O assédio moral e os direitos de personalidade do trabalhador

AutorAmaury Haruo Mori
CargoJuiz do Trabalho no Estado do Paraná
Páginas161-179

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1. Delimitação do tema

Esta pesquisa tem por objetivo evidenciar um problema antigo, há muito pouco tempo identificado2, e que está, pelos seus efeitos, intimamente relacionado com os direitos de personalidade da pessoa humana. Trata-se do assédio moral.

O fenômeno ocorre em diversos contextos sociais, e se concretiza com muita frequência no ambiente das relações de emprego, nas quais o trabalhador se encontra juridicamente subordinado pela autoridade e direção do empregador3. Delimita-se o estudo dentro deste contexto, ou seja, da relação do assédio moral com os direitos de personalidade do trabalhador.

A importância jurídica do tema reside na necessidade de efetiva proteção da dignidade humana do trabalhador pelo direito positivo, com a firme convicção de que “a pessoa humana constitui o fundamento ético-ontológico do Direito4”. O ordenamento jurídico não pode permitir que uma pessoa seja moral e fisicamente desrespeitada no lugar onde ganha o meio para sua subsistência. Ademais, torna-se importante ressaltar que o trabalho é, para além de um meio de subsistência do ser humano, um modo de satisfação e realização pessoal5, no seu desenvolvimento físico, intelectual e moral.

A importância prática do tema revela-se nas inúmeras ocorrências de ofensas aos direitos de personalidade por assédio moral, nesta espécie de relação jurídica. As pessoas, em geral, dependem do trabalho para sobreviver, sendo que a grande maioria destas pessoas é parte de

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um contrato de trabalho. Portanto, a maior parte das pessoas, durante a maior parte de suas vidas, está sujeita a um possível assédio moral. A doutrina confirma esta assertiva com a apresentação de estatísticas alarmantes que revelam que pelo menos dezoito milhões de europeus já foram vítimas de assédio moral6.

A problemática está na adequada identificação do fenômeno, bem como na análise da forma pela qual o assédio moral promovido pelo empregador interfere nos direitos de personalidade do trabalhador, e dos meios de proteção jurídica com os quais pode a vítima se socorrer. A divisão sistemática do trabalho segue esta ordem, destinando uma parte para cada um destes aspectos do problema.

Com efeito, o consenso sobre a importância jurídica e prática do tema não é suficiente para resolver o problema da identificação jurídica do fenômeno, diante da circunstância especial verificada na relação jurídica de emprego em que, como se disse, uma das partes tem o direito de administrar o empreendimento e ali exercer uma autoridade, e a outra parte obriga-se a prestar serviços de forma juridicamente subordinada. Até que ponto o ato de poder do empregador representa um ato legítimo ou ilícito? E ademais, sendo uma situação que não se pode desconsiderar, como se resolve a questão do abuso de direito pela falsa alegação de assédio moral? Os problemas se resolvem pelo estudo das condições e características do assédio moral, da forma como este fenômeno atinge determinados direitos de personalidade do trabalhador, e dos meios de proteção oferecidos à vítima pela ordem jurídica.

Com o espírito crítico e aberto a argumentos novos, estas questões são suscitadas com esperança de que as respostas possam de alguma forma contribuir para o debate em prol do aprimoramento da adequada defesa da dignidade humana do trabalhador.

2. Assédio moral na relação jurídica de emprego
2.1. Conceito

O fenômeno do assédio moral tem sido objeto de estudos interdisciplinares, nomeadamente da Medicina, da Psicologia, da Sociologia e do Direito7, o que demonstra a importância do tema sob análise. O assédio importa em evidente e inocultável afronta à dignidade do ser humano, que igualmente constitui objeto de muitos estudos filosóficos que o consideram sob a perspectiva da centralidade do homem em relação ao universo8. Este trabalho procura focalizar o tema sob a ótica jurídica, de modo a verificar como a inter-relação do Direito Civil com o Direito do Trabalho9 contribui para a solução da problemática. Não obstante, é preciso considerar o conhecimento interdisciplinar existente para identificação do fenômeno, com vista à efetiva proteção jurídica do ser humano, enquanto trabalhador.

Conforme ressalta a doutrina10, o assédio somente foi especificamente regulamentado pelo Direito do Trabalho em Portugal com a entrada em vigor de seu atual Código do Trabalho, sendo que antes poucos e dispersos dispositivos legais se limitavam a dispor sobre o dever do empregador de proporcionar boas condições de trabalho, em condições de disciplina, segurança, higiene e moralidade. Havia previsão de aplicação de sanções aos trabalhadores que provocassem ou

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criassem risco de desmoralizar os companheiros, além da legal constituição da justa causa para rescisão do contrato por atos que importassem em ofensa à integridade física do trabalhador, à sua liberdade, honra ou dignidade.

O número 2 do art. 24º do atual Código do Trabalho define o assédio como todo o comportamento indesejado relacionado com um dos fatores indicados no número 1 do art. 23º, praticado aquando do acesso ao emprego ou no próprio emprego, trabalho ou formação profissional, com o objetivo ou o efeito de afetar a dignidade da pessoa ou criar um ambiente intimidativo, hostil, degradante, humilhante ou desestabilizador. O número 1 do art. 23o do Código proíbe o empregador de praticar qualquer discriminação, direta ou indireta, baseada, nomeadamente, na ascendência, idade, sexo, orientação sexual, estado civil, situação familiar, patrimônio genético, capacidade de trabalho reduzida, deficiência ou doença crônica, nacionalidade, origem étnica, religião, convicções políticas ou ideológicas e filiação sindical.

Portanto, o Código equipara o assédio ao ato de discriminação (número 2 do art. 24º) tanto que também dispõe que constitui discriminação o assédio a candidato a emprego e a trabalhador (número 1, do mesmo artigo).

O art. 32º da Lei n. 35/2004, de 29 de julho, que regulamenta o Código do Trabalho, amplia os fatores de discriminação indicados no Código para incluir o território de origem, a língua, a raça, a instrução, a situação econômica e a origem ou condição social (número 1). Ainda, o número 2 do mesmo artigo faz a distinção entre discriminação direta e indireta. No primeiro caso, trata-se do próprio tratamento diferenciado dado a pessoas que se encontram em situações comparáveis. No segundo caso, trata-se da situação em que uma disposição, critério ou prática aparentemente neutra, mas objetivamente injustificada e realizada por meio inadequado ou desnecessário para alcançar um fim, ainda que legítimo, seja suscetível de colocar em posição de desvantagem pessoas em situações comparáveis. Finalmente, o número 3 do mesmo artigo dispõe que constitui discriminação uma ordem ou instrução que tenha a finalidade de prejudicar pessoas em razões dos fatores já mencionados.

Apesar da ampliação promovida pelo Regulamento, entende-se adequada a interpretação de que os fatores indicados no número 1 do art. 23º do Código do Trabalho são meramente exemplificativos, admitindo-se que o comportamento indesejado para caracterizar o assédio moral não esteja sequer relacionado com um fator específico expressamente indicado.

Entretanto, a definição adotada pelo Código do Trabalho e pelo seu Regulamento merece a crítica de caracterizar a ocorrência do assédio moral apenas quando o comportamento estiver relacionado com um fator de discriminação em relação ao trabalhador. Mas o assédio moral não se limita às situações discriminatórias, como poderá ser percebido no desenvolvimento deste trabalho.

De fato, a doutrina reconhece classificação que separa o assédio moral simples do assédio moral discriminatório11. As motivações do assédio são diversas e variadas, e podem mesmo não ter natureza discriminatória. Entretanto, o art. 24º do Código do Trabalho não permite o reconhecimento do assédio moral simples.

As definições doutrinárias de assédio moral são geralmente mais amplas do que a adotada pelo Código do Trabalho, constituindo-o como qualquer conduta repetida ou sistematizada, consistente em gestos, palavras, comportamentos e atitudes, que atentem contra a dignidade ou a integridade psíquica e física do trabalhador, que ameace seu emprego ou degrade o ambiente de trabalho12.

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Estas definições doutrinárias reunidas, fundamentadas no conhecimento interdisciplinar mencionado, permitiria também conceituar o assédio moral pelo comportamento de uma ou de várias pessoas em perseguição a uma outra pessoa, realizada de forma organizada e prolongada no tempo, geralmente com o objetivo de afastar a vítima e forçá-la a romper a relação de emprego. Com este procedimento, atinge-se a dignidade e a honra da vítima. Esta se sente acuada, isolada e rebaixada moralmente13.

Estes sentimentos repercutem em sua saúde física e psíquica, e impedem o livre desenvolvimento de sua personalidade14.

Outro ponto a ser evidenciado no dispositivo está na parte final do número 2 do art. 24º do Código do Trabalho, quando considera assédio todo o comportamento indesejado pela...

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