Dialogo entre a Teoria dos Jogos de Linguagem e a Teoria dos Sistemas/A Dialogue between the Theory of "Language-Game" and "Systems Theory".

AutorBerbel, Vanessa Vilela

Introducao

Niklas Luhmann (1927-1998), sociologo, filosofo e jurista alemao, criou uma teoria da sociedade que mais parece um labirinto conceitual. Sao inumeras as categorias conceituais criadas com o objetivo unico de descrever uma sociedade hipercomplexa. "A uma ordem social labirintica, responde uma teoria social igualmente labirintica" (BACHUR, p. 29). Por tras de seu sofisticado catalogo conceitual, esconde-se a ambicao de responder ao questionamento sobre como a ordem social e possivel; para esta pergunta, Luhmann responde com a aplicacao da teoria dos sistemas para ordenar o jogo incongruente dos diversos sistemas sociais, refutando as perspectivas da tradicao fincadas na filosofia do sujeito.

Ludwig Josef Johann Wittgenstein (1889-1951), filosofo austriaco, possui um conjunto de obras que pode ser dividido em duas fases: (i) a primeira representada por seu livro Tractatus Logico-philosophicus e (ii) a segunda representada pelas demais publicacoes, dentre elas o livro Investigacoes Filosoficas. Em sua primeira fase, o autor apresenta o objetivo filosofico de explicar a natureza das sentencas e possui, como centro de sua analise, a ideia de que uma sentenca e uma figuracao da realidade. Ja em seu segundo momento, abandona o paradigma de uma filosofia fenomenologica, ao tracar um novo caminho firmado na insuficiencia das perspectivas teoricas do Tractatus; em Investigacoes Filosoficas, passa a afirmar que uma proposicao nao traz em si o todo da linguagem, e nesta fase que o autor constroi o conceito de "jogos de linguagem" que sera explorado neste ensaio.

Luhmann e Wittgenstein sao autores densos, com perspectivas e preocupacoes bastante distintas, mas que, em certo momento, podem oferecer, um ao outro, contribuicoes significativas para a compreensao de seus conteudos. Ha uma relacao possivel entre a teoria da diferenciacao funcional de Luhmann e o conceito de jogos de linguagem desenvolvido por Wittgenstein, uma vez que a formulacao dos jogos de linguagem implica em uma necessaria diferenciacao, enquanto que os sistemas autopoieticos necessitam do desenvolvimento de uma gramatica propria.

E a partir desta correlacao que se buscara aclarar os pontos de convergencia do pensamento dos autores, por meio de uma revisitacao bibliografica, sem a pretensao, todavia, de reformular a premissa teorica de ambos, vez que, em um e outro, ha um pensamento hermetico e um cabedal conceitual sofisticado que, na estreita via de um ensaio, tornaria a tentativa exposta a um grau elevado de insucesso.

2. Comunicacao E Linguagem Na Perspectiva De Niklas Luhmann

A marca mais caracteristica da teoria luhmanniana e a de que a disciplina social se converta em uma observacao sistematica, de modo que seus conceitos nao partam de outras ciencias, mas sim de seu proprio metodo. A legitimacao da sociologia deve, assim, partir de uma autossustentacao metodologica, por meio de uma reflexao que compreenda o carater autologico de suas origens. Niklas Luhmann (1927-1998) sabe que a sociedade descreve a si mesma como pos-moderna, ante a incredulidade nas meta-narrativas, descrente, portanto, dos grandes relatos do liberalismo e do marxismo (LUHMANN, 2009, p. 17). E deste modo que Luhmann, em dialogo interdisciplinar com a biologia, matematica e a cibernetica, reconhece como viavel a construcao de uma teoria da sociedade que parta de um balanco geral dos resultados e tentativas do passado, a ponto de perceber o quanto mais e possivel, que resultados foram obtidos, quais decisoes foram tomadas e quais seriam as consequencias se se partisse de outras premissas. (LUHMANN, 2009, p. 18). Para superar os limites das abordagens classicas, Luhmann dedicou-se a elaboracao de um modelo que percebesse a complexidade das relacoes sociais modernas por meio de uma teoria geral da sociedade (macrossociologica) capaz de apreender a complexidade de cada esfera social (sociologias especializadas) (GONCALVES, 2013, p. 20).

Luhmann propoem uma revolucao copernicana das teorias sociais ate entao vigentes, a partir da desconstrucao do paradigma do todo e suas partes --whole and part--para a construcao do universal independente do particular. Isso quer dizer que, a partir de uma reviravolta das premissas empregadas ate entao para a observacao social, e possivel dispensar a perspectiva da sociedade enquanto unidade composta pela soma de suas partes, a saber, os ser humanos, passando a analisa-la por meio da diferenca entre sistema/ambiente (LUHMANN, 1995, p. 7-8).

E possivel identificar quatro obstaculos epistemologicos que, segundo Luhmann, foram superados por sua teoria: (i) o "preconceito humanista" que observa a sociedade como constituida por homens (pessoas concretas) ou relacao entre pessoas; (ii) o pressuposto de que a sociedade e formada pelo consenso entre seres humanos, a concordancia de suas opinioes e a complementariedade de seus objetos; (iii) o pressuposto de que ha a possibilidade de uma observacao e descricao externa da sociedade, por meio de um sujeito cognoscente que se poe diante de um objeto; e (iv) o pressuposto de que ha limites territoriais no ambito da sociedade. Interessa, para os fins deste artigo, os tres primeiros paradigmas, que serao postos em debate. (GONCALVES, 2013, p. 24).

A teoria dos sistemas autorreferenciais, self-referential systems, implica em compreender que os sistemas referem-se a si proprios, ao constituirem a si e aos seus elementos operacionais; precisam, portanto, utilizar a diferenca sistema/ambiente para sua configuracao interna, de modo que "o sistema consegue produzir sua propria unidade, na medida em que realiza a diferenca" (LUHMANN, 2009, p. 101).

E deste modo que os ser humanos, ao inves de partes do sistema social, passam a compor seu ambiente, para fins epistemologicos. Conforme sintetiza COHEN (1999, p. 56), para a teoria luhmanniana

"a sociedade e um sistema que, como todos os sistemas, se define pela diferenca que e capaz de manter em relacao a um ambiente, que por sua vez inclui outros sistemas. Entre os sistemas incluidos no ambiente da sociedade esta o sistema psiquico, cujos portadores sao seres humanos. Os homens, portanto, nao fazem parte da sociedade mas do seu ambiente." Isso nao significa que o ser humano passa a ser compreendido como menos importante do que nas teorias tradicionais; caso assim se entenda, nao se tera compreendido a mudanca de paradigma da teoria dos sistemas. Ao contrario da reducao da importancia do ser humano, quando se afirma a exclusao do individuo do contexto da comunicacao social nao se quer anula-lo, mas antes retira-lo do centro do sistema social para enquadra-lo enquanto sistema de si proprio (sistemas psiquicos). Os sistemas psiquicos passam, entao, a habitar o ambiente do sistema social, o qual contem elementos que, sob determinada analise, podem ser ate mais importantes para o sistema do que as proprias partes que o compoe. Nos dizeres de LUHMANN (1995, p. 212)

"[...] but the distinction between system and environment offers the possibility of conceiving human beings as parts of the societal environment in a way that is both more complex and less restricting than if they had to be interpreted as parts of society, because in comparison with the system, the environment is the domain of distinction that shows greater complexity and less existing order." Neste prisma de analise, sistema psiquico e sistema social sao dissociados, passando a compor o ambiente um do outro. Todavia, ha uma forma de relacao entre ambos os sistemas--psiquico e social--a qual Luhmann denomina de interpenetracao (interpenetration). A interpenetracao consiste na contribuicao do ambiente para a formacao do sistema; ocorre, portanto, quando a complexidade que um sistema produz torna-se disponivel enquanto complexidade nao compreendida aos demais sistemas, forcando-os a reformulacao de suas estruturas (LUHMANN, 1995, p.214). O exemplo fornecido por Luhmann a respeito do conceito de interpenetracao e a relacao entre sistemas de consciencia (psiquicos) e sistemas de comunicacao (sociais), os quais se pressupoem e se tornam possiveis, com suas respectivas complexidades, sem que possam interferir diretamente uns nos outros:

"A consciencia nao pode resolver problemas de comunicacao, quando estes ja se desenvolveram: o esforco em comunicar-se com um estrangeiro, quando existe uma falha de compreensao insoluvel; recorre-se, entao, a explicacao da situacao em ingles, em frances, ou mediante gestos, mas sempre em um espectro limitado, devido as proprias condicoes da comunicacao. A consciencia tenta, assim, resolver um problema momentaneo de comunicacao, embora se perceba claramente que ela nao pode reproduzir a complexidade de tudo o que seria necessario para que a comunicacao se realizasse, mediante linguagem." (LUHMANN, 2009, p. 273) Os sistemas aparecem como entidades operacionais que mantem, de modo necessario, relacoes com o ambiente, que os obrigam a responder as exigencias funcionais, criando seus proprios elementos (autopoiesis). A constatacao da existencia de sistemas que sao capazes de se diferenciar do meio a partir de uma autorreferencia exclui a possibilidade de que dados existentes no meio possam especificar e controlar as operacoes internas do sistema. Todavia, o fechamento operativo nao lhes tornam absolutamente indiferentes aos estimulos do meio, mas apenas imunes a determinacao direta de suas operacoes.

Entre os diversos sistemas que compoe o ambiente social cria-se, entao, um acoplamento estrutural que "[...] seleciona o que pode acarretar efeitos no sistema e filtra aquilo que nao convem que nele produza efeitos." (LUHMANN, 2009, p. 275). O acoplamento estrutural exclui que dados do ambiente possam definir o que ocorre no sistema, cabendo ao proprio decidir se os estimulos do meio serao ou nao reproduzidos em suas operacoes. O sistema realiza um recorte dos estimulos que poderao influir causalmente no sistema, criando, por outro lado, um campo de indiferenca.

Os sistemas...

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