Digressões sobre a fixação das teorias racistas no imaginário popular e sua manutenção hodierna com relação à mão de obra dos nordestinos

AutorFrancisco de Assis Barbosa Júnior
CargoJuiz do Trabalho do TRT da 13ª Região
Páginas274-289

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Introdução

As teorias que colocavam a raça como elemento determinante da evolução dos povos já gozaram de uma base teoricamente científica, a qual chegou a ser acatada no Brasil por pensadores de tomo, como Raymundo Nina Rodrigues (nascido em 12 e falecido em 1906), Euclides da Cunha (1866-1909) e Silvio Romero (1851 -1914). Até mesmo Joaquim Nabuco (1849-1910), tido como grande defensor do fim da escravidão no país, mergulhou no universo racista.

O racismo parte do pressuposto da superioridade de uma determinada raça sobre outra, traduzindo-se em preconceito ou discriminação com relação ao indivíduo considerado de outra linhagem.

Noutra linha, por "raça" não se entende apenas um grupo de indivíduos semelhantes quanto aos seus caracteres, tais como cor da pele, conformação do crânio, tipo do rosto, etc. Também naquele conceito se incluem os descendentes de um mesmo povo, os quais têm a mesma ascendência, estirpe, origem social.

Embora hoje oficialmente desacreditadas, as teorias racistas restaram plantadas no inconsciente popular, ora refletindo-se, especialmente, com relação aos brasileiros nascidos na região Nordeste do país. Esta, embora titular de grandes diferenças, é encarada majoritariamente por quem dela não é oriundo como uma só coisa, um só Estado, cujos nativos encontram--se num patamar de desenvolvimento menor que o do resto do país, oferecendo, por conseguinte, uma mão de obra menos qualificada.

Tal discriminação pode facilmente ser traduzida em números, os quais foram construídos através de anos de tratamento diferenciado (para pior) destinado aos nordestinos, pois, enquanto a renda domiciliar per capita média do Brasil é de R$ 632,001, a nordestina fica na casa de R$ 396,002.

Estes números tornam-se ainda mais assustadores quando se constata que não há, ao menos em curto prazo, previsão de sua melhora, pois, por exemplo, enquanto a região Sul do país possui apenas 5,5% de sua população analfabeta, o Nordeste amarga o terrível percentual de 18,7%3. Ora, se o pressuposto básico para o desenvolvimento de um povo é sua educação, certamente para atingi-lo há um caminho bem mais longo a ser percorrido pelos nordestinos que pelos residentes na região sul do país.

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A análise das origens desta situação de segregação mostra-se não só atual como premente, pois esta reflete diretamente no subaproveitamento da força de trabalho nordestina, assim como no tratamento aviltante desta por muitos dos empregadores oriundos de outras regiões do país.

1. As teorias racistas

Adeptos das ideias racistas, como o Conde de Gobineua4 e Rodolphe Agassiz5, acabaram interpretando três das teorias mais influentes da Europa de meados do século XIX de forma racista, quais sejam: o positivismo de Comte, o darwinismo social e o evolucionismo de Spencer.

O positivismo, em suma, defende a existência de valores humanos, sem qualquer influência da metafísica ou da religião. Ele associa uma ética humana radical com uma interpretação da ciência e uma classificação do conhecimento.

Comte defendeu o princípio da divisão do trabalho, sendo a sociedade coordenada por esta divisão. Nessa organização social, cada um desempenha sua função, fato que acaba por abranger todas as atividades humanas, as quais são dirigidas pelo governo social, elemento essencial para a unidade do sistema.

Contudo, esta divisão de trabalho estaria fulcrada no estado de desenvolvimento cultural da coletividade, vale dizer, cada classe social estaria destinada a exercer determinada função de acordo com seu nível de cultura. Tal assertiva foi utilizada pelos teóricos racistas para justificar o caráter inferior dos povos não europeus, naturalmente dotados de uma carga cultural menor que a destes.

Por seu turno, houve uma tentativa de transportar as ideias de Darwin para o universo das ciências sociais, movimento denominado "Darwinismo Social". Este tinha como uma das linhas de pensamento a justificação da diversidade de seres vivos mediante um processo de evolução, com a sobrevivência do mais forte, do mais adaptado.

Esta linha de pensamento defende a presença de características biológicas e sociais as quais seriam determinantes para a superioridade de uma pessoa com relação a outra. Haveria, assim, pessoas naturalmente mais aptas a sobreviver que outras.

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Geralmente, dentre os padrões predeterminados como indícios de superioridade de um ser humano, encontra-se a raça à qual pertence.

Já o evolucionismo parte do princípio de que o simples evolui naturalmente para o mais complexo. Destarte, procura fixar as leis regentes do progresso das civilizações, isto tendo por análise as diversas sociedades humanas existentes ao longo da história.

Esta teoria forneceu base teoricamente científica para a legitimação da superioridade dos europeus, pois seriam eles a raça mais complexa, avançada, adquirente de maior grau de progresso em cotejo com as demais, vale dizer, as leis naturais orientadoras da evolução dos povos acabaram por tornar os europeus superiores aos demais.

Isto posto, como bem demonstra Renato Ortiz6, constata-se que as três teorias expostas tinham em sua base uma verdade tida por irrefutável, qual seja: existe uma evolução histórica diferenciada de todos os povos.

2. As teorias racistas no Brasil

Renato Ortiz surpreende-se quando aponta o racismo em três dos grandes precursores das ciências sociais no Brasil. Sustenta ele que:

"(...) A releitura de Sílvio Romero, Euclides da Cunha e Nina Rodrigues é esclarecedora na medida em que revela esta dimensão da implausibilidade e aprofunda nossa surpresa, por que dão um certo mal-estar, uma vez que desvenda nossas origens. A questão racial tal como foi colocada pelo precursores das Ciências Sociais no Brasil adquire na verdade um contorno claramente racista"7 (...).

Ainda segundo Ortiz, três teorias tiveram um impacto ímpar sobre o intelectualismo brasileiro do final do século XIX e início do século XX, quais sejam: o positivismo de Comte, do darwinismo social e do evolucionismo de Spencer.8

Curiosamente, tais teorias ganharam força no país após seu declínio de crédito na Europa, tendo esta "importação" encontrado dificuldades, pois implicava necessariamente na admissão da posição de inferioridade do Brasil com relação ao resto do mundo, já que aqui residia uma população mestiça e negra, naturalmente inferior se cotejada com os "avançados" povos europeus.

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Destarte, mostrava-se necessário explicar o atraso brasileiro e apontar um futuro no qual há a"(...) possibilidade de o Brasil se constituir enquanto povo, isto é, como nação (...)".9

Esta possibilidade era admitida por Silvio Romero, embora o autor a aceitasse como distante, apenas capaz de ser uma realidade com o passar de séculos. Segundo ele,"(...) a obra de transformação das raças entre nós ainda está mui longe de ser completa e de ter dado todos os seus resultados. Ainda existem os três povos distintos em face um dos outros; ainda existem brancos, índios e negros puros. Só nos séculos que se nos hão de seguir a assimilação se completará".10

A Livro de Romero "Cantos Populares do Brasil" data de 1883, época na qual o autor acreditava no fim do sangue indígena e negro por meio da mestiçagem com os brancos. Este fim, como dito, poderia levar séculos para acontecer, contudo, naturalmente ocorreria.

Porém, posteriormente, como afirma Roberto Ventura11, Romero afastou-se de sua previsão anterior quanto ao fim dos negros e índios, passando a adotar o arianismo ortodoxo e execrar a miscigenação, tudo por medo de um dia o Brasil ser dominado pelas raças tidas como "inferiores".

A visão racista dada à teoria evolucionista forneceu aos pensadores brasileiros conceitos para compreensão do problema do atraso nacional, contudo, como mencionado, mister se fazia a explicação do porquê da sociedade brasileira se diferenciar da europeia.

Ortiz assevera que:

"(...) A especificidade nacional, isto é, o hiato entre teoria e sociedade, só pode ser compreendida quando combinada a outros conceitos que permitem considerar o porquê do 'atraso' do país. Se o evolucionismo torna possível a compreensão mais geral das sociedades humanas, é necessário porém completá-lo com outros argumentos que possibilitem o entendimento da especificidade social. (...)."12

Os pensadores acabaram por encontrar tais argumentos especialmente em duas noções, vale dizer, no meio e, claro, na raça.

Raymundo Nina Rodrigues, em seu trabalho, pesquisou aspectos brasileiros, o comportamento, o meio, a raça e os diferentes estágios de

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nossa evolução, tudo sob a ótica de fatores biológicos que determinariam os fenômenos da vida.

No prefácio da 3§ edição de seu livro As Raças Humanas e a Responsabilidade Penal no Brasil13, Afrânio Peixoto cita parte da bibliografia de Rodrigues, cujos títulos, per se, deixam transparecer claramente a feição racista de sua obra. Ei-los: Os Mestiços Brasileiros, Negros Criminosos no Brasil, Animismo Fetichista dos Negros Bahianos, Paranoia dos Negros, Mestiçagem, Degeneração e Crime e O Problema Negro na América Portuguesa.

Rodrigues acreditava piamente na influência negativa da raça sobre o comportamento humano, especialmente no aspecto criminoso. Afirma ele que:

"(...) a evolução mental presuppõe nas diversas phases do desenvolvimento de uma raça uma capacidade cultural muito differente, embora de perfectibilidade crescente, mas ainda affirma a impossibilidade de supprimir a intervenção do tempo nas suas adaptações e a impossibilidade, portanto, de impor-se, de momento, a um povo, uma civilisação incompatível com o grao de o seu desenvolvimento intellectual. (...)."14

Mais à frente, continua Rodrigues:

"(...) Todavia tem-se pretendido, não obstante o Natura non facitsaltus de Lineo fazer um povo selvagem, ou bárbaro...

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