Direito do Consumo e Direito do Consumidor: reflexões oportunas

AutorAntônio Carlos Efing
CargoDoutor pela PUC/SP. Professor da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, nos cursos de graduação, pós-graduação, mestrado e doutorado
Páginas103-120

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Introdução

O direito do consumo justifica-se nas atuais sociedades e nelas encontra a sua gênese, regulando a produção e a comercialização de produtos e serviços pela ótica do consumo. Encontra-se o direito do consumidor num contexto atual, não obstante as dificuldades prementes de aplicação do diploma consumerista no caso concreto quando se trata da inversão do ônus probatório (inclusive das custas processuais), da pessoa jurídica consumidora, dentre outras dificuldades.

Tratando-se a relação entre fornecedor e consumidor de um fenômeno de massa, não se pode admitir a adoção de soluções individualistas que contrariam a conexão da sociedade de consumo com o direito.

Merecem os consumidores a devida tutela do ordenamento jurídico, enquanto classe vulnerável, para que assim possam estar protegidos frente ao fortalecimento da empresa, que se posiciona de modo a impor as regras nos contratos, gerando, desta forma, a figura dos contratos de adesão e práticas homogeneizadas no mercado de consumo.

Este estudo pretende analisar quais são as implicações jurídicas do direito do consumidor e do direito do consumo para a sociedade brasileira. Para tanto, traça-se, no primeiro capítulo, as distinções entre o direito do consumo e o direito do consumidor, com o fim de situar as características terminológicas dentro da realidade jurídica brasileira. No segundo capítulo analisa-se o direito do consumidor enquanto ramo do direito, com o fim de identificar a autonomia deste ramo. Por fim, verificam-se no cenário brasileiro as implicações da análise do direito do consumo e a dinamicidade destas relações.

1. Simetrias e assimetrias entre direito do consumo e direito do consumidor

Ao analisar a situação do consumidor no direito europeu, Mário Frota1entende que a "emergência de uma incipiente política de consumidores nos anos 70 do século XX é ainda fruto da concepção original - o consumidor é um agente econômico". Para o referido autor, a economia só prospera pelo escoamento de produtos e de serviços que a seu redor se moldam: o alvo é um só - a massa anônima de consumires2. Neste cenário o homem não é nada para além da economia, submetendo-se a ela e às suas leis, não sendo sujeito na economia, não sendo titular de direitos, mas objeto visto que é destinatário sem estatuto dos produtos, moldados à conveniência do mercado, manipulador pelos meios de que o mercado possa lançar mão3.

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Ao traçar as características entre direito do consumo e direito do consumidor é importante relembrar a lição de José de Oliveira Ascensão de que o direito, mais do que apenas um fenômeno humano, é um fenômeno social, havendo uma ligação necessária entre direito e sociedade4. Indo além, se por ordem jurídica se compreende a noção englobante em que se inscrevem as instituições, órgãos, fontes do direito, vida jurídica e situações jurídicas, por direito pode se referir ao complexo normativo que exprime esta ordem5.

A ciência do direito - que estuda o direito a partir do método jurídico - impôs a demarcação da ordem jurídica em setores ou ramos cujo conteúdo é estruturado a partir de princípios gerais que lhes sejam próprios, a fim de permitir um aprofundamento coordenado dos conteúdos neles abrangidos. Os ramos clássicos de estudo do direito, por sua vez, pela mesma necessidade organizam-se em seus respectivos sub-ramos. Conclui Ascensão que, "defeituosa ou não, a sistemática clássica tem funcionado satisfatoriamente. Enraizou-se de tal maneira que não é sensato propugnar pela sua substituição6".

No âmbito de ramificações desenvolvidas pela ciência do direito em seus estudos depara-se com a distinção a ser traçada entre a terminologia direito do consumo e direito do consumidor.

Conforme ensina Carlos Ferreira de Almeida, a expressão em português direito do consumo corresponde ao normalmente empregado no direito francês e nas obras belgas e canadenses redigidas em francês como droit de la comsommation, e pode ainda ser encontrada em obras espanholas (derecho de consumo) e italianas (diritto del consumo); já a expressão direito do consumidor corresponde ao comumente utilizado nos direitos de origem linguística anglo-saxônica (consumer law), germânica (Verbraucherrecht) ou holandesa (consumentenrecht), embora também seja encontrado em obras em espanhol (derecho del consumidor) e em português7.

Embora seja possível afirmar, inicialmente, que tanto o direito do consumidor quanto o direito do consumo se debrucem sobre o complexo de normas jurídicas de proteção aos consumidores, divergem em relação à extensão desta proteção: se, de maneira mais restrita, tenha-se por objeto somente as normas que diretamente digam respeito aos consumidores, ou se, de maneira mais ampla, abarcam-se as normas de proteção de "outras pessoas que estão à mercê da organização econômica da sociedade", regulando também o mercado de consumo8.

Almeida oferece uma interessante ferramenta para se avaliar quando se está diante da ciência do direito vertida no direito do consumo ou da ciência do direito vertida no direito do consumidor. Sintetiza a divergência concluindo que a disciplina que a ciência do direito der à proteção do consumidor em relação a regimes jurídicos mais diferenciados (como práticas comerciais, preços, informação,

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redução e limitação à livre fixação de preços, rotulagem, requisitos de segurança de alimentos, de medicamentos e de outros bens e serviços, e pressupostos para a atuação comercial), indo além do estudo dos temas nucleares como contratos de consumo, responsabilidade do fornecedor/produtor, publicidade e resolução de litígios de consumo, serve de parâmetro para a percepção de se estar diante de uma abordagem mais ampla ou mais restrita quanto ao direito do consumo (ou do consumidor)9. Além da observação dos regimes jurídicos controvertidos, Almeida acrescenta que para muitos autores a extensão do direito do consumo dependeria também do conceito de consumidor adotado, entendendo ele, no entanto, que a noção de situações jurídicas de consumo melhor serviria para delimitar seu objeto10.

Em outra ocasião tivemos a oportunidade de esclarecer em relação ao direito brasileiro que, se por um lado temos a proteção do consumidor compreendida pelo direito do consumidor, por outro toda a cadeia produtiva também possui proteção e regramento legal em sua atuação na ordem econômica e no mercado de consumo, servindo de objeto do direito do consumo. Desta forma, enquanto o direito do consumidor mais especificamente prestar-se-ia à disciplina das relações havidas entre consumidores e fornecedores na relação jurídica de consumo (observadas as equiparações legais previstas no Código brasileiro de Defesa do Consumidor - Lei 8.078/90), o direito do consumo englobaria tanto o direito do consumidor como a legislação relativa às atividades de todos os agentes econômicos11.

António Pinto Monteiro, a seu turno, defende que o termo mais adequado em face ao direito português seria direito do consumidor, pois foi com o objetivo de proteção do consumidor que se criaram normas para disciplinar a produção e distribuição de bens e a prestação de serviços. Ademais, não é a disciplina do consumo em si que seria objeto das normas jurídicas, e, sim, a criação de obrigações de defesa do consumidor a serem observadas por produtor e prestador. Conclui, por fim, que também em relação à Constituição portuguesa seria a expressão mais adequada, visto que se determina a proteção do consumidor12.

A despeito das peculiaridades do complexo de normas jurídicas de Portugal ou do Brasil (ou dos estudos de suas respectivas ciências) que envolva de forma mais ou menos direta a proteção do consumidor, o direito é fenômeno social, não do homem ou do consumidor isolado. E como fenômeno social, é encontrado na gama de expressões da realidade social que direta ou indiretamente sejam afe-

A CADEIA PRODUTIVA TAMBÉM POSSUI PROTEÇÃO E REGRAMENTO LEGAL EM SUA ATUAÇÃO NA ORDEM ECONÔMICA E NO MERCADO DE CONSUMO

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tas à proteção do consumidor. Tratando-se de relações intersubjetivas no âmbito restrito ao consumidor e produtor/fornecedor, o direito do consumidor exprime adequadamente a realidade a que dá referência; tratando-se de relações intersubjetivas que tenham impacto amplo nas relações de consumo no mercado de consumo e, por sua vez, no contexto em que se insere, na sociedade, na economia e no meio ambiente, a expressão direito do consumo mostra-se acertada.

2. A tutela jurídica do consumo enquanto ramo do direito

Reconhecendo a ligação do direito do consumidor com outros ramos do direito, haja vista o fato de ser verdadeiro micros-sistema de direito é que se verifica, por meio da releitura dos problemas sobre as relações de consumo, a submissão do consumidor frente ao fornecedor.

Quando se preconiza a autonomia do direito do consumidor ou do consumo quer-se destacar a atuação de um direito especial que visa a regular situações também peculiares, que mereçam tratamento diferenciado. Nesta perspectiva não se sustenta o argumento de que surge uma nova ciência dentro da ciência do direito, mas sim, uma subdivisão, para melhor elaboração e compreensão das normas que devem regular relações fáticas especiais, como bem diz Antonio Herman V. Benjamin13.

Nitidamente percebem-se, portanto, os pressupostos de autonomia no direito do consumidor, quais sejam: a vastidão da matéria a merecer um estudo específico; a especialidade de princípios, conceitos, teorias, e até processos especiais de interpretação de sua formulação.

Decorre a autonomia do direito do consumidor da natureza específica da relação jurídica de consumo, a particularidade quanto aos seus sujeitos no que tange aos papéis de...

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