Os Dilemas da Bioética e da Judicialização da Saúde no Brasil Oriana Piske de Azevêdo Barbosa

AutorCaroline Piske de Azevêdo Mohamed - Ana Cristina Barreto Bezerra - Dirce Guilhem
Páginas16-23

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Introdução

O surgimento da bioética pode ser explicado por fatores históricos, científicos e sociais. Nos últimos 50 anos, o progresso espetacular da medicina abriu possibilidades, até então, imprevistas para a investi-gação científica e trouxe melhoras irrefutáveis na saúde da população mundial e passou a apresentar dilemas inesperados em termos éticos, morais e legais (1).

A cada avanço da biologia e das ciências da saúde, como trasplantes de órgãos, as técnicas de reprodução assistida enfrentam obstáculos sociais e psicológicos, além de levantar questões religiosas, éticas e jurídicas. O mesmo ocorreu na investigação sobre embriões humanos, um tema muito sensível, pois se trata das origens da vida e envolve conceitos morais, assim como interesses cientí-ficos e financeiros (1).

Nesse passo, se verifica que a genética capacitou a humanidade para intervir em sua própria natureza biológica - uma perspectiva inquietante. Essas descobertas não se encontram isoladas ou limitadas. Estamos presenciando uma genuína revolução biológica. De outra parte, nos encontramos com uma quantidade extraordinária de atores com uma gama enorme de interesses, potencialmente gerado-res de confiitos que buscam resol-vê-los através da justiça, sendo que sua escalada leva à chamada judicialização da saúde - uma "enfermidade" do sistema sanitário.

O direito à saúde é inquestionável e devemos fazer todo o necessário para preservá-lo. Por isso, em defesa de um sistema de saúde solidário e sustentável objetivamos questionar, neste artigo, certas práticas médicas, de gestão sanitária, de políticas públicas do Executivo, do Legislativo e do Judiciário, que o colocam em risco, e apresentamos algumas sugestões para a redução da judicialização da saúde no Brasil.

Metodologia

Este trabalho é uma revisão crí-tica bibliográfica. Foram utilizados livros e artígos jurídicos e médicos. Dessa investigação surgiram dois eixos temáticos: os dilemas da bioética e da judicialização da saúde no Brasil. Construímos uma síntese pessoal a partir das abordagens teóricas (dogmáticas) e sociológicas (pesquisa sobre decisões judiciais em matéria de assistência famacêutica), com o propósito de delinear o papel do juiz brasileiro na concretização do direito à saude e o fortalecimento da cultura de direitos humanos.

A bioética e seus desafios

Em apenas algumas décadas, os cientistas decodificarm a base quí-mica do código genético e lançaram as bases para a biologia molecular e a engenharia genética. Atualmente, a humanidade é capaz de alterar a informação genética para fins práticos e, inclusive, in-tervir em sua própria natureza biológica, como espécie - certamente o aspecto mais perturbador em termos de bioética.

A bioética deve reconhecer os benefícios dos avanços científicos, enquanto se mantém constantemente alerta para os riscos e perigos que eles apresentam. Embora possa levar a novas e promissoras formas de erradicar enfermidades que há muito tempo afetam o homem, esse progresso também le-vanta temores que se justificam sobre os efeitos indesejáveis e o uso indevido, como a manipulação genética e suas aplicações, a volta das doutrinas eugenéticas (que agora possuem uma gama de fer-ramentas sofisticadas a sua disposição) ou experiências com genes em populações vulneráveis (1).

Na atualidade, a comunidade científica demonstra perplexidade e rejeição contra a manipulação de células germinais, que foi realizada pela equipe dos pesquisadores Liang, P. et al., do laboratório de Junjiu Huang, na China, apesar da moratória para as tentativas de edição genética de embriões humanos, pela Sociedade Internacional de Pesquisa de Células-Mãe (ISSCR) (2). A publicação dos resultados dessa experiência, na revista Protein & Cell, no dia 18 de abril de 2015, iniciou um debate ético entre os cientistas de todo o mundo (3). Os defensores da modificação genética argumentam que o método poderia levar a eliminação de enfermidades como a beta talessemía, a síndrome de down, a doença de parkinson e outras, mesmo antes que nasça a pessoa (3). Os críticos comentam que destruir uma enfermidade antes de que a vida possa se desenvolver poderá trazer inesperadas consequências genéticas, que poderão ser inclusive piores que o presente. Destacam, também, que a técnica carece de segurança e é questionável do ponto de vista ético (4-5).

Vale recordar que o surgimento da bioética coincidiu com o clamor generalizado levantado pelos horrores da segunda guerra mun-dial, reação que culminou com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948. O objetivo primordial da bioética se baseia no princípio humanista de afirmar a primazia do ser humano e defender a dignidade e a liberdade inerentes ao mero fato de pertencer à espécie, diante de um contexto mutante e em constante evolução das ciências da vida (1).

A bioética é baluarte tanto em termos de metas quanto em sua natureza multidisciplinar e inter-

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disciplinar. A fim de prover soluções adequadas aos novos desafios científicos, para o que a ética tradicional foi revelado insuficiente, se busca encontrar formas de que as ciências naturais e sociais se comuniquem entre si, cada qual com suas metodologias e pontos de vista específicos, e unir diferentes campos de conhecimento, desde a medicina, a filosofia e a biologia até chegar a sociologia, a antropologia e ao direito (1).

A bioética defiagrou uma cons-ciência global que está auxiliando a transformar os ideais de justiça mundial na realidade, através das iniciativas dos comitês de etica nacionais e dos comitês de bioética hospitalares, ademais do ensino e da investigação. Também se deve notar que, quase sem exceção, as escolas médicas passaram a incluir a disciplina em seus programas de ensino, demonstrando seu papel essencial na prática médica (6). Com efeito, os códigos, as normas e os protocolos relativos à bioética foram adotados em diversos lugares, e a Unesco os considerou essenciais para criar um foro de refiexões e debates - o Comitê In-ternacional de Bioética (7).

Dilemas dos sistemas de saúde e as vias da judicialização

A experiência internacional nos mostra que existem dois grandes modelos de sistemas de saúde: os sistemas públicos universais - Suécia, Dinamarca, Reino Unido, Canadá e outros países - nos quais a saúde é, na realidade, um direito dos cidadãos, e os sistemas segmentados em que uma parte signi-ficativa dos serviços se vende por seguros privados de saúde - Estados Unidos, Brasil, Argentina e outros (8).

É notório que os sistemas públicos universais, geralmente, prestam serviços mais efetivos, mais eficientes e mais equitativos. Nos países desenvolvidos, com exceção dos Estados Unidos, os sistemas de saúde são verdadeiramente universais. Lá não existem seguros privados competindo com os serviços que oferta o Estado (8).

Quando isso ocorre, como no Brasil, o sistema de saúde tende a estar insuficientemente financiado porque os pobres, a grande maioria dos usuários do Sistema Único de Saúde (SUS), tem baixa capaci-dade de articular seus interesses e de vocalizá-los nos grandes foros de decisão política. Por outro lado, é necessário ter claro que todos os sistemas públicos de saúde do mundo, inclusive os dos países de-senvolvidos, apresentam filas para algum atendimento ao público em que há desequilíbrio entre a oferta e a demanda (8).

Podemos afirmar que em matéria de saúde existem confiitos difí-ceis de serem resolvidos tendo em vista a quantidade de atores que intervêm, muito deles com interesses diferentes e, em alguns casos, contrapostos. A medicina se tornou muito complexa, pelo que as possibilidades de cometer erros são cada vez maiores. Por outra parte, com desenvolvimento tecnológico é possivel viver mais anos e com uma boa qualidade de vida, mas têm aumentado os custos dos serviços na saúde. Somamos a esses fatores a existência de pacientes mais informados pelo auge dos meios de comunicação e informação, além do surgimento dos "gru-pos de pacientes" e os confiitos de interesses entre os profissionais da saúde e organizações; e a varie-dade da prática médica, as novas tendências dos direito de danos de considerar o «paciente» como um "consumidor" e o reconhecimento da saûde como um direito humano fundamental; tudo isso, também, tem contribuído na maior ou menor medida na judicialização no ámbito sanitário (9).

A medicina trabalha conforme as evidências científicas e os con-sensos para que os avanços da ciência e da tecnologia cheguem a maior quantidade de pessoas. Seus altíssimos custos obrigam a um...

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