O direito de adotar uma criança

AutorSilvane Maria Marchesini
Ocupação do AutorJurista. Psicóloga. Psicanalista. Pós-Graduada, Mestra em Psicologia Clínica
Páginas127-137

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Uma vez constatado, graças à pesquisa teórica, e aos casos clínicos, que há uma mutação inédita nos laços sociais e familiais, e que novas parentalidades surgiram, estimuladas excessivamente pelos progressos da procriação medicamente assistida (PMA), nós gostaríamos de contestar certas ideias, e notadamente aquela de "que temos sempre o direito a fabricar ou a adotar uma criança".

A constituição da família, no sentido social ou jurídico, é primeiro e, sobretudo, a filiação, até mesmo a adoção. Nós vimos que há um grande questionamento no meio do cientíico sobre "o que é hoje em dia uma família?". Nós vimos também que certos defeitos em relação à Lei de Castração, isto é, à Lei do Nome-do-Pai, constituída na história pessoal de cada um, não permitem às mães ou aos pais de se inscreverem como referência no inconsciente de suas crianças. Esta problemática, então, faz parte da discussão sobre a adoção das crianças pelas novas modalidades de famílias e, mais especiica-mente, da homoparentalidade.

A adoção muda a filiação e depende de três coisas: do desejo, da biologia e da lei. É uma instituição jurídica que varia de um país ao outro. Ela é uma resposta cultural a um dado momento, às necessidades de uma criança, mas também, às necessidades e aos projetos daqueles que postulam a ser parentes adotantes. Estes se fazem prazer, não somente em se oferecendo uma criança, geralmente por causa de uma esterilidade, mas, sobretudo, em se oferecendo uma família. A questão crucial, então, é de querer ser parente de uma criança que não se gerou, que foi gerada por outros, e que possui em si uma riqueza que não vem dos adotantes. E se eles não possuem "desejo de criança" a adoção será forçosamente fracassada.

Infelizmente, atualmente, o projeto de adoção parece, de fato, sobrevir após o dito "direito a ter uma criança" eis que a tecnociência permite a cada um fabricar suas crianças. Mas os aspectos psicológicos, conscientes e inconscientes, da adoção de uma criança são complexos e exigem um trabalho de luto do "desejo de criança" biológica.

Na Revista Internacional "A Clínica Lacaniana", no volume consagrado ao tema "A adoção", o psicanalista Nazir Hamad expõe, no artigo intitulado "O que faz família? O exemplo da adoção"384, uma leitura a partir da dinâmica deste encontro que engloba a família biológica, a família substitutiva e a criança.

Ele ressalta que este encontro implica cada um da seguinte maneira:

O casal est?ril demanda adotar uma criança a im de aceder ao estatuto de parentes e de construir uma família. [...] Todavia, a criança em busca de uma família não abandona sempre sua família biológica. Ela a tem em si, a tal ponto, que nenhuma outra família está autorizada a tomar este lugar. Aliás, quando se tem a oportunidade de encontrar e de trabalhar com as crianças adotivas, não é raro escutá-las falar de verdadeiros e de falsos parentes. "A verdadeira" e "a falsa família" são duas expressões frequentemente utilizadas por elas para marcar os limites entre a família biológica e a família substitutiva385.

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A partir destas expressões, o autor se pergunta se há referências universais que permitem a cada um julgar se as pessoas que a cercam são os membros da família? E ele organiza alguns eixos de trabalho para mostrar que isso funciona nas relações da adoção.

Caso se admita que o laço de sangue é um valor incontornável na construção dos laços familiais, o verdadeiro pai e a verdadeira mãe seriam os parentes genitores. Mas caso se admita este ponto de partida, por que, em caso de abandono, os verdadeiros pais não asseguram mais esta função reconhecida pelo corpo social e legitimada por esta marca inde-?vel, a marca do patrimônio ge?tico? E, por que, ainda, um outro casal se reconhece como parente de uma criança que não colocou no mundo? 386

Habitualmente, os adotantes demandam uma criança "ainda não criada" para dela fazer sua própria criança, e a pequena-criança é chamada para responder a seus fantasmas. Eles demandam uma pequena criança porque eles pensam que os grandes já possuem seus caráteres e lhes escaparão como Sujeito. "A adoção, vista sob este ângulo, aparece como uma operação singular durante a qual uma criança sem cará-ter ? criada ? imagem da família adotiva e autentiicada pela outorga do nome patronímico".387

Todavia, o assujeitamento da criança ao desejo de um adulto não é especíico ?s crianças adotadas. Segundo Freud, a criança imaginária sustenta o narcisismo dos parentes. Toda criança, adotiva ou biológica, é chamada a realizar o que os próprios parentes não conseguiram realizar por si mesmos, e neste sentido, incumbe-lhe de cicatrizar as feridas narcísicas que a realidade lhes infringe. "Por outro lado, o que há de especíico na criança adotada, ? que a realidade de sua história já lhe infringiu esta ferida do fato de seu abandono".388

As crianças adotadas devem fazer o luto de suas origens, de suas iguras de ideal. Geralmente, elas têm diiculdade de tomar a medida da amplitude do traumatismo causado pela separação precoce de seus parentes. Mas, para adotar seus novos parentes, elas têm antes que lidar com um abandono real, aquele da história de seus nascimentos. Assim, elas precisam de novos tutores que saibam respeitar a dor, o luto, e o conlito entre o amor e o ódio. "A adoção recíproca se faz diariamente, não sem diiculdades. Aliás, é inimaginável que a adoção se faça sem constrangimentos que colocam os desejos de criança dos diversos parceiros a rudes provas".389

Hamad390 acredita que há diiculdades inevitáveis ligadas à adoção. Na sua demanda de ado-ção, os casais afirmam que se sentem igualmente concernidos pela criança e pelo seu futuro. O homem e a mulher apagam-se atrás da entidade sociológica de casal para homogeneizar seus desejos e seus fantasmas.

Quando a esterilidade se revela intransponível, e quando todas as tentativas de inseminação arti-icial são vãs, o casal se coloca a esperar uma criança semelhante:

"Dá-se-lhes uma criança". A mulher não espera mais esta criança de seu homem e o homem não faz uma criança em sua mulher. "Querido, faz-me uma criança!" não é mais esta demanda urgente que o corpo de uma mulher, que o desejo de uma mulher endereça ao homem o qual ela deseja fazer o pai de sua criança. Homem e mulher não se fazem esta criança "uma criança de ti", pois em qualquer caso, a criança se faz sem eles. Eles fazem uma criança contigo. [...] O que se apresenta, no curso das diversas entrevistas psicológicas, como sendo um casal homogêneo não resiste por muito tempo à prova da chegada da criança. De súbito, a criança real se destaca da criança fantasmática e o casal se dessolidariza para deixar emergir a diferença dos sexos. A criança real destaca o homem da mulher na medida em que ela reatualiza, coloca em jogo para cada um os fantasmas em relação aos cenários sexuais infantis. O casal aprende a seu detrimento que ele não existe, apesar de tudo o que se projeta como fantasma concernindo a identidade de pontos de vistas, ou a potência do amor. Cada um vai se encontrar regido por seu próprio fantasma, por sua verdade inconsciente e pelo sentimento de dívida que se experimenta à vista do outro ao qual não se pôde dar uma criança biológica. A criança real vai questionar a realidade do desejo de criança para cada um e, por conseguinte ela empurra cada um a se determinar quanto ao seu lugar próximo do outro cônjuge, e quanto ? sua função próxima da criança. Não se conta mais o número de casais que se desfazem após a chegada da criança que era, todavia muito esperada.391

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A criança, quanto a ela, apresenta uma problemática particular a qual se resume em algumas observações. Mesmo quando ela alcança a idade adulta, ela faz como se "a criança adotada" não possuísse o direito de garantir ou de se liberar do que parece ser uma marca ou um título de propriedade. Ela evoca um antes e um depois para signiicar que o destino que devia ser o seu no quadro de sua família biológica não é mais o mesmo. A criança constata uma mudança radical na ordem de sua vida, que não cessa de enganar as pistas para ela. A questão que aparece sempre é a possibilidade de um retorno ao passado a im de reencontrar o momento da origem. E ainda, se há dois parentes de nascimento e dois parentes de adoção, como pode ela se organizar com a dívida simbólica?

Eu denomino de dívida simbólica: dar aos parentes, aos nossos parentes, pequenas crianças que perpetuem o nome e o patrimônio ge?tico. Então, trata-se da mesma dívida para com os parentes adotivos? O que podemos dar em contrapartida de seu amor, de sua bondade, de sua presença quando os outros se assinalam pelo seu defeito? Como se quitar esta dívida ao olhar de seus parentes biológicos? Denomino esta dívida, a dívida imaginária, uma dívida que, pela sua persistência, gera tanto a culpabilidade, quanto o ódio em relação àqueles que nos amam.

Se há aí dois que ocupam o mesmo lugar, com cada um o mistério de sua presença ou de sua ausência, a demanda de um não faz senão encandecer o mistério da ausência do outro. Partindo desta constatação, o quadro do Édipo torna-se indissociável de sua exposição. Um tal postulado nos autoriza a colocar a hipótese de um real que se vive como historicidade e de uma divisão que opera para o sujeito entre dois tempos colocados como sendo igualmente históricos.

O mistério da origem para a criança adotiva parece terminar na geração perdida. É impossível para elas remontar as gerações para constituir, como para todo indivíduo, a árvore genealógica. A filiação para elas pode pegar ?s vezes esta virada particular que consiste em buscar traços de semelhança na cabeça das pessoas pertencendo à geração dos parentes perdidos na esperança secreta de reencontrar os parentes biológicos. Neste caso, o luto de seus parentes demora a se fazer, mais ainda, ocorre à criança adotada de se identiicar aos restos justamente a im de justiicar seu abandono. [...] E, no entanto isso funciona frequentemente. Uma...

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