Diarista: um empregado em busca de vínculo

AutorValdete Souto Severo
Ocupação do AutorJuíza do Trabalho, Mestre em Direitos Fundamentais pela PUC/RS, professora e vice-diretora na FEMARGS/RS
Páginas135-145

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Introdução

Um dos jornais de maior circulação no Rio Grande do Sul publicou, como matéria de capa, de sua edição dominical (21.4.2013) a seguinte manchete: “dez impactos da nova lei das domésticas”. Já na chamada de capa, o diário estampa “queda da contratação, maior procura por diaristas, livro-ponto em casa e até busca por clínicas geriátricas estão entre os principais efeitos das mudanças na relação patrão-empregado no lar”.

A matéria intitulada “pendurados na informalidade” — página central do caderno Dinheiro, nome sugestivo para tratar de direitos sociais fundamentais — já inicia nos seguintes termos:

Depois de 14 anos como babá e doméstica na casa de uma mesma família em Novo Hamburo, Terezinha de Fátima da Silva Machado, 49 anos, foi despedida pouco antes de a nova Lei das Domésticas entrar em vigor.

— Eu tinha hora para entrar, mas não tinha hora para sair. O patrão falou que, por causa da lei, não teria mais condições de me manter. Ia ter de pagar muita hora extra e que, mais tarde, eu poderia entrar na Justiça. Fiquei muito triste, porque criei os filhos deles — lamenta Terezinha.

Muitos pontos poderiam ser destacados apenas nesse pequeno início da reportagem. Um deles é a nítida discriminação na despedida ou mesmo o dano moral ínsito na prática de despedir sem qualquer motivação. Poderíamos também salientar a longa exploração de trabalho superior a oito horas diárias sem a devida contraprestação (ou mesmo qualquer controle). Ou, ainda, o fato de que o trabalhador somente pode fazer valer seus direitos “mais tarde”, depois de ser despedido. Poderíamos discutir que na prática não há efetivo acesso ao Poder

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Judiciário, durante a vigência do contrato de trabalho, o que nos faz pensar na aplicabilidade da prescrição para trabalhadores sem garantia de emprego.

Não obstante todos esse elementos que “saltam aos olhos” em apenas dois parágrafos, o jornal opta por colocar em destaque, ao lado de uma foto que ocupa meia página, o seguinte: “TEREZINHA lamenta ter perdido o emprego de 14 anos em razão do alegado aumento dos encargos que a Lei das Domésticas traria ao patrão”.

Dois dias depois, um dos principais colunistas do mesmo jornal, fazendo alusão à mulher de um amigo (empregadora doméstica), após acusar a Justiça do Trabalho de sempre deferir alguma coisa ao reclamante, escreve: “a imprensa, agora com o anúncio da nova lei, só entrevistou as empregadas domésticas e deixou de lado, condenadas ao silêncio, as patroas”.

Em uma edição publicada poucas semanas antes, o mesmo jornal responde algumas dúvidas de seus leitores. Dentre tais dúvidas surge a seguinte: “Quem já paga valor bem acima do salário mínimo registrado em carteira poderá fazer alguma espécie de ajuste desse valor para baixo e transformar parte do salário atual em hora extra?”

Qualquer aluno de Direito, que já tivesse assistido às primeiras aulas de Direito do Trabalho saberia a resposta a esta pergunta: um sonoro não! Entretanto, a resposta publicada no jornal foi:

Existe uma jurisprudência na Justiça do Trabalho que determina que existe uma carência de seis meses para a recontratação de um funcionário. Porém, se essa recontratação configurar como uma manobra para diminuir o salário, o patrão poderá responder judicialmente por descumprir um dos princípios do Direito do Trabalho que é o da irredutibilidade salarial.

O incentivo à dispensa, como se o trabalho doméstico interessasse apenas à empregada, e não à família que emprega sua força de trabalho, é mais um exemplo do ‘boicote constitucional’ midiático. Os intérpretes aplicadores do Direito do Trabalho estão atentos. Em um texto brilhante, Jorge Luiz Souto Maior enfrenta o tema, demonstrando a estreita relação entre nossa resistência e o fato de o Brasil ter sido o último país a abolir a escravidão259.

O presente artigo é uma resposta àqueles que, sob o manto da liberdade de imprensa, utilizam os meios de comunicação de massa para convocar as pessoas a burlar o projeto constitucional de minimização das desigualdades, bem representado pela PEC das domésticas.

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O efeito dessa divulgação negativa, que omite e distorce fatos, fazendo crer que reconhecer o direito a um limite de jornada ou ao FGTS implicará uma revolução anarquista sem precedentes, é desastrosa. Muitas pessoas estão assustadas com os efeitos da PEC sob a economia doméstica, quando em realidade muito pouco mudou. Mudou bem menos do que deveria, já que não ousamos sequer cancelar o parágrafo único do art. 7º ou reconhecer aos empregados domésticos o direito ao pagamento do adicional de insalubridade, embora saibamos que essas pessoas limpam cotidianamente os vasos sanitários em que depositamos nossos excrementos.

É preciso parar para refletir, antes de “comprar” o que nos vendem como verdade absoluta. É o que pretendemos aqui. Discutir a verdadeira repercussão do reconhecimento de alguns direitos aos empregados domésticos e a falácia da figura da diarista, nem sequer prevista no ordenamento vigente.

1. Diarista: um empregado à procura de reconhecimento

É comum ouvirmos, nos mais diferentes ambientes sociais, o comentário de que, com a “PEC das domésticas”, os empregados domésticos serão substituídos por “diaristas”. A Rede Globo de Televisão ajudou a divulgar o termo, já que inclusive possuía um programa de TV com o título “A Diarista”, em que a trabalhadora doméstica, exercendo suas atividades em várias residências, vivenciava as argruras da atividade, de forma cômica.

Se procurarmos em nosso ordenamento jurídico, porém, podemos ter uma surpresa. Não há referência alguma à função de diarista como espécie de trabalhador autônomo.

A relação de emprego doméstica está disciplinada na Lei n. 5.859 desde 1972. Essa legislação conceitua como empregado doméstico “aquele que presta serviços de natureza contínua e de finalidade não lucrativa à pessoa ou à família no âmbito residencial destas”.

Ao contrário da CLT, que faz referência ao trabalho subordinado e não eventual, a lei específica refere serviços de natureza contínua. A riqueza de interpretações, sempre presente na aplicação do Direito, gerou divergências acerca do âmbito dessa expressão. Segundo o entendimento majoritário, é justamente aí que os empregados domésticos se distinguem dos “diaristas”: esses prestariam serviços de forma “não continuada”.

Antes de verificarmos o que se pode entender por “natureza contínua” dos serviços, é importante referir que o próprio termo “diarista” originariamente faz referência ao tempo (dia), em contraposição ao que poderíamos denominar “horista” ou “mensalista”.

Conforme entendimento (praticamente) unânime, tanto da doutrina quanto da jurisprudência, essas duas últimas qualificações não geram qualquer consequência na configuração do vínculo de emprego, dizendo respeito tão somente à fórmula de

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cálculo do salário do trabalhador. Quando o salário desse mesmo trabalhador passa a ser calculado (e eventualmente pago) por dia, passamos a qualificá-lo de “diarista”.

Note-se: não há previsão legal para o trabalho de diarista, como...

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