O Assédio Moral no Ambiente de Trabalho: em busca de um novo conceito assediante

AutorRenato de Almeida Oliveira Muçouçah
Ocupação do AutorProfessor Adjunto da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlândia (UFU)
Páginas133-175

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1. O conceito de assédio moral
1.1. Introdução ao ass édio moral: do coletivo ao individual

O assédio moral parece ter o mesmo nascedouro dos direitos individuais e, também, do próprio direito do trabalho, guardadas as devidas proporções. O abandono de uma posição holística, que privilegia o indivíduo isolado em detrimento do grupo, já se fez notar no século XVII315, no início da formação dos direitos do indivíduo que sobrepujam, em sua origem, os direitos coletivos.

No surgimento do próprio direito do trabalho, notamos que a produção em massa e a possibilidade de lucro incessante, sem depender mais das vicissitudes várias da natureza (como no regime feudal), engendrava a necessidade de segurança e liberdade. Qualquer movimento em contrário deveria ser sumariamente reprimido. A Lei Le Chapelier, de 1791, neste sentido foi paradigmal e formou conceito: demonstrava ojeriza aos grupos profissionais corporativos, porque isto significava controle de produção, monopólio, direção, limite, rotina, medo do futuro etc.; liberdade deveria ser a palavra de ordem, no sentido de que cada um escolhesse a profissão que lhe aprouvesse, sem proscrições de grupos ou do Estado.

Seria este o estímulo à produtividade, à autogestão do capital. A proteção a tais valores deveria ser tamanha que faria justiça, sem sombra de dúvidas, à majestade da tutela penal; neste diapasão o Código Penal Napoleônico de 1810, o punir com prisão e multa qualquer tentativa de coligação dos operários, seja para

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fazer cessar o trabalho, seja para impedi-lo316. A liberdade existia enquanto de comércio e de indústria, mas jamais tendo por escopo a promoção da dignidade da pessoa do trabalhador, dentro e fora de seu local de trabalho, na perspectiva da defesa de interesses coletivos. Disso decorre, como já discorremos, a formação do contrato individual de trabalho, negócio jurídico entre particulares e que valoriza, sobremaneira, a autonomia privada dos indivíduos.

O assédio moral não foge à regra histórica da gênese coletiva que requer individualização. No início dos anos 2000 a justiça italiana chegou a afirmar que o assédio empresarial é inicialmente coletivo, compreendendo um conjunto de atos formalmente legítimos e aparentemente inofensivos, que exige dolo específico e individualização para aperfeiçoar-lhe o conceito317. Portanto, assédio moral somente poderia ser aquele em que se pudesse individualizar agressor e agredido.

1.2. O conceito jurídico de ass édio moral

Martha Halfeld Furtado de Mendonça Schmidt afirma que, em face da modernização das relações de trabalho e da hierarquia rígida das empresas como um todo, encontra-se o favorecimento de situações de assédio que não são apenas sexuais, mas também psicológicos ou morais318.

A autora, neste artigo que pode ser considerado um dos pioneiros sobre o tema, conferiu-nos seu conceito de assédio moral: para ela, poderia ser considerado como espécie de “abuso emocional no local de trabalho, de forma maliciosa [...], com o fim de afastar o empregado das relações profissionais, através de boatos, intimidações, descrédito e isolamento”319. Mais à frente, de maneira sintética, define-o como “um assédio pela degradação deliberada das condições de trabalho”320, o que reforça, ainda mais, o liame existente entre assédio moral e meio ambiente do trabalho.

As definições acerca de assédio moral, a partir de então, começaram a tomar rumos os mais diversos; não há no ordenamento jurídico brasileiro qualquer previsão específica que esquadrinhe os contornos de tal conceito, e a doutrina e a jurisprudência ainda são bastante tímidas neste sentido, embora seja o fenômeno algo já bastante antigo. Também conhecido como psicoterrorismo, o conceito foi ampliado pela psiquiatra Marie-France Hirigoyen, conforme já exposto na Introdução desta obra.

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Com base em suas pesquisas clínicas, a psiquiatra oferece, em outro livro321, inúmeros exemplos de assédio moral retirados de suas investigações. O assédio desenvolve-se em duas fases: na primeira, a vítima sofre um processo perverso de sedução, em que principia no caminho da desestabilização e na perda de confiança em si mesma. Nesta, não se busca destruir o empregado, mas apenas manter o poder e o controle sobre ele para, ato seguinte — e aí já se adentra os campos da segunda fase — a violência insidiosa torna-se manifesta.

Desta feita, o agente ativo do assédio moral, doravante denominado assediante ou agressor, poderá, dentre outras ações: a) recusar a comunicação direta com o assediado. Trata-se de uma forma muito velada de violência: a vítima não compreende porque o agressor se recusa a conversar com ela. Ele a reprova com o olhar, ou gestos, mas verbalmente nega qualquer relação conflituosa ou animosidade. Assim, o assediado não consegue defender-se, discutir, encontrar conjuntamente uma solução para um hipotético desconforto que ele pensa ter causado ao agressor. A recusa ao diálogo, assim, denota à vítima — e aos seus colegas — que esta é equiparável a uma res, que não tem sequer o direito à palavra.

Em outras ocasiões, porém, a comunicação entre agressor e vítima pode existir:
b) a comunicação existe, mas numa tonalidade deformada. No afã de agredir reiteradamente sua vítima, o assediador utiliza-se de uma voz fria, monocórdica, diversa daquela utilizada para com os demais empregados. Traduz-se também o assédio na emissão de mensagens confusas, visando desestabilizar o quadro emocional do outro para, ato seguinte, culpá-lo pela suposta instabilidade.

Outra forma encontrada nas pesquisas de campo da psiquiatra situa-se no campo da: c) mentira. Mentir também auxilia a prática do assédio: conglobam-se fatos subentendidos e outros mal-entendidos para, ao cabo, criar situações que não correspondem à realidade e que contribuem para a criação de má fama à vítima. Neste sentido, também, a zombaria: criar situações vexatórias, ou ridicularizar determinadas posições, pensamentos ou situações da vítima, também podem constituir assédio.

Outro exemplo dado pela autora: d) desqualificação da vítima. Desqualificar a vítima também é um elemento eficaz para a sedução perversa, primeira fase do assédio moral. Com efeito, muitas vezes o assediado passa a crer e, ainda mais, assumir como verdade a imposição malsã que lhe foi conferida. E isto se agrava quando, no posto de agressor, encontra-se a parte mais forte: aquela que impor-lhe-á os efeitos de seu poder, os quais deverão ser tidos como verdades — ainda que exclusivamente dentro dos ambientes de trabalho.

Todos os autores brasileiros consultados citam as obras da psiquiatra como referência para a conceituação e delimitação das práticas de assédio moral,

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tal como posto no presente trabalho. Alguns tomam como suas as palavras de Hirigoyen, sem sequer questionar alguns de seus conceitos: assim são as definição e delimitações de César Luís Pacheco Glöckner322, André Luiz Souza Aguiar323, Jorge Luiz de Oliveira da Silva324, Sebastião Vieira Caixeta325, Cláudio Armando Couce de Menezes326, José Affonso Dallegrave Neto327, Euler Sinoir de Oliveira328, Hádassa Dolores Bonilha Ferreira329e Maria Aparecida Alkimin330, dentre outros.

Tal fato demonstra, de maneira incontestável, a credibilidade de que gozam os conceitos expostos por Marie-France Hirigoyen. No entanto, grande parcela dos autores citados vão além do que afirma a psiquiatra, de molde a criar um verdadeiro discurso jurídico-psiquiátrico do que é o assédio moral. Assim, seriam assédio moral apenas aqueles que causem um grave dano psíquico, podendo causar prejuízos na esfera social e econômica do empregado331.

Em plagas ainda mais distantes vai Sônia Mascaro Nascimento332, quando defende que a lesão à personalidade do indivíduo é requisito suficiente para a responsabilização civil do agressor por danos morais, mas não evidencia a prática de assédio moral. Este dependeria da prova técnica de ocorrência de dano psíquico, tendência essa, aliás, corroborada por julgados lastreados, todos eles, na doutrina jurídica que se tem elaborado em nosso país.

No entanto, com o devido respeito, não concordamos com o caráter de perseguição psicológica do assédio moral. Inicialmente, pelas próprias palavras já citadas de Hirigoyen: o assédio é, de fato, uma conduta abusiva (gesto, palavra, comportamento ou atitude) que atente, por sua repetição ou sistematização, contra a dignidade ou integridade psíquica ou física de uma pessoa. Assim, não se pode tomar a causa pelo seu efeito: o desrespeito à dignidade da pessoa humana que

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seja reiterado, sistemático, protraindo-se no tempo, poderá causar danos psíquicos ou mesmo físicos a uma pessoa. Quando se atenta diretamente contra a dignidade humana, podemos ter efeitos vários: dano moral, dano psíquico, dano físico, dano existencial ou, simplesmente, dano algum. De qualquer forma, o assédio moral restará configurado, por razões que ainda iremos expor.

Ressalvamos, porém, que quando o objeto do assédio não é o atentado à dignidade humana, e sim à própria integridade psíquica ou física da vítima, visando desestabilizá-la emocionalmente, aí sim teremos um assédio moral de vertente psicológica, que os espanhóis costumam denominar acoso psíquico. Este termo, segundo Francisco González Navarro, distingue-se absolutamente do termo “acosso moral”: esta terminologia possui, a seu ver, uma carência de precisão, pois se emprega o termo moral da mesma forma como o é empregado em situações extrapatrimoniais, como a responsabilização por...

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