Dignidade e valor social do trabalho na Constituição Federal de 1988

AutorLeonardo Vieira Wandelli
Páginas94-106

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Ver nota 1

Introdução

A constitucionalização do trabalho, como um valor de hierarquia privilegiada no sistema jurídico, por mais que não corresponda à realidade fática de negação do trabalho como necessidade humana, positiva o reconhecimento pelo direito da centralidade do trabalho para a dignidade. Mais que fundamento de um ramo especializado do direito, esse é um valor essencial à própria compreensão antropológica da pessoa e do ser social de que se imbui o discurso constitucional. É esse o vínculo central a se desvelar na compreensão do conceito constitucional de valor social do trabalho, objeto deste artigo. Um tema que, acredita-se, seja oportuno em uma obra dedicada a essa luz incandescente do Direito do Trabalho brasileiro, Gabriela Neves Delgado. É de sua autoria um dos mais dedicados estudos da literatura jurídica sobre o trabalho como valor2. Espera-se que algumas singelas ideias aqui reunidas, a partir de um olhar que, não obstante direcionado desde outros ângulos teóricos, é convergente com o de Gabriela em seu foco, possam contribuir para um diálogo enriquecedor.

No primeiro capítulo, discute-se o caráter ambivalente da juridificação do trabalho em uma sociedade capitalista, a fim de posicionar-se contextualmente qual o sentido da constitucionalização do trabalho como valor central na Constituição de 1988. No segundo capítulo, explicita-se a cadeia conceitual que relaciona dignidade, necessidades, bens, direitos e valores jurídicos. Esclarecer esse enlace permite dar consistência à fundamentação do trabalho na dignidade, em tensão com o trabalho como valor. Mas também torna mais nítida a compreensão das diversas dimensões normativas do valor do trabalho a partir do rico plexo de dispositivos constitucionais que o consagram, que é o objeto do capítulo 3. Por fim, no capítulo 4, discute-se a tensão e a potencial colisão entre o valor da livre-iniciativa e o valor social do trabalho na Constituição.

1. A juridificação do trabalho como valor

Direitos expressam condensações institucionais em torno de lutas sociais pela realização de necessidades e interesses afirmados e negados historicamente. Na modernidade, torna-se hegemônico o modo de produzir capitalista, baseado na compra e venda do trabalho por conta alheia. A maior parte das formas de trabalhar e produzir, como o trabalho associado, o artesanato, as relações de dependência pessoal na gleba, a propriedade coletiva, o extrativismo de subsistência, a produção familiar, as corporações de ofício e mesmo a escravidão formal foram quase totalmente dissolvidas pelo modo capita-lista. Generalizou-se a forma assalariada de trabalhar, em que trabalhadores, separados dos meios de produzir, são compelidos a vender a outrem a sua força de trabalho, submetendo-se ao comando daquele que irá se apropriar do produto do seu trabalho. Uma compulsão que associa a servidão coacta, involuntária, pelo aguilhão da fome produzido pela separação das populações dos meios de produção, com a servidão voluntária do "submeter-se como ato de vontade"3.

A juridificação dessa específica forma de trabalhar, por meio do modelo de um trabalho subordinado juridicamente protegido, serve, de um lado, às necessidades de estabilização e legitimação da compra e venda da força de trabalho. Mas, de outro, não deixa de constituir um espaço de lutas e garantias de implementação de avanços duramente conquistados pelas massas trabalhadoras, que buscam resistir às múltiplas

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negações de suas necessidades produzidas pelos efeitos do capital sobre o mundo vivido do trabalho, conduzindo, assim, para o campo jurídico, a luta social. Nisso consiste a conhecida tese da ambivalência do direito do trabalho na sociedade capitalista, como notabilizada por Antoine Jeammaud, e cuja primazia este atribui a Gérard Lyon-Caen4. O direito do trabalho serve tanto para legitimar a ordem jurídica em que o trabalho humano se subordina a outrem por meio de institutos jurídicos como a liberdade contratual e a propriedade, assegurando ainda certa estabilidade e igualdade concorrencial entre empresas, quanto para colocar limites à tendência autodestrutiva do mercado capitalista de trabalho em desmesurar-se na exploração da força de trabalho. Para proteger o mercado de sua força autodestrutiva, há de propiciar alguma proteção aos próprios trabalhadores. Ao fazê-lo, cria um espaço de conflito juridicizado, canalizando a luta social para este campo. Para isso, é preciso alimentar expectativas dos trabalhadores de que podem ser alcançadas conquistas, por essa via, o que implica que tais expectativas, para se sustentarem, precisam se defrontar com um horizonte de alguma efetividade nessa via de proteção, de modo que se mantenha a tensão.

A valorização social do trabalho como um bem essen-cial com valor moral e a sua juridificação também seguem essa mesma dualidade. A história demonstra que a utilidade social do trabalho não assegura um reconhecimento positivo das pessoas que trabalham5. Não há como negar a utilidade social do trabalho dos escravos, embora a escravidão esteja baseada na desqualificação, como pessoas degradadas à condição de coisa, daqueles de cujo trabalho a sociedade escravocrata dependia. Mesmo na modernidade supostamente promotora da liberdade de trabalhar, da igualdade e da fraternidade, a utilidade social do trabalho não bastou para uma valorização social da atividade de trabalho e daqueles que têm no trabalho o seu modo de vida. Isso fica bem exemplificado na insuspeita dicção do abade Sieyès, um dos pais intelectuais da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, deixando claro a que "homem" ela se referia:

Entre os desgraçados destinados aos trabalhos penosos, produtores do prazer de outrem e recebendo somente de que se sustentar seu corpo sofrido e cheio de necessidades, nessa multidão imensa de instrumentos bípedes, sem liberdade, sem moralidade, que não possui senão mãos que ganham pouco e uma alma absorvida, é isto o que chamam de homens? Haverá dentre eles um único que seja capaz de ser admitido em sociedade?6

É marcante, nesta citação, que, se, de um lado, "os prazeres de outrem" dependem do trabalho desses "instrumentos bípedes", inábeis à designação de homens - e as leis de vagabundagem largamente utilizadas, lá e cá, para obrigar a venda da força de trabalho7, atestam a sua utilidade econô-mica -, por outro lado, eles não são dignos de pertencerem à sociedade, de serem reconhecidos como cidadãos8. Assim, se historicamente o trabalho vem a ser um suporte de valorização dos próprios sujeitos que trabalham como sujeitos-trabalhadores9, o reconhecimento de um valor social positivo do trabalho na modernidade capitalista e, por consequência, daqueles que se qualificam pelo trabalho, não advém da utilidade em si do trabalho. Ele somente chega por meio de um reconhecimento jurídico que retire o trabalho da indignidade social. Nesse processo, a legislação do trabalho teve uma participação central, não como um mediador externo às próprias relações de trabalho ou mero reflexo destas, mas um mediador que igualmente foi produto das lutas dos trabalhadores por reconhecimento das suas necessidades e interesses no interior da sociedade do capital.

O reconhecimento jurídico, neste caso, potencializa, cria espaços de pertencimento e autoestima e fomenta as lutas reivindicatórias. Foi pela mediação conflitiva do direito do trabalho, ponderando a contratualidade civil - em especial pondo limites à livre dispensa e à livre fixação de salários e jornada, bem como estabelecendo uma responsabilidade diferenciada pelos acidentes de trabalho10 -, que o trabalho passou a ter uma dimensão de suporte de reconhecimento social, além de mero objeto de intercâmbio ou matéria do direito penal. A par da utilidade econômica, passou também a ser encarado do ponto de vista da cidadania social, como condição jurídica formada por direitos e deveres e baseada no reconhecimento do pertencimento a uma coletividade11.

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Assim é que o modelo do trabalho assalariado, juridicamente regulado pelo Direito do Trabalho, que serviu para legitimação da exploração do trabalho e para a exclusão de outras formas não capitalistas de trabalhar, para a estabilização do mercado de trabalho capitalista e a juridificação do conflito social, ao mesmo tempo tornou-se, inegavelmente, um dos principais instrumentos de integração social, construção cultural e de expressão da luta por reconhecimento das massas trabalhadoras nas sociedades capitalistas12.

Passando-se ao nível do discurso normativo do direito, a constitucionalização do valor social do trabalho na Constituição de 1988, erigido, junto com a livre-iniciativa, à condição de um dos fundamentos da República (art. 1º, IV) e integrando todo um intenso bloco constitucional de valorização do trabalho humano, juntamente com direitos fundamentais e princípios associados ao trabalho como elemento essencial da própria dignidade humana, alcança um novo patamar no processo de reconhecimento jurídico do trabalho, pois, para a ordem constitucional, toda a ordenação social está voltada para a realização da dignidade das pessoas humanas. Nesse telos constitucional, assume, o trabalho, um aspecto central, sem o qual não se efetiva a autorrealização individual e coletiva do ser humano em termos de dignidade. O trabalho, assim, é percebido não só em sua utilidade social, na produção de bens e de valor econômico, não só como uma via de obtenção de bens de subsistência dos que trabalham, mas como um valor social também naquilo que ele tem de elemento existencial da vida digna como expressão de necessidades humanas de atuar sobre o mundo, sobre os outros e com estes...

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