Diferentes, mas iguais: o reconhecimento jurídico das relações homoafetivas no Brasil

AutorLuís Roberto Barroso
CargoProfessor Titular de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ. Doutor livre-docente pela UERJ. Mestre em Direito pela Universidade de <i>Yale</i>.
Páginas1-31

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I Apresentação do problema

Nas últimas décadas, culminando um processo de superação do preconceito e da discriminação, inúmeras pessoas passaram a viver a plenitude de sua orientação sexual e, como desdobramento, assumiram publicamente suas relações homoafetivas.1 No Brasil e no mundo, milhões de pessoas do mesmo sexo convivem em parcerias contínuas e duradouras, Page 2 caracterizadas pelo afeto e pelo projeto de vida em comum. A aceitação social e o reconhecimento jurídico desse fato são relativamente recentes e, conseqüentemente, existem incertezas acerca do modo como o Direito deve lidar com o tema.

No direito positivo brasileiro, inexiste regra específica sobre a matéria. A Constituição de 1988, que procurou organizar uma sociedade sem preconceito e sem discriminação, fundada na igualdade de todos, não contém norma expressa acerca da liberdade de orientação sexual. Como conseqüência natural, também não faz menção às uniões homoafetivas. Faz referência, no entanto, às uniões heterossexuais, reconhecendo como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher2. O Código Civil, por sua vez, ao disciplinar o tema da união estável, seguiu a mesma linha3.

Diante da ausência de disciplina própria para essas questões, impõem-se algumas indagações e linhas de investigação, dentre as quais:

  1. a Constituição considera legítima a discriminação das pessoas em função de sua orientação sexual?

  2. a referência feita à união estável entre homem e mulher significa uma proibição da extensão de tal regime jurídico às uniões homoafetivas?

  3. inexistindo a vedação constitucional referida na alínea anterior, cumpre determinar, ainda assim, qual regime jurídico deve ser aplicado às uniões homoafetivas:

(i) o das sociedades de fato; ou

(ii) o da união estável.

O presente estudo desenvolve uma tese central e uma tese acessória. A tese principal é a de que um conjunto de princípios constitucionais impõe a inclusão das uniões homoafetivas no regime jurídico da união estável, por se tratar de uma espécie em relação ao gênero. A tese acessória é a de que, ainda quando não fosse uma imposição do texto constitucional, a equiparação de regimes jurídicos decorreria de uma regra de hermenêutica: na lacuna da lei, deve-se integrar a ordem jurídica mediante o emprego da analogia. Como as características essenciais da união estável previstas no Código Civil estão presentes nas uniões estáveis entre pessoas do mesmo sexo, o tratamento jurídico deve ser o mesmo.

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II A progressiva superação do preconceito

Na década de 70, nos Estados Unidos, um soldado que havia sido condecorado por bravura na Guerra do Vietnã escreveu ao Secretário da Força Aérea declinando sua condição de homossexual. Foi imediatamente expulso da corporação, com desonra. Ao comentar o episódio, o militar produziu uma frase antológica: "Deram-me uma medalha por matar dois homens, e uma expulsão por amar outro"4. Na década de 90, no Brasil, quando se debatia a questão das relações homoafetivas, uma elevada autoridade religiosa declarou: "Os cachorros que me desculpem, mas o projeto de casamento gay é uma cachorrada"5. Vem de longe essa visão depreciativa. Antigüidade, medievo, iluminismo, modernidade: em épocas sucessivas da evolução do pensamento humano, a condição homossexual foi tratada com intolerância, truculência e desapreço.

Os tempos, no entanto, estão mudando. Progressivamente, as relações homoafetivas vêm conquistando aceitação e respeito. Na esfera privada, é crescente o número de pessoas que assumem publicamente e sem temor a sua orientação homossexual. No espaço público, concorridas passeatas e manifestações, em diferentes capitais do país, simbolizam a vitória pessoal de homens e mulheres que derrotaram séculos de opressão para poderem ostentar sua identidade sexual, desfrutar seus afetos e buscar a própria felicidade. É certo que ainda ocorrem manifestações ocasionais de homofobia, inclusive com o emprego de violência. Mas já não contam com a cumplicidade silenciosa da opinião pública. Aos poucos se consolida uma cultura capaz de aceitar e de apreciar a diversidade.

Nesse ambiente, é natural que se coloque, com premência, o tema do regime jurídico das uniões homoafetivas. A despeito da ausência de normatização expressa, a postura do Estado em relação ao assunto tem sido de crescente reconhecimento. Certas manifestações do Poder Público já atribuem às uniões entre pessoas do mesmo sexo, para determinados fins6, status semelhante ao das uniões entre homem e mulher. Não se pode dizer, contudo, que esta seja uma posição dominante ou incontroversa. Pelo contrário, um lance de olhos pela jurisprudência dos diversos tribunais revela a existência de pronunciamentos judiciais divergentes sobre o tema. A título de exemplo, confiram-se duas decisões recentes, uma em cada sentido: Page 4

"Constitui união estável a relação fática entre duas mulheres, configurada na convivência pública, contínua, duradoura e estabelecida com o objetivo de constituir verdadeira família, observados os deveres de lealdade, respeito e mútua assistência. Superados os preconceitos que afetam ditas realidades, aplicam-se os princípios constitucionais da dignidade da pessoa, da igualdade, além da analogia e dos princípios gerais do direito, além da contemporânea modelagem das entidades familiares em sistema aberto argamassado em regras de inclusão. Assim, definida a natureza do convívio, opera-se a partilha dos bens segundo o regime da comunhão parcial. Apelações desprovidas"7.

"Apelação Cível. Ação declaratória. União homoafetiva. Impossibilidade jurídica do pedido. Carência de ação. Sentença mantida. A impossibilidade jurídica do pedido ocorre quando a ordem jurídica não permite a tutela jurisdicional pretendida; Na esteira da jurisprudência deste Tribunal de Justiça, diante da norma expressa, contida no art. 226, §3º, da Constituição da República, somente entidade familiar pode constituir união estável, através de relacionamento afetivo entre homem e mulher; revela-se manifestamente impossível a pretensão declaratória de existência de união estável entre duas pessoas do mesmo sexo"8.

As uniões estáveis heterossexuais também percorreram caminhos feitos de idas e vindas, acolhimentos e rejeições. Com a Constituição de 1988, no entanto, obtiveram reconhecimento institucional pleno, passando a ser caracterizadas como verdadeiras entidades familiares. Na presente investigação sustenta-se a tese de que o mesmo regime deve ser reconhecido às uniões entre pessoas do mesmo sexo, seja por aplicação direta dos princípios constitucionais, seja por integração de lacuna legal existente.

Parte I Pré-compreensão do tema e panorama do direito comparado
III Orientação sexual, relações homoafetivas e o papel do Direito e do Estado

A interpretação constitucional, como a interpretação jurídica em geral, não é um exercício abstrato de busca de verdades universais e atemporais. Toda interpretação é produto Page 5 de uma época, de um momento histórico, e envolve as normas jurídicas pertinentes, os fatos a serem valorados, as circunstâncias do intérprete e o imaginário social. A identificação do cenário, dos atores, das forças materiais atuantes e da posição do sujeito da interpretação constitui o que a doutrina denomina de pré-compreensão9. É hoje pacífico que o papel do intérprete não é - porque não pode ser - apenas o de descobrir e revelar a solução que estaria abstratamente contida na norma. Diversamente, dentro das possibilidades e limites oferecidos pelo ordenamento, a ele caberá fazer, com freqüência, valorações in concreto e escolhas fundamentadas.

Porque assim é, há um dever ético do intérprete de declinar a sua pré-concepção a propósito da matéria que está sendo interpretada, o que significa dizer, explicitar o seu ponto de observação e os valores e fatores que influenciam sua argumentação10. Tal atitude de honestidade intelectual e transparência permite a compreensão correta da fundamentação adotada, bem como o controle e a crítica do processo interpretativo. Nessa linha, cabe declinar, ao início, que o presente estudo se funda nas seguintes visões de mundo:

  1. a homossexualidade é um fato da vida;

  2. as relações homoafetivas são fatos lícitos e relativos à esfera privada de cada um;

  3. o intérprete constitucional deve ser movido por argumentos de razão pública e não por concepções particulares, sejam religiosas, políticas ou morais;

  4. o papel do Estado e do Direito é o de acolher - e não o de rejeitar - aqueles que são vítimas de preconceito e intolerância.

Não há consenso acerca das razões que determinam a orientação sexual dos indivíduos. Existem estudos dotados de seriedade científica que...

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