Direito, ambiente e emancipacao social/Law, environment and social emancipation.

AutorDe Carvalho, Lidiane Eluizete

Introducao

Podera o direito ambiental ser emancipatorio? A questao parece relevante na medida em que o direito ambiental nasce, a partir dos anos 70 do seculo passado, justamente como reacao a incapacidade do arcabouco juridico "tradicional" em dar cabo de questoes e conflitos originados a partir de um bem juridico cujas caracteristicas nao se coadunam com os bens juridicos ate entao tutelados pelo Direito.

A definicao juridica de ambiente e refere "a interacao do conjunto de elementos naturais, artificiais e culturais que propiciem o desenvolvimento equilibrado da vida em todas as suas formas (Silva, 2004)." Trata-se de um bem juridico complexo, incorporeo e imaterial. Nesse sentido, se poderia falar em um macrobem juridico (Mirra, 2002) composto pela relacao sinergica entre os diversos microbens socioambientais que o compoe e cuja tutela se da na sua integralidade necessaria.

Trata-se, portanto, de um bem juridico difuso cujo tratamento prescinde de efetiva transdisciplinaridade e cujos conflitos se dao das mais variadas formas entre interesses individuais e coletivos, se permeando com questoes economicas, politicas, sociais e ambientais strictu sensu e que se inserem constantemente no contexto do uso politico do primado do conhecimento cientifico.

Estas caracteristicas peculiares e complexas do bem juridico ambiente justificaram o surgimento de um ramo especializado denominado direito ambiental, o qual e um ramo do direito publico, autonomo e dotado de principios proprios, que se relaciona com varios outros ramos do direito sem com eles se confundir, e com outras areas de conhecimento, cujo objeto e a ordenacao da qualidade do meio ambiente com vista a uma boa qualidade de vida.

A formacao e desenvolvimento deste novo ramo do direito estatal tornam extremamente complexa a compatibilidade dos institutos e principios proprios do direito ambiental com os demais ramos publicos e privados do direito positivo, desde a producao legislativa fragmentaria e economicista antes da emergencia da chamada crise ambiental, ate o tratamento internacional universalista da materia como reacao a referida crise. Esta incompatibilidade aparente acabou por gerar a ineficacia relativa de seus instrumentos progressistas e inovadores, bem como grande descredito social em suas formulacoes.

Os chamados movimentos ambientalistas se utilizaram de diversas estrategias para a consagracao de normas protetoras do meio ambiente que culminaram na reivindicacao da consagracao do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado como um direito fundamental. Estes movimentos tambem atuaram pela democratizacao das agencias publicas responsaveis pela regulacao tecnica da materia, pela execucao e fiscalizacao das normas ambientais e, principalmente, lancaram mao do judiciario para fazer cumprir os ditames legais, em especial com o apoio do Ministerio Publico, no caso brasileiro.

Mais recentemente nota-se a articulacao dos referidos movimentos ambientalistas (aos quais se integram tanto as ONGs quanto a comunidade cientifica) com diversos outros movimentos sociais que se relacionam com as demais lutas no contexto do cosmopolitismo subalterno (movimentos de genero, lutas pelo acesso a terra, justica urbana, minoria etnicas etc.). Neste sentido, e tendo em vista a abrangencia trans-escalar, transfronteirica e transdisciplinar da materia ambiental, os movimentos e lutas ambientalistas demonstram grande capacidade de articulacao com as demandas por inclusao da sociedade civil, com um todo, no contrato social ambiental atraves do uso contra-hegemonico do Estado de Direito. Trata-se de uma luta que se centra no alcance de uma efetiva cidadania ambiental.

Por um lado, os principios e proposicoes do direito ambiental poderiam ser compreendidos como uma vitoria de ambito formal das lutas ambientalistas travadas desde a emergencia da crise ambiental internacional, ou poder-se-ia concluir que se tratou da aplicacao da estrategia demoliberal de tornar a luta ambientalista mera regulacao juridica, atraves da instituicao de concessoes legais (de baixa eficacia).

Os instrumentos democraticos de dialogo entre o conhecimento cientifico e outros saberes, de ampla informacao, educacao e participacao social, de determinacao de responsabilidades compartilhadas, de defesa dos interesses das geracoes futuras, entre outros, se coadunam com as propostas defendidas no ambito das zonas de contatos - em todos os casos, bem como no direito como producao nao capitalista e, com especial destaque, no Estado como o mais recente dos movimentos sociais.

Os principios, instrumentos e a abertura normativa para criacao de instituicoes hibridas participativas experimentais, contudo, encontram muitas dificuldades de realizacao na pratica, conformando diversos contextos de atuacao ilegal dos movimentos ambientalista e forte judicializacao das demandas por justica ambiental.

No presente artigo destacaremos na primeira parte o processo de formacao historica do direito ambiental no ambito internacional e o caso brasileiro buscando evidenciar que a propria emergencia da protecao juridica ambiental se consubstanciou como um uso contra-hegemonico do Direito. Na segunda parte deste trabalho, se analisara os usos hegemonicos do Direito Ambiental e as capacidades que nele residem no ambito dos cachos de legalidade cosmopolitas. Por fim, se apresentara um possivel panorama constitutivo de um ambientalismo cosmopolita pelo qual os diversos movimentos sociais que compoe a luta anticapitalista podem tornar o Direito e o direito ambiental um instrumento de emancipacao.

  1. Direito internacional do Ambiente--surgimento e desenvolvimento

    Ha certo consenso na doutrina especializada (1) de que o Direito Ambiental emerge em meados do seculo XX em ambito internacional como reacao a chamada crise ecologica que se evidenciou a partir da ocorrencia de determinados incidentes paradigmaticos (2) de contaminacao ambiental que eram gerados no territorio de um pais e cujos efeitos negativos eram suportados por outro(s) - poluicao transfronteirica.

    Neste contexto, e a raiz da massificacao dos meios de comunicacao e da tomada de consciencia da importancia e gravidade da questao, a partir dos anos 60 assistiu-se a proliferacao de associacoes nacionais e a emergencia de diversas organizacoes da sociedade civil para a defesa do meio ambiente cuja articulacao transestatal pode ser vista como a geracao de um movimento ambientalista global. A atuacao dos movimentos ambientalistas e frequentemente festejada como motivadora do surgimento de uma opiniao publica internacional favoravel as causas ambientais e como o ator cuja pressao foi a razao ultima da mobilizacao das instituicoes internacionais sobre a questao.

    Frente a constatacao de que a utilizacao irracional dos recursos naturais poderia gerar efeitos negativos de enormes proporcoes, algumas vezes irreversiveis, e que nao havia forma de responsabilizar os agentes poluidores (coletivos ou individuais e por vezes cumulativos) evidenciada pela publicacao do relatorio intitulado "os limites do Crescimento" (Meadows, 1972), determina-se a realizacao da primeira Conferencia Internacional de Meio Ambiente Humano de 1972 na cidade de Estocolmo.

    O tratamento do tema na Conferencia de Estocolmo demonstrou, por um lado, a emergencia e importancia do tratamento da questao em ambito planetario, por outro, ilustrou as dificuldades da realizacao de um projeto global de protecao ambiental no contexto dos Estados-nacao soberanos e de suas diferentes posicoes no Sistema Mundo.

    Os paises chamados "desenvolvidos" apresentaram propostas tendentes a adocao de medidas que reduzissem o crescimento economico em escala global, culminando no encaminhamento de uma proposta de "crescimento zero". Ja os paises "em desenvolvimento" apresentaram propostas que pretendiam a responsabilizacao dos poluidores historicos - "primeiro mundo", tendo em vista que a crise ambiental adivinha do desenvolvimento acelerado dos paises centrais desde a Revolucao Industrial. Opuseram-se frontalmente a que eventuais politicas preservacionistas adotadas pudessem servir de instrumentos de interferencia nos assuntos domesticos (Soares, 2001).

    Tratou-se de um debate sobre os limites da soberania nacional no ambito das parcerias necessarias entre Estados para o tratamento global da materia ambiental que evidenciou posicoes diversas sobre o conceito de desenvolvimento. A primeira Cimeira da Terra foi, portanto, um palco para as disputas entre as concepcoes do sul e do norte global.

    O resultado da Conferencia, a Declaracao de Estocolmo consubstanciou-se um documento composto por um preambulo de sete pontos e vinte e seis principios que, funcionam, como de costume no Sistema de Direito Internacional Publico, como recomendacoes aos paises, portanto, sem forca normativa (soft law). Contudo, esta Declaracao, sem sombra de duvidas, inspirou a internalizacao de normas de protecao ambiental em diversas nacoes do globo.

    Nesta carta de principios se denota o carater extremamente amplo das demandas, conflitos e questoes relativas ao meio ambiente e a necessidade de um tratamento trans-escalar e transfronteirico do tema. Tratar-se-ia de uma tematica que potencialmente inspirava a constituicao de uma efetiva cidadania global, tendo em vista a dependencia do futuro comum da humanidade e a nao possibilidade de conter os riscos ambientais no tempo-espaco do Estado Nacao.

    Desde entao, um vastissimo numero de conferencias e tratados internacionais se realizaram no campo da protecao ambiental. Destaca-se a realizacao em 1992 da Conferencia sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento realizada no Rio de Janeiro (Eco-92), que mais de vinte anos depois de Estocolmo, procedeu a revisao do desenvolvimento do Direito Ambiental Internacional e consagracao do principio do desenvolvimento sustentavel.

    Ja naquela ocasiao se constatava a internalizacao e constitucionalizacao da protecao ao meio ambiente, em especial nos paises que experimentarao...

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