A dimensão patrimonial do dano moral na Reforma Trabalhista: análise e questionamentos acerca dos novos art. 223-A e 223-G da CLT

AutorRaimundo Simão de Melo/Cláudio Jannotti da Rocha
Páginas334-348

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Ver Nota12

1. Introdução

A Lei n. 13.467, publicada em 14 de julho de 2017 e conhecida como Reforma Trabalhista, além de alterar e revogar vários dispositivos da CLT, também introduziu a regulamentação de novos institutos, dentre os quais o da reparação de danos de natureza extrapatrimonial decorrentes da relação de trabalho, como previsto nos novos arts. 223-A a 223-G, sob o Título II-A.

Preferiu-se, ali, recusar o usual vocábulo “dano moral”, para adotar o termo “extrapatrimonial”, assim distinguido, conceitualmente, do mais comumente denominado “dano material” ou “patrimonial”. Em doutrina, as expressões são equivalentes, de tal modo que a escolha da nomenclatura pelo legislador reformista não tem qualquer repercussão teórica ou prática.

Em nosso estudo, adotamos as expressões “dano extrapatrimonial” ou “dano moral”, indistintamente, até porque a primeira expressão é usada no novo texto da CLT, não obstante ser o segundo vocábulo adotado pela Constituição Federal, no art. 114, quando se refere à competência da Justiça do Trabalho para apreciação de lides envolvendo tal matéria.

Lembremos que no Direito do Trabalho vem crescendo a catalogação de hipóteses de dano moral, a envolver as lesões a direitos personalíssimos – honra, imagem, boa fama, intimidade – sendo espécies o assédio moral, o assédio sexual, o dano moral coletivo, o dano existencial e tantos outros causados por infrações à lei ou ao contrato de trabalho.3

O tema ganha contornos de grande importância quando se percebe o aumento exponencial de ações trabalhistas contendo pedidos exclusivos de indenização por dano moral ou, em cumulação com outros, principalmente a partir da Emenda Constitucional n. 45, de 30.12.2004, que, alterando a redação do art. 114 da Constituição Federal, ampliou a competência material da Justiça do Trabalho, assim sepultando celeuma que àquela altura existia quanto à matéria.

Prevê tal dispositivo, in verbis:

Art. 114. Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar:

(...)

VI – as ações de indenização por dano moral ou patrimonial, decorrentes da relação de trabalho;

(...)

Mesmo confirmada a competência jurisdicional, a quantificação do dano extrapatrimonial sempre se ressentiu da ausência de critérios objetivos legais para sua fixação judicial, malgrado os esforços da jurisprudência de invocar os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade como balizadores do arbitramento indenizatório nos casos concretos advindos das lides trabalhistas.

Nessa análise, as decisões comumente consideram a gravidade objetiva do dano, a condição econômico-financeira da empresa infratora, a condição socioeconômica e a idade do trabalhador vitimado, a extensão e a natureza da lesão moral sofrida, bem como o duplo caráter corretivo e pedagógico da indenização fixada.

Entretanto, diante da grande margem de subjetividade do julgador, a ocorrência de decisões díspares para casos semelhantes, muitas vezes envolvendo empregados partícipes do mesmo fato danoso mas atuando em processos distintos, não raro provoca perplexidade, traduzida por muitos como insegurança jurídica.

Também outras questões há muito atormentam o hermeneuta e o aplicador do direito.

Citamos como exemplos, a envolver aspectos de direito material e processual, a necessidade ou não de prova do dano moral quando já confirmado o dano material (ipso iure), a possibilidade de pedido de indenização por dano moral, mesmo quando ausente o dano material, a concorrência da legitimidade para pleitear a reparação do dano moral, incluindo aí o dano moral em ricochete, a possibilidade de ação ou pedido revisional da indenização do dano moral, quando também revisto o quantum da indenização patrimonial, a contagem do prazo prescricional quando a lesão ocorreu após o encerramento

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do contrato de trabalho (ex. uso indevido de imagem em propaganda da empresa empregadora; uso indevido do nome de um professor no corpo discente de uma escola, informações injuriosas prejudiciais à obtenção de um novo emprego etc.), dentre outros. O próprio conceito de dano moral se apresenta discutível, questionando-se a inserção nessa categoria jurídica do dano estético, bem como se seria cabível sua cumulação com a condenação de outros direitos trabalhistas, como em casos de justa causa não caracterizada, de retenção salarial, de rescisão indireta, de não pagamento das verbas rescisórias, de excesso de exercício do poder diretivo (como no caso de fixação de metas abusivas de produção, de transferência arbitrária do local de trabalho, de exames não determinados por lei), de terceirização ilícita, dentre outras tantas hipóteses. No campo do Direito Coletivo do Trabalho, não raro há embate sobre o cabimento do dano moral coletivo em sede de ação civil pública e, quando admitido, como seria caracterizado, calculado e quem seria o destinatário da indenização respectiva.

O aumento das demandas trabalhistas envolvendo pedidos de indenização por dano moral, se por um lado concretiza o exercício do direito de acesso ao Judiciário e resgata uma demanda antes represada e cuja medida reparatória pode servir para a evolução civilizadora da relação empregatícia, também provoca ou acirra o debate sobre o demandismo, diante de pedidos exagerados ou indevidos que são rotineiramente formulados, exigindo uma reflexão sobre os meios de refrear esse abuso, com a responsabilização do litigante de má-fé, a fim de evitar a banalização do instituto e seu descrédito na comuni-dade jurídica.

Enfim, é nesse caldo de questionamentos que exsurge a Lei n. 13.467, introduzindo uma inédita regulamentação, com os novos arts. 223-A a 223-G da CLT, mas já amplificando questões sobre sua validade constitucional, interpretação e desdobramentos aplicativos, inclusive na área processual.

2. Evolução histórica do conceito de dano e suas dimensões indenizáveis no Direito Civil e no Direito do Trabalho

A ocorrência de um dano sempre gerou no ser humano uma pretensão compensatória, primitivamente movido pelo espírito de vingança, até alcançar o grau evolutivo de reparação indenizatória de caráter patrimonial, decorrente da imputação de responsabilidade ao ofensor, tal como conhecemos nos dias atuais.

Da vingança privada (que não se qualifica como instituição jurídica propriamente dita), banida pelo Código de Manu, e pelo Corpus Juris Civilis do Imperador Justiniano (esses prevendo a possibilidade do pagamento de valor pecuniário como forma de reparação), até a conformação jurídica como a conhecemos (distinguindo a responsabilidade civil da responsabilidade penal), há inegável avanço regulatório em busca da extensão do dano e de sua justa reparação, dimensionando-a segundo os conceitos de patrimônio material e imaterial do homem, em sua completude existencial.

Realidade jurídica nos países ocidentais contemporâneos, constatamos que, no Brasil, há lenta mas progressiva evolução legislativa pelo reconhecimento da indenizabilidade do dano extrapatrimonial, inclusive pecuniária, de modo a torná-lo passível de justa reparação indenizatória pelo ofensor em favor da vítima lesada.

O Código Civil de 1916, a par de não conter expressa previsão, autorizava, em seu art. 159, pela referência à “violação de um direito”, a reparação não restrita ao prejuízo material.

Na esteira da previsão do dano moral na Constituição Federal de 1988, em seu art. 5º, incisos V e X, o Código Civil (Lei n. 10.406 de 10 de janeiro de 2002) supriu definitivamente a lacuna infralegislativa, instituindo expressamente a obrigação do ofensor de reparar todos os danos ocasionados ao ofendido, em seus arts. 186, 187, 927, 948, 952 e 954. Também legislação esparsa, como a lei de impressa e as leis sobre comunicação e sobre direitos autorais preveem ressarcimento em caso de ocorrência de danos morais.

O conceito doutrinário de dano extrapatrimonial encontra matizes de pensamento distintos que podemos afirmar terem sido construídos historicamente.

Em uma primeira linha, adotava-se a concepção negativa, ou seja, dano moral seria todo dano não patrimonial, todo sofrimento humano não causado por uma perda pecuniária e que gerava dor, sofrimento, frustração, tristeza etc., podendo decorrer da dor pela perda de um ente querido, pela desonra advinda de uma agressão verbal injuriosa, pela humilhação provocada por uma situação discriminatória, pelo sofrimento gerado por lesões físicas, por receios e transtornos em face do descumprimento de uma obrigação contratual, exemplificativamente, tudo conforme cataloga BATISTA, afirmando que essa noção remonta aos estudos de René Savatier, na década de 40 do Século XX.4

Exemplo claro de definição nesses termos é formulado por DIAS, para quem dano moral é:

Todo detrimento que não possa ser considerado como dano patrimonial.5

Um segundo momento conceitual defendido, parte da afirmação de que a distinção entre dano material e moral não decorreria da natureza do direito lesado, mas do resultado ou da consequência da ação que causa o prejuízo6, ou seja, da

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repercussão da lesão sobre a vítima, de tal modo que o dano moral seria o efeito patrimonial causado em decorrência da lesão a um direito, bem ou em função de um interesse afetado, e não a própria...

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