Dignidade Humana, Humilhacao e Forma de Vida/Human Dignity, Humiliation and Form of Life.

Autorde Matos, Saulo Monteiro Martinho

1 Introducao: dominios da dignidade humana (1)

O conceito de dignidade humana--ou, para fins deste texto, apenas dignidade--esta diretamente associado a narrativas sobre como a nossa forma de vida pode ser colocada, fundamentalmente, em questao atraves de acoes (intencionais) de outros individuos, coletividades e instituicoes. (2) E justamente por isso que, por um lado, e possivel descrever uma acao ou tratamento de alguem como indigno, como, por exemplo, quando desrespeitamos a identidade, a condicao social ou o cargo (e.g., professora, magistrada etc.) de uma pessoa. Por outro lado, do ponto de vista normativo, a dignidade impoe o respeito a determinados direitos, considerados fundamentais e inalienaveis, como, por exemplo, os direitos humanos.

Dessa forma, o primeiro passo para qualquer estudo sobre a fundamentacao da dignidade (3) como valor moral ou politico consiste em definir qual conceito de dignidade e o mais adequado para solucao de desacordos morais ou politicos. (4) Os conceitos de dignidade que serao analisados no ambito deste estudo sao: (a) conceito absoluto de dignidade: "Porque os seres humanos possuem dignidade, vale o seguinte conjunto de direitos."; e (b) conceito contingente de dignidade: "Para que os seres humanos possam viver com dignidade, vale o seguinte conjunto de direitos." (Weber-Guskar, 2017, p. 212). (5)

A preocupacao deste estudo em discutir o conceito absoluto e contingente de dignidade advem de uma antinomia, aqui denominada antinomia da dignidade (Neuhauser, 2017, p. 315). (6) De um lado, a dignidade deve esclarecer por que todos os seres humanos possuem os mesmos direitos humanos e por que esses direitos sao inalienaveis. Isto significa, nos termos acima estabelecidos: "Porque os seres humanos possuem a mesma dignidade, eles possuem os mesmos direitos fundamentais."; "Porque a dignidade e inalienavel, os direitos tambem sao inalienaveis.". Por outro lado, deparamo-nos com um outro uso de dignidade, que nao corresponde a esse carater absoluto, quando, por exemplo, a dignidade de um policial e ferida em razao de comentarios a sua atividade policial. A partir desse uso especifico do termo "dignidade", surge um outro conceito contingente, o qual nao fundamenta direitos iguais e inalienaveis, mas, sim, um respeito relativo a personalidade. Dessa forma, os resultados das reflexoes deste estudo devem ser compreendidos como uma tentativa de propor uma primeira aproximacao a solucao dessa antinomia.

No dominio especifico da moralidade institucional (7), MacCrudden (2008, p. 265) parece ter identificado as tres dimensoes essenciais da dignidade humana: (a) uma dimensao ontologica, que compreende o valor e o significado do ser humano para fins, por exemplo, de direito a vida; (b) uma dimensao relacional, a dizer, quais formas de tratamento juridico nao correspondem ao respeito ao valor do ser humano; e, por fim, (c) a relacao entre cidadao e Estado, a qual compreende as possiveis interferencias injustificadas nas liberdades fundamentais. Cada uma dessas dimensoes pode significar uma violacao especifica a dignidade humana. Para fins deste estudo, a discussao se concentrara nas duas ultimas dimensoes da dignidade humana.

A tendencia dos argumentos que apelam a dignidade para justificar determinadas acoes em qualquer desses dominios e a de associarem tal conceito a tres propriedades fundamentais: independencia (Unabhangigkeit), indisponibilidade (Unverlierbarkeit) e incomensurabilidade (Unverrechenbarkeit) (Weber-Guskar/Brandhorst, 2017, p. 10). Hodiernamente, compreende-se a dignidade--amiude, com referencia a filosofia moral de Kant--como uma qualidade ou propriedade de todo ser humano, a qual esta ligada a um direito ou pretensao a um tratamento especial. Dessa forma e como, e.g., o artigo primeiro da Lei Fundamental (Grundgesetz) da Alemanha e normalmente compreendido: "A dignidade do ser humano e intocavel (unantastbar). Respeita-la e protege-la e obrigacao de todo Poder estatal" (trad. nossa). (8)

A questao que se coloca e se os direitos juridicos podem ser justificados a partir do valor (9) de dignidade humana. A mesma questao pode ser estendida para os direitos humanos e sua relacao com a dignidade humana: os direitos humanos podem ser justificados com base no valor da dignidade humana? Em outros termos, a dignidade humana pode ser um criterio para fundamentacao de direitos? Direitos podem ser fundamentados a partir de um conteudo especifico do valor da dignidade humana?

Na contramao da tendencia de emprego do conceito absoluto ou necessario, este estudo busca defender um conceito contingente de dignidade humana no ambito dos direitos juridicos como forma de responder a pergunta fundamental acerca do papel do valor da dignidade na fundamentacao e determinacao do significado de direitos.

A estrutura da argumentacao segue a seguinte orientacao. Em primeiro lugar, e necessario discutir o sentido de dignidade humana no dominio dos direitos juridicos. Para tanto, discutir-se-a o que significa falar sobre dignidade humana a partir de uma gramatica de direitos institucionais e do problema da sobering truth de Hart. Em seguida, a associacao entre dignidade humana e humilhacao sera estabelecida com base na linguagem ordinaria. Para que a ideia de dignidade associada a humilhacao faca sentido, e preciso "limpar o terreno" da dignidade humana, afastando duas outras concepcoes muito influentes no discurso moral, a saber, a ideia de dignidade humana, de um lado, como natureza do ser humano e, por outro lado, como aspecto transcendental e formal do discurso de direitos. Ao cabo, a definicao de dignidade humana no contexto de instituicoes politicas passara a ser algo como: "dignidade e o direito de nao ser humilhado.". Nao se trata de qualquer humilhacao, dado que alguem pode ser humilhado sem ter sua dignidade afetada. Mas, sim, de uma humilhacao que coloca em xeque a nossa propria forma de vida.

2 A verdade nua (sobering truth) e o seu controle atraves da dignidade humana: primeiro sentido de dignidade humana no contexto da moralidade politica e do direito

Direitos sao uma especie de standards ou padroes de comportamento enunciados na forma de relacoes juridicas (obrigacoes, poderes, liberdades, pretensoes etc.) verdadeiras ou falsas (Hohfeld, 1917; Edmundson, 2006; Eleftheriadis, 2008). Tais direitos, no dominio da moralidade politica e do direito, so podem ser justificados com referencia a fatos institucionais ou normativos, pois a sua legitimidade--ou a correcao de uma exigencia da coletividade para com o individuo--depende da justificacao da existencia desses fatos institucionais:

A realidade dos seres humanos e uma que nao compreende apenas fatos fisicos puros e realidades, mas, tambem, fatos institucionais. Na forma de uma definicao preliminar, estes sao fatos que dependem da interpretacao das coisas, eventos e partes de comportamento por meio da referencia a alguma estrutura normativa. (...) Eu tenho em meu bolso discos metalicos com a efigie de um rosto humano sobre um lado. Os discos sao diferentes em tamanho e cor, e nas marcas que possuem. Eles sao moedas e eu os uso para comprar jornais e outras coisas desse tipo. (...) Interpretacao de coisas e de seu uso sob a luz das regras relevantes e o que faz com que esses objetos fisicos possuam o significado que possuem. (...) (MacCormick, 2007, pp. 11-12; trad. minha). Direitos politicos e juridicos sao fatos normativos ou institucionais em contraposicao a fatos brutos, pois existem apenas no plano de acoes humanas com significado interpretativo ou valorativo (MacCormick, 2007, pp. 31-32). Nao ha, por conseguinte, como justificar direitos sem apresentar razoes institucionais. Em ultima instancia, isto significa dizer que a existencia ou justificacao de uma pretensao ou obrigacao politica ou juridica depende de uma combinacao entre fatos sociais, como, e.g., uma Constituicao, uma Lei federal ou um ato administrativo, e valores, como, por exemplo, a dignidade humana, a soberania popular ou a equidade (Greenberg, 2004).

Como pode ser depreendido do modo como direitos se justificam em sociedades contemporaneas, e um fato incontroverso a ideia de que uma ordem politica pode tambem funcionar perfeitamente bem sem necessariamente levar em consideracao ou fazer referencia a todos os membros da comunidade, individualmente considerados. Os fatos institucionais existem mesmo apos a morte ou ausencia daqueles individuos que os reconheceram em principio. Nao se trata, provavelmente, de um problema exclusivo do nosso tempo, mas, sim, de uma consequencia de qualquer ordem politica baseada em estruturas ou instituicoes sociais. Em contraponto a ordens sociais baseadas em consenso, tradicao ou costumes, as estruturas e instituicoes sociais sao, por gradacao, menos dependentes da concordancia de todos os membros da pratica social (MacCormick, 2007, pp. 14-16).

Essa forma institucional de viver em comunidade possui suas vantagens e desvantagens. As vantagens sao claras: flexibilidade com relacao a alteracao das normas sociais e seguranca na aplicacao do poder coercitivo do Estado. A principal desvantagem consiste no fato de que essas citadas vantagens sao alcancadas, frequentemente, em detrimento a uma parcela da populacao. Os seres humanos, em situacoes normais de institucionalidade, sao descartaveis. H. L. A. Hart (1961, pp. 201-2) caracteriza esse fenomeno como uma verdade nua (sobering truth):

Esses fatos doloridos da historia humana sao suficientes para mostrar que, embora a sociedade para ser viavel precise oferecer aos seus membros um sistema de tolerancia, ela nao precisa, infelizmente, oferecer isto a todos. (...) Reflexao acerca desse aspecto das coisas revela uma verdade nua: a passagem de uma forma simples de sociedade, na qual as regras primarias de obrigacao sao as unicas formas de controle social, para o mundo juridico com legislador, cortes, oficiais e sancoes centralizadas e organizadas produz um terreno solido a certo...

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