A Diarista, o Vínculo de Emprego e os Direitos Trabalhistas: Perspectivas Histórica, Legislativa e Jurisprudencial. Uma Proposta de Inclusão Social

AutorJorge Luiz Souto Maior
Ocupação do AutorJuiz do Trabalho, titular da 3ªVara do Trabalho de Jundiaí
Páginas175-194

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Estado violência Estado hipocrisia A lei que não é minha A lei que eu não queria.1

1. Introdução

O trabalho como uma atividade humana assume determinadas características, em qualquer sociedade, de acordo com os valores, costumes e tradições, formas de organização social e

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econômica, bem como, desenvolvimento econômico e social, se pensarmos do ponto de vista do marxismo.

O que mais vem à tona nos modelos de desenvolvimento econômico é a exploração do homem pelo homem. Uns se apropriando individualmente da riqueza produzida socialmente por uma determinada classe social, o que cria desigualdades sociais inimagináveis.

Uma divisão do trabalho é imposta e delimitada por estas sociedades. Isso é o que vemos na sociedade brasileira, a partir da concepção de gênero; às mulheres atribuiu-se papel subalterno e com remuneração aviltante.

Nesse contexto, esse ensaio busca resgatar o processo de formação histórico-econômica e jurídica em que a Justiça Trabalhista vem definindo os direitos da diarista.

Assim, trabalhamos na perspectiva da análise de uma sociedade escravagista que impôs um modelo de trabalho perverso e desumano a todos os trabalhadores e trabalhadoras e que se perpetuou na sociedade capitalista, em sujeitos como a diarista, a empregada doméstica, o trabalhador rural, o operário braçal e tantos outros.

A diarista, tanto na literatura quanto no Direito, seja para a doutrina ou para a jurisprudência dominantes, é uma trabalhadora destituída de direitos. Tanto os teóricos quanto os aplicadores do Direito entendem que ela não preenche os requisitos mínimos para ser considerada empregada.

Entendemos que em atenção aos direitos humanos do trabalho, sobretudo à dignidade da pessoa humana, a diarista deve ter seus direitos tutelados, posto que, como qualquer outro empregado, vende sua força de trabalho para sobreviver, tendo o tomador de seus serviços benefícios diretos, pois é ela quem cuida da casa, da família, dos filhos, do alimento, da saúde, e disponibiliza tempo, para que, livres, os seus empregadores lucrem e mantenham o padrão de classe média e de burgueses. Sem esse serviço é duvidosa esta condição de vida.

Defendemos nesse ensaio a tese de que as premissas doutrinárias devem ser revistas eis que não mais sustentam argumentos condignos com a dignidade do ser humano.

Acreditamos que, em sua grande maioria, os casos levados à apreciação judicial revelam reais vínculos de emprego, pelo que devem os tomadores do serviço da diarista responder, como empregadores, pelos danos sociais e trabalhistas causados, responsabilizando-se por todos os direitos previstos em lei.

Levantamos, portanto, a bandeira da defesa de uma condição digna a essas trabalhadoras marginalizadas.

2. Breve apontamento histórico sobre o trabalho feminino no Brasil Resquícios da cultura escravagista

A sociedade econômica brasileira do trabalho tem uma formação que pode ser interpretada, estudada e analisada na divisão do trabalho a partir do sexo. Certamente, sendo esta uma das formas mais primitivas de organização social do trabalho. Isto só é visto nas sociedades primitivas ou conhecidas como comunismo primitivo. É o que constata, numa visão histórica, Bauer que, ao analisar o papel da mulher na formação das sociedades indígenas no litoral brasileiro, assim se expressa:

A vida econômica destas nações era baseada na divisão sexual e etária do trabalho. A presença da mulher era fundamental na educação dos curumins, na organização do trabalho doméstico e, principalmente, na agricultura. Na maioria das comunidades,

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as mulheres eram responsáveis pelo plantio do milho, da batata-doce, da abóbora e da mandioca, produtos fundamentais na dieta alimentar daqueles povos. (BAUER, 2001,
p. 112)

Todavia, sem domínio de tecnologias e dinamização dos meios de produção para a confecção de bens que possam ser distribuídos e consumidos, a sociedade econômica brasileira do trabalho conseguiu ao longo dos séculos ultrapassar e superar o baixo nível de tecnologias e avançar para uma sociedade capitalista de grande complexidade e portadora de tecnologias de transformação dos meios de produção. Mas isso, ao mesmo tempo não implicou um desenvolvimento homogê- neo dos meios de produção e das forças produtivas, promovendo novas tecnologias. Ao contrário, o país consolidou um modelo de organização socioeconômica que se porta profundamente pela desigualdade social, econômica, geopolítica e regional. Sendo a desigualdade social a mais grave de todas. E isso repercute fortemente nas relações de trabalho, na cultura e no cotidiano das pessoas.

Desde a economia colonial que se constituiu numa plataforma de expropriação das riquezas minerais e extrativistas do Brasil, o domínio político hegemônico da nação colonizadora sobre o território ocupado e a imposição da escravidão, como modelo de relações de trabalho que produzia riquezas para a Monarquia déspota portuguesa e, para uma pequena minoria letrada... essa estrutura ficou encravada por séculos no interior da sociedade brasileira, fazendo da escravidão a única forma de produzir riquezas e de uma relação possível entre seres humanos, legitimada por um sistema jurídico manipulado pelos detentores do poder econômico e político.

As relações de trabalho que se estabeleceram de 1500 a 1888 legaram profundas cicatrizes sociais, econômicas, culturais e jurídicas para a ou na sociedade que foi se forjando. Desde esse período, as mulheres portuguesas que foram trazidas para o Brasil “[...] se prestavam à realização dos serviços domésticos cotidianos, cuidando da limpeza e costura das roupas, do preparo da comida e mesmo da administração de algumas feitorias” (BAUER, 2001, p. 115).

Se, de um lado, os homens escravos estavam nas fazendas, nos campos, nas cidades, nos rios, igarapés, produzindo a riqueza para os latifundiários e comerciantes, de outro, as mulheres também estavam nesse mesmo espaço, mas havia outras que atuavam no interior da casa, eram aquelas que estavam mais próximas da vida privada destes senhores de engenho, às vezes, até sendo seviciadas por eles: comerciantes, políticos e profissionais liberais. Exercendo as mais diversas atividades, desde ama de leite a vendedora de quitutes como renda suplementar das famílias escravagistas.

As mulheres escravas no interior da residência eram exploradas na condição de ama de leite, que consistia na amamentação e criação dos/as filhos/as da elite brasileira; também, realizavam os trabalhos de limpeza e cozinha, fazendo o café, almoço e jantar; passeios; cuidado das crianças quando da viagem dos pais. Considerando a condição de escravas, as mulheres realizavam este trabalho ad eternum.

Bauer se apoiando em pesquisa e estudo de Giacomini recorda que “[...] a negra é ‘coisa’, pau para toda obra, objeto de compra e venda, em razão da sua condição escrava. Mas é objeto sexual, ama de leite, saco de pancadas das sinhazinhas, porque, além de escrava é mulher” (2001, p. 120).

Talvez, esta proximidade com a família tornasse a relação mais perversa, posto que, além de ser escrava ainda realizava um trabalho que feria sua dignidade, sua condição de mulher, o direito de decidir sobre seu corpo. Estabelecia um vínculo de cunho afetivo, pessoal, íntimo, que se constituía numa modalidade de escravidão, pois os laços de opressão ocorriam pela afetividade. O que torna mais difícil libertar-se do opressor.

Outro viés teórico, no qual se busca encontrar essa divisão do trabalho é a partir da linhagem familiar, ou seja, da família como uma categoria analítica de interpretação da sociedade, definindo para esta instituição o lugar de poder na formação da sociedade do trabalho; assim, para Campos

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Como tipologia, a família patriarcal pode ser descrita como um grupo extensivo consistindo em um núcleo conjugal e filhos, aos quais se agregavam parentes, protegidos, criados e escravaria, sujeitos à autoridade incondicional do chefe da família. A família patriarcal se caracterizaria ainda por um regime de alta fecundidade, baixa mobilidade social e geográfica. Tal definição não difere do conceito adotado por Philippe Ariès, que definiu a família como caracterizada por uma unidade conjugal, sua prole, empregados, amigos e “protegés”. Em Portugal do século XVIII, conceituava-se família como as pessoas de que se compunha uma casa, ou seja, os pais, os filhos e os domésticos. (CAMPOS, 2010, p. 2)

É como vínhamos pensando, na estrutura, na composição da família há diversos núcleos e estes, os mais fechados, se caracterizam como os detentores da estrutura, das propriedades da família e, também, do poder de comando, de mando. Nisso podemos compreender como os sujeitos dessa estrutura o homem provedor, os que compõem o que vem a se definir como família e os que não fazem parte da família consanguínea, mas que são agregados, estes são os escravos, criados e outros tipos de serviçais. Mas, estes eram só agregados e não membros da família.

Todavia, esse é um modelo da sociedade ocidental fincado na ideologia judaico-cristã, que desconsidera outras formas de organização da família e, mais do que isso, é um modelo forjado e consolidado nos dispositivos do capitalismo:

Um aspecto comum à maioria dos estudos, nesta linha teórica, restringe o conceito de família à existência de um núcleo...

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