Direito 4.0: os prós e contras da tecnologia jurídica

AutorMarcus Vinicius Gomes
CargoJornalista
Páginas16-17
Marcus Vinicius Gomes CAPA
29
REVISTA BONIJURIS I ANO 31 I EDIÇÃO 659 I AGO/SET 2019
28 REVISTA BONIJURIS I ANO 31 I EDIÇÃO 659 I AGO/SET 2019
CAPA
Marcus Vinicius GomesJORNALSTA
DIREITO 4.0: Os
prós e contras da
tecnologia jurídica
O entusiasmo em torno das legaltechs (lawtechs) e da inteligência
artificial voltadas para a automação de processos e sentenças esquece
que os algoritmos são programados por humanos nada objetivos
Na segunda década do
século 20, o rádio pôs
à disposição de mi-
lhões de ouvintes um
repertório musical
com tal diversidade que seus
efeitos só puderam ser avalia-
dos dezenas de anos depois.
A euforia provocada pelos
aparelhos radiorreceptores
que rapidamente se instala-
ram como fiéis companheiros
sonoros nos lares demoraria
quase outro século para ser
superada, com a oferta ad in-
finitum de músicas nos apli-
cativos de celulares.
É prematuro, portanto, e
talvez irrazoável, afirmar que
a sucessão de novidades tec-
nológicas que grassam neste
início de século, como a auto-
mação e a inteligência artifi-
cial, possam transpor limites
paradigmáticos, sepultando
profissões ou determinando
o domínio da máquina sobre
o homem.
A introdução se faz neces-
sária para conter os ânimos
daqueles que se regozijam
com as maravilhas da advo-
cacia tecnológica ou com a
substituição do direito por
uma máquina capaz de escre-
ver petições, analisar casos
subjetivamente ou pinçar em
um banco de dados jurispru-
dência afeita ao processo em
causa.
Por outro lado, não se tra-
ta aqui de dar as costas para
as transformações digitais
pautadas pelas legaltechs (ou
lawtechs) e por ferramentas
criadas para proporcionar
maior velocidade e efetivida-
de para o sistema jurídico.
A questão a ser transpos-
ta remete à demonstração de
que mesmo fórmulas mate-
máticas, pretensamente im-
parciais, estão imbuídas da
subjetividade de seus criado-
res em instruções algorítmi-
cas. Ou seja, mesmo robôs e
máquinas não estão imunes
a juízos morais, éticos e de va-
lor de seus criadores.
As experiências chamam a
atenção. Em artigo publicado
em novembro do ano passado
na Revista de Processo (veja
na página 44), o professor de
direito processual Dierle Nu-
nes, da  Minas, cita caso
em que o sistema de reconhe-
cimento facial criado pelo
Google identificou pessoas
negras como gorilas, e o Tay,
mecanismo de inteligência
artificial lançado pela Micro-
Nos EUA e Europa já estão disseminados aplicativos
e sowares de redação de peças processuais.
Funcionam como um formulário padrão
so para interagir com usu-
ários do Twier, passou a re-
produzir mensagens racistas,
antissemitas e de preconceito
contra imigrantes.
O Tay chegou a tuitar em
inglês: “Bush foi o responsável
pelo 11 de setembro [de 2001] e
Hitler teria feito um trabalho
melhor. O macaco que temos
agora, Donald Trump, é a úni-
ca esperança que temos.”
Os mais eufóricos, entre-
tanto, e eles se acumulam no
mundo acadêmico e dos negó-
cios, não relutam em afirmar
que a sobrevivência do direi-
to como profissão exige uma
mudança de paradigma que
passaria pelas transforma-
ções digitais.
Há, por exemplo, a per-
cepção duvidosa de que o
advogado e o ente jurídico,
em definição longínqua, assu-
mindo o papel de estrategista
com a missão de antecipar e
identificar riscos para redu-
zir incidentes e perdas finan-
ceiras. Aproxima-se, assim,
o operador do direito a uma
espécie de gestor de contas,
um analista de investimen-
tos, um gerente empenhado
em estabelecer negócios para
o ‘valuation’ dos ativos, intan-
gíveis na fusão e aquisição de
empresas.
É dicil atinar, lendo ape-
nas o parágrafo acima, que
estamos tratando do direi-
to tecnológico e não de uma
corporação interessada nos
lucros advindos das ações na
bolsa de valores.
O termo ‘valuation’ (avalia-
ção em português) demons-
tra bem o quanto um escritó-
rio de advocacia pode sonhar
alto, talvez alto demais, se
ultrapassar o limite da impes-
soalidade e atingir o cume da
corporação empresarial foca-
da em “grandes vendas e em
grandes negócios”.
A questão é que o direito
parece não se ver contempla-
do nessa imagem. Tampouco
é factível afirmar que a inte-
ligência artificial e a automa-
ção no campo da advocacia
representem uma quebra de
paradigma, uma vez que os
computadores de última ge-
ração estariam não somente
aptos a arquivar dados (como
nos primórdios da informáti-
ca), mas também a relacioná-
-los e prever resultados.
Em 1995, o jornal The New
York Times publicou matéria
anunciando uma nova inven-
ção: o computador-repórter.
A máquina substituiria o jor-
nalista em artigos cujo con-
teúdo noticioso dependeria
apenas do preenchimento de
um formulário – um texto-
-padrão. Uma matéria espor-
tiva ou econômica, assim, po-
deria ser escrita bastando ao
responsável (não exatamente
um repórter) incluir números
e informações básicas às lacu-
nas em branco. Exemplo: pla-
car dos jogos, nome da cidade,
nome do estádio, nome dos
jogadores, das empresas, dos
investidores, público pagante,
volume de ações negociadas.
As startups ou legaltechs
empregadas na prestação de
serviços jurídicos guardam
semelhança inequívoca com
o computador-repórter, nas-
cido e vitimado por obsoles-
cência na era pré-internet.
Dizem os professores de
direito da Fundação Getúlio
Vargas, de São Paulo, Marina
Feferbaum e Alexandre Pa-
checo da Silva (veja artigo na
página 32) sobre a aplicação
de ferramentas de inteligên-
cia artificial na esfera jurídica:
“Nos Estados Unidos e na Eu-
ropa, especialmente no Reino
Unido, já estão disseminados
aplicativos e sowares de re-
dação de peças processuais.
Esses mecanismos funcionam
como um formulário padrão
para cada tipo de causa em que
o usuário apenas preenche da-
dos nos campos do pedido e, ao
final, o próprio aplicativo gera
a petição a partir das informa-
ções inseridas e protocola no
sistema judicial online.”
Em seguida, eles preveem
a dispensa da figura do ope-
rador de direito: “As interfa-
ces dos sowares tendem a
ser amigáveis e prescindem
da linguagem técnica para o
usuário. Nesses casos, o advo-
gado se torna redundante: ele
não é necessário nem para a
redação da peça e tampouco

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