Diálogo sobre o Direito à Felicidade em Âmbito Coletivo e Individual no Estado Democrático de Direito: Apontamentos sobre uma Crise Multifacetária

AutorHugo Garcez Duarte - Alessandro da Silva Leite
CargoMestre em Direito (UNIPAC). Especialista em Direito Público (UCAM) - Doutorando em Sociologia e Direito (UFF). Mestre em História Social (USS)
Páginas36-44

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1. Introdução

Sempre afirmamos que o estado democrático de direito pode ser definido como aquele que congrega os anseios dos estados liberal e social, sem, contudo, deixar de contemplar, se legítimas, as reivindicações sociais, políticas, econômicas e culturais oferecidas por este tempo, cujas características de extrema pluralidade e heterogenei-dade ganham mais relevo.

Isso porque, após a segunda guerra mundial, mais especifica-mente com os horrores decorrentes do lançamento das bombas atômicas em Nagasaki e Hiroshima, e do holocausto, deu-se início a uma forte onda de refiexão crítica sobre o paradigma positivista. Nesse horizonte, a criação da Organização das Nações Unidas e o advento da Declaração Universal dos Direitos Humanos ofereceram o "pontapé" inicial no sentido de se encarar a ciência jurídica de outra maneira, na qual a pessoa humana ocuparia o centro de todo o ordenamento jurídico.

Como correlação dessa alteração epistemológica, fundamentos da república como a dignidade da pessoa humana, a cidadania e o pluralismo político, por seu caráter abstrato, têm possibilitado a consecução de diversos direitos inimagináveis noutros momentos históricos. A título de exemplo, em 2011, ao julgar o Recurso Extraordinário 477.554-Minas Gerais, de relatoria do ministro Celso de Mello, o Supremo Tribunal Federal, reconhecendo a união homoafetiva como entidade familiar, trabalhou a ideia de que o afeto se constitui em valor jurídico impregnado de natureza constitucional, e consagrou o di-reito à felicidade fiou a busca dela ficomo direito fundamental, ainda que implícito.

É bem verdade, Aristóteles (2006), há muito, em Ética a Nicômaco, sustentou tratar-se a fe-licidade do fim último do ser hu-mano. Para o estagirita praticamos, ao longo da vida, atos no sentido de satisfazer desejos e paixões diversos, o que resultará, em caso de êxito, na vida bem vivida, cuja felicidade foi conquistada.

Com essas considerações, se aqui estivesse, Platão (2011) sustentaria, provavelmente, caso se leve em conta tratar-se de verda-

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deiro mundo o das ideias, e tendo cada ser a sua visão quanto ao mesmo, que a felicidade poderá contemplar diversos pontos de vista. Diante desse quadro, qual seria, no entanto, contemporaneamente, um parâmetro de felicidade coletiva? Ou, melhor dizendo, há espaço, neste tempo, para se falar em bem comum?

Não há dúvidas, a globalização, ao oportunizar, entre outras aberturas, maior contato entre os mais diversos povos devido à troca de informações variadas, apresentou muitos benefícios, porém as indagações supramencionadas mere-cem refiexão, pois há uma falên-cia estatal no sentido de organizar a vida em sociedade, o que pode ser corroborado pelos grandes escândalos de corrupção, a altíssima carga tributária, bem como a falta de confiança dos indivíduos nas instituições estatais e neles próprios, por apresentarem-se, dia a dia, cada vez mais individualistas, egoístas, e, assim, propensos à manutenção desta realidade.

Noutras palavras, passamos por uma grande crise moral e ética, o que nos leva a investigar se os mais diversos desejos, emoções e paixões que movem os indivíduos na busca da felicidade podem ser objeto de negociação para que convivamos com mais fraternidade.

2. Uma resposta às indagações

É necessário reafirmar, inicial-mente, a importância do estado democrático de direito como instância político-jurídica na qual os direitos fundamentais individuais (dimensão liberal), e da coletividade (dimensão social), além de garantidos, deverão ser protegidos e efetivados contra toda tentativa de expropriação.

Consideramos, a partir de uma perspectiva sociológica, que a questão dos direitos não pode ser abordada de outra forma, senão a partir dos desejos, emoções e paixões que movem os indivíduos, como, por exemplo, a busca da fe-licidade. Por outro lado, o desafio de uma convivência social e cole-tiva saudável também coloca uma demanda pela felicidade comum.

Nas palavras de Norbert Elias (1994), somos "as sociedades dos indivíduos". Cada um de nós, como indivíduo, compõe sociedades que, embora sejam sempre vistas pela ótica da coletividade, são, na ver-dade, formadas pelos indivíduos. O cimento que torna isso possível são os laços, as redes invisíveis de dependências e funções mútuas de natureza afetiva, emocional, econômica, cultural e cognitiva que os indivíduos estabelecem entre si.

Deste modo, acreditamos que a busca da felicidade deva ser sempre objeto de uma dupla negociação entre as condições de possibilidades reais, portanto, não imaginativas, de nossa felicidade individual e a necessidade de uma convivência saudável, logo, pautada na noção de uma felicidade comum ou coletiva.

Como afirmamos, vivemos numa época de crise ética e moral, de crise das instituições políticas e do avanço da força de ideologias que defendem princípios fundamentados nas noções de individualismo-narcísico. Vemos tudo isso como patologias sociais que podem suscitar o desejo de anulação e extermínio, simbólicos e reais, do outro, como sujeito de direitos, inclusive de direito à felicidade.

No entanto, mesmo diante deste quadro desolador, defendemos, a partir de argumentos arenditianos e habermasianos da noção de espaço público, que a democracia ainda é, por sua ontologia, a instituição humana que melhor oferece as condições de possibilidades para debatermos o bem (ou felicidade) comum.

Com isso, retornamos ao tema do estado democrático de direito e da sua importância para a garantia do direito à felicidade, individual e coletiva. Certamente, a felicidade pode contemplar diferentes pontos de vistas, como disse Platão. Porém, se somos indivíduos que escolhemos viver em sociedade, mesmo que a felicidade tenha um sentido para cada um de nós, e de fato o tem, ela deverá ter também, obrigatoriamente, um sentido comum.

Por essa razão, pensamos que a felicidade deva ser sempre objeto de negociação entre o indivíduo e a sociedade. Freud (1921) nos informou que viver em sociedade significa negociar todo o tempo a nossa realização plena como sujeitos desejantes. Essa "castração", absolutamente necessária à vida social, recai, principalmente, sobre a realização e o gozo daquilo que escolhemos e representamos como nosso objeto pessoal de felicidade.

Se não for dessa maneira, em homenagem ao contratualista Rousseau, o próprio "contrato social", como causa e sustentáculo do estado democrático de direito, será rompido, nos retirando da cultura civilizacional para nos lançar num estado onde o único imperativo é o do "gozar", a qualquer custo. Com isso, propormos que a necessidade da negociação deva ser vista como um elemento do nosso real.

Trata-se de um real com o qual devemos nos reconciliar a fim de que fujamos de uma expectativa imaginativa e falaciosa, calcada por ideologias perversas, que pode nos levar a noções equivocadas do que é a felicidade, do que é a felici-dade individual e do que é a felici-dade comum, bem como a fazer escolhas erradas, que coloquem em risco nossa convivência fraterna,

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mas também democrática, porque podem instituir um totalitarismo de falsas felicidades.

3. As provocações são inúmeras

As provocações precedentes podem nos levar a vários paradigmas, os quais devem ser enfrentados.

Do nosso ponto de vista, é preciso delimitar, primeiramente, nes-se sentido, o real significado coleti-vo desta instância jurídico-política por você nomeada, o estado demo-crático de direito.

Se isso for satisfeito, posteriormente, deveremos investigar a posição do indivíduo imerso nesse ambiente coletivo, no que tange à busca pela satisfação de desejos e paixões, com vistas à consecução de uma vida feliz.

Para que isso ocorra, é necessário reportarmo-nos, de imediato, às classificações modernas sobre a figura do Estado, bem como acerca de seu papel perante a "vida cole-tiva" e o viver, pode-se afirmar, in-dividualizado.

A versão primária, o Estado liberal, sucessor do Estado absoluto, revela o surgimento do Estado-nação, a ascensão da burguesia e o protagonismo do mercado, que se apresenta como principal expressão política e econômica, com idealizações de progressivas inter-nacionalização e homogeneização da economia e do comércio.

As constituições, nesta espécie de Estado, foram encaradas como instrumentos eminentemente políticos, que reuniam normas de organização estatal, distribuição de competências e de direitos funda-mentais a fim de proteger o indiví-duo do Estado (visto como um inimigo quando do Estado absoluto), enquanto aquelas de direito civil ocupavam o espaço de verdadeira "lei maior" entre os civis.

O ideal de liberdade ali instalado é burguês, dando-se ênfase àquela de contratar. Isso propiciou maiores possibilidades de predomínio dos interesses da burguesia (seu conceito de felicidade coletivo e individual?), a qual instala uma ética de vida em que a promessa da riqueza (sua aliança ao conceito de felicidade?) começa a ser incutida nas mentes das mais diversas...

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