A dimensão social da preservação da empresa no contexto da nova legislação falimentar brasileira (lei 11.101/2005). Uma abordagem zetética

AutorEcio Perin Júnior
Páginas165-187

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1. Introdução

A abordagem que se pretende dar a, esta investigação científica consiste na apresentação da relevância objetiva e subjetiva da dimensão social na preservação da empresa como instrumento capaz de proporcionar a tutela da dignidade da pessoa humana em paralelo à busca pela eficiência económica.

O nosso vetusto sistema legal (Decre-to-lei 7.661/1945), bem como a recém sancionada legislação (Lei 11.101/2005), tratam do lado negativo da economia contemporânea, baseados em um modelo iniciado com a revolução industrial no século XVIII, com um desenvolvimento político sobressaltado que cresceu e vingou como opção na sociedade atual.

A figura da empresa, revela-se, como um dos principais alicerces desse sistema, posto que é vista como agente económico e sustentáculo imprescindível da sua própria sobrevivência. Por isso, a ineficiência ou inoperacionalidade da empresa deve ser resolvida, através de tratamento específico sujeito a regras judiciais, destinadas ou ao seu regresso produtivo ou à sua extinção como operador económico.

No século passado, o tema da empresa insolvente, bem como sua abordagem, modificou-se. Desde o período romano o objetivo era "tutelar créditos" abandonando-se a devedora à venda, por via executiva. Com o passar do tempo, germinou em várias legislações, dentre outras, a legislação norte-americana, inglesa, francesa, belga, alemã, portuguesa, espanhola e, em certa medida a italiana, além de, mais recentemente, nossa legislação brasileira, a preocupação com a preservação da empresa, como forma de reabilitá-la.

Em nosso ordenamento, particularmente, busca-se absorver essa corrente do pensamento europeu e, ao lado do meça-

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nismo falimentar, busca-se consagrar esquemas de viabilidade empresarial em harmonia com o princípio da preservação da empresa. Eis, pois, a questão que se levanta. Será que a adoção indiscriminada do princípio da preservação da empresa associada ao processo de recuperação proporcionará a tão desejada simplificação, celeridade e redução de riscos, no processo falimentar, e conseqiientemente a diminuição do chamado spread bancário?2 É essa a questão que pretendemos debater, no curso deste estudo.

Nesse sentido, focamos nossa análise nessa nova direção dada ao direito falimentar, em congruência com as mudanças inseridas pelo novo Código Civil que substituiu o sistema francês da teoria dos atos do comércio pela empresarialidade do sistema italiano, trazendo à discussão a maior intervenção dos credores nas lides, com uma atuação de caráter dúplice decorrente da defesa do crédito e da busca pela recuperação da devedora.

Esta dualidade aparente é, talvez, o maior dilema a ser enfrentado e a maior preocupação dos agentes económicos envolvidos no processo recuperatório, pois haveria, senão ostensivamente, de forma sutil um conflito de interesses entre a busca pela eficiência económica na recuperação do crédito e a busca da manutenção da fonte produtiva que conseqiientemente conserva o emprego e tutela a dignidade da pessoa humana. Esse aparente conflito, na filigrana jurídica, muitas vezes parece insuperável.

O elemento económico do direito, segundo Francesco Carnelutti,3 é o que caracteriza o conflito de interesses, portanto, inafastável sua compreensão. Segundo o autor, 'Telemento económico dei diritto è il conflitto di interessi. Dove il conflitto di interessi non c'è, non ha ragione di essere il diritto; non esiste un fenómeno giuridico alia radice dei quale l'analisi non rintracci tale conflitto".

Outrossim, os credores, reunidos em assembleia geral ou em comité, auxiliados por um gestor ou administrador judicial, impulsionam, orientam, fiscalizam e decidem o processo, debaixo da fiscalização do juiz, no objetivo de dirimir o controverso e, com maior ou menor contraditório, atingir o consenso.

É nesse sentido que a recuperação judicial deve ser tratada, como forma de preservar o agente económico empresarial viável, respeitada a função social da empresa. O direito falimentar, em seu sentido lato, deve, mais do que tudo, proporcionar uma convivência saudável entre os agentes económicos, assegurando o crédito, o que é essencial para a preservação das relações empresariais e o desenvolvimento da economia.

A empresa age essencialmente através do mecanismo do crédito, o que por si só indica o sentido de seu interesse público, característico da atividade económica empresarial.

O empresário, figura relevante no processo da distribuição da riqueza, não é simplesmente um agente económico de interesses privados, mas, também, participa diretamente da atividade económica da ço-letividade, o que denota também sua responsabilidade social.4

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Essa participação mais clara se fortalece quando ocorre a hipótese de falência, uma vez que se torna índice de desequilíbrio financeiro do empresário repercutindo com maior ou menor intensidade, na lesão dos credores.

O mecanismo da circulação de riquezas tem, pois, no crédito um dos elementos essenciais de sua propulsão. As organizações empresariais modernas, quaisquer que sejam, sem o crédito, não podem desenvolver com amplitude os seus negócios, atuar de forma eficiente em um mercado concorrencial acirrado.

Quando afirmamos que a lei falimentar deve assegurar o crédito,5 não fazemos referência ao crédito individualmente considerado, dos credores contra o devedor, mas sim ao meio ou o ambiente em que se praticam inter-relacionamentos de créditos privados. Protegido esse ambiente coletivo de concessão de crédito, cria-se uma atmosfe-ra mais segura para a concessão do crédito privado, isto é, entre os agentes económicos individualmente considerados.

Em outras palavras, ao assegurarmos instrumentos eficazes de recuperação de crédito, estamos protegendo, por via de consequência, esse ambiente propício que facilita a criação, bem como a manutenção de um sistema saudável de concessão de créditos privados aos empresários para o desenvolvimento das mais diversas ativi-dades económicas.

Sob o ponto de vista económico, o crédito é, como dissemos, fator de crescente relevância para o desenvolvimento das ati-vidades económicas das mais diversas na-turezas, correspondendo ao combustível indispensável para a geração de riquezas.

O capital, ainda sob a ótica económica, apenas pode multiplicar-se pela sua disponibilização em favor da atividade produtiva, verdadeira renovadora e geradora de riquezas. O dinamismo da economia depende dessa disponibilização de capital, com o escopo de financiar os investimentos necessários à produção.

Deve-se, portanto, encontrar uma fórmula para que o crédito possa ser eficientemente disponibilizado com a necessária segurança, fazendo com que o detentor do capital seja seduzido a colocá-lo em circulação também com a certeza de contar com formas eficazes de recuperação em caso de inadimplência do tomador.

A segurança que favorece o credor da mesma forma beneficia o devedor de boa-fé, que, nesta circunstância, conta com mais oferta de crédito, numa espiral de virtuosidade económica.

Não se pode, contudo, afirmar categoricamente que a segurança na recuperação do crédito seja fator determinante do custo de obtenção de recursos (dinheiro), uma vez que depende de uma complexidade de fatores económicos, políticos e sociais, que não conseguiremos analisá-los integralmente nos limites deste trabalho.

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Todavia, é inegável que a capacidade de recuperação de crédito compõe a chamada "taxa de risco", que é levada em consideração para a formação do preço da disponibilização do capital, os malfadados juros. .

Para a teoria económica, maiores chances na recuperação do crédito implicam menor risco, o que tende a fomentar a circulação do crédito a custos mais baixos. Quanto maior a disponibilização de capital, como mencionado, menores serão os juros, nessa espiral económica virtuosa.

A redução dos juros é uma das componentes essenciais para o desenvolvimento económico e viabiliza p investimento a um custo menor, num ciclo gerador de riquezas. O menor custo da produção implica baixa do preço do produto final em benefício do consumidor, desde que a ativi-dade económica como um todo esteja inserida num sistema concorrencial saudável, o que se procura obter através de leis antitruste6 e órgãos governamentais de defesa da concorrência que, principalmente nos últimos anos, têm cumprido, com muito acerto e competência, sua função.

Portanto, pode-se afirmar que a livre iniciativa é um dos princípios constitucionais basilares para o atendimento dos fins reservados à ordem económica é social.

Segundo Modesto Carvalhosa,7 "os limites impostos ao princípio da livre iniciativa, quer de ordem 'positiva', quando o Estado condiciona a átividade às vetòrea-lizações propostas nos planos económicos globais, setoriais ou regionais, visando o desenvolvimento nacional e à justiça social, ou 'negativa', quando o Estado exerce as funções de controle, colocando os limites à livre iniciativa, a fim de que não se desenvolva contrariamente aos interesses sociais também erigidos em princípios de ordem económica (harmonia e solidariedade entre as categorias ecossociais de produção e a abstenção de abuso de poder económico) devem ser entendidos restritivamente".

O produto cujo acesso ao mercado é facilitado é, inexoravelmente, mais consumido, o que gera aumento de produção, de empregos, requerendo mais investimento e, novamente, mais crédito. À empresa, neste cenário, como...

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