sim o de protegê-los. Este é um problema que ultrapassa a filosofia e entra no âmbito da política. Garantir a efetividade dos direitos fundamentais, em geral, e da intimidade diante do fenômeno informático, em particular, é a grande questão enfrentada pelos juristas, considerando as invasões que costumam ocorrer nos bancos de dados.

1 A importância dos direitos fundamentais frente às novas tecnologias: os perfis de consumo

A necessidade de proteger o cidadão juridicamente se origina no fato de que os dados possuem um conteúdo econômico, pela possibilidade de sua comercialização. Devido às novas técnicas da informática, a intimidade adquire outro conteúdo, uma vez que se tenta resguardar o cidadão com relação aos dados informatizados. Um cadastro pode armazenar um número quase ilimitado de informação. Assim, o indivíduo que confia seus dados deve contar com a tutela jurídica para que estes sejam utilizados corretamente, seja em entidades públicas ou privadas.

Os dados traduzem aspectos da personalidade e revelam comportamentos e preferências, permitindo até traçar um perfil psicológico dos indivíduos. Dessa maneira, podem-se detectar hábitos de consumo, que têm grande importância para a propaganda e o comércio. É possível, por meio dessas informações, produzir uma imagem total e pormenorizada da pessoa, que se poderia denominar de traços de personalidade, inclusive na esfera da intimidade. O cidadão converte-se no denominado "homem de cristal" (Sentença de 15/12/83, do TC Alemão, BCJ, 1984, p.137).

As novas tecnologias tornam a informação uma riqueza fundamental da sociedade. Os programas interativos criam uma nova mercadoria. O sujeito fornece Page 30 os dados de uma maneira súbita e espontânea e, por conseguinte, depois que estes são armazenados, esquece-se2 de que os relatou. Por isso, é um desafio oferecer proteção à intimidade com relação a esses serviços.

Os meios de comunicação interativos modificam a capacidade de coleta de dados, instituindo uma comunicação eletrônica contínua e direta entre os gestores dos novos serviços e os usuários. Portanto, é possível não só um controle do comportamento dos usuários, mas também um conhecimento mais estreito de seus costumes, inclinações, interesses e gostos. Disso deriva a possibilidade de toda uma série de empregos secundários dos dados recolhidos.

Quanto mais sofisticados são os serviços oferecidos, maior é a quota de informação pessoal deixada pelo indivíduo nas mãos do provedor do serviço, e tal informação pode ser utilizada para a criação de perfis individuais e coletivos de usuários. Além disso, quanto mais extensa a rede dos serviços, mais crescem as possibilidades de interconexão entre os cadastros ou bancos de dados e a disseminação internacional da informação recolhida3.

Por fim, a seguinte notícia ilustra o que aqui se pretende desenvolver: "Loja filma todas as reações de seus consumidores" (DÁVILA, 2002, p. A23). Diante da constatação de que as pessoas omitem ou alteram informações quando são questionadas em pesquisas de consumo, determinada loja de departamentos4 resolveu usar centenas de câmeras de circuito interno de TV, microfones ultrassensíveis e uma central de última geração na qual se concentram monitores. Os consumidores são filmados em todas as suas reações: quanto tempo ficam parados diante de um produto, qual o cartaz de ofertas que foi mais observado, quais são as expressões faciais diante das mercadorias e quais são as reações diante dos preços. O consumidor é observado como um peixe num aquário. Como advertência aos que entram na loja, foi colocado um cartaz com os seguintes dizeres: "Este lugar está sendo filmado para testes; se isso o incomoda, volte quando este aviso não estiver aqui" (DÁVILA, 2002, p. A23). Ressalte-se que o cartaz está quase sempre no local. Segundo as leis do Estado, os proprietários podem filmar e gravar o quanto quiserem, desde que fiquem longe dos provadores. Page 31

Até que ponto um pequeno cartaz é suficiente para advertir os consumidores? O consentimento para a captação dos dados está atendido? Saliente-se que, outras vezes, pode haver câmeras em locais sob o pretexto de vigilância que, na realidade, servem para observar perfis de consumo, em um completo desvio de finalidade.

Os publicitários perceberam que num questionário o consumidor pode alterar as informações, seja sonegando as que entender inadequadas, seja respondendo perguntas de forma inverídica. Assim, com as filmagens, a privacidade do consumidor está sendo fortemente invadida, visto que é mais devassada do que se ele preenchesse um formulário.

A necessidade de proteger o cidadão juridicamente se origina no valor econômico que os dados possuem, ou seja, pela possibilidade de sua comercialização. Diante das novas técnicas da informática, a intimidade adquire outro conteúdo: visa-se resguardar o cidadão com relação aos dados informatizados. Um arquivo informatizado pode guardar um número quase ilimitado de informações. Assim, o indivíduo que confia seus dados deve contar com a tutela jurídica para que estes sejam utilizados corretamente, quer se trate de um organismo público ou privado.

As novas tecnologias convertem a informação em uma riqueza fundamental da sociedade. A função da intimidade no âmbito informático não é apenas proteger a esfera privada da personalidade, garantindo que o indivíduo não seja incomodado devido à má utilização de seus dados. Pretende-se evitar, outrossim, que o cidadão seja transformado em números5, tratado como se fosse uma mercadoria, sem a consideração de seus aspectos subjetivos.

É significativo que cada vez com maior frequência sejam realizadas sondagens de opinião e perfis de consumo. Por isso, constitui um desafio oferecer proteção à intimidade do cidadão com relação a esses serviços. Page 32

3 O fenômeno informático e o Estado no contexto atual

O denominado constitucionalismo jovem europeu, que ocorre em Portugal depois da ditadura de Salazar, que culmina com a Constituição de 1976, e a Constituição Espanhola de 1978, depois de Franco, são as primeiras Cartas que preveem a utilização da informática e o resguardo dos direitos fundamentais. A primazia coube à Constituição de Portugal, que foi o primeiro texto constitucional europeu a disciplinar de forma específica a proteção de dados pessoais.

Nesse contexto, a Constituição do Brasil de 1988 surge depois da ditadura militar e se inspira nestas normas constitucionais de vanguarda. Como exemplos de contribuição, podem ser citados os institutos da inconstitucionalidade por omissão6, com inspiração na Constituição da República Portuguesa (CRP), e o habeas-data7 da Constituição Espanhola (CE), porém inexiste um dispositivo constitucional específico para violação dos dados pessoais no direito brasileiro.

O artigo 35 da CRP (que originalmente se referia a dados mecanográficos) sofreu algumas alterações para incluir a utilização da informática e os ficheiros manuais8. Catarina Sarmento e Castro posiciona-se no sentido de que a proteção constitucional vai além da epígrafe "utilização da informática",

(...) este é um direito de proteção da informação pessoal face ao uso da informática, mas também em relação a outros meios: os dados pessoais contidos em ficheiros manuais devem gozar de idêntica proteção. (2005, p. 33).

É de se destacar a posição mais de vanguarda, no sentido de reconhecer o direito à proteção da...

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