Deveres legais e conduta ética de membros do conselho de administração e de profissionais

AutorKlaus Hopt
Páginas107-119

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1. Introdução: a crise do conceito da "maximização de lucros" da companhia moderna

Em Hamburgo, uma das mais antigas cidades mercantis da Alemanha, com longa e reconhecida tradição na Liga Hanseática, o conceito de ehrbarer Kaufmann ("comerciante honrado"), o comerciante corre-to e respeitável, constituiu o ideal durante séculos. Ehrbarer Kaufmann in Hamburg foi também o nome da corporação repre-sentativa dos comerciantes de Hamburgo, e por eles eleita, desde o século XVII. Todos sabemos que nem sempre a realidade conseguiu atingir esse ideal e que surgiu um novo tipo de comerciante e empreendedor, que correspondia mais à noção do negociante astuto - tal qual agudamente observado e descrito por Thomas Mann em sua obra Buddenbrooks, de 1901, vencedora do prêmio Nobel. Durante os anos, maximização de lucros e competição selvagem tornaram-se, supostamente, a única via para o sucesso.

Atualmente, entretanto, o conceito da maximização de lucros da empresa moderna está em crise e vem sendo submetido às mais diversas críticas do público em geral, dos políticos e de parte da doutrina. Na Antigüidade a "medida de todas as coisas" era Deus. Mais tarde passou a ser o "homem", o ser humano. Hoje, parece que

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a medida de todas as coisas é o "lucro".1 Membros do conselho de administração recebem enormes remunerações através de opções de compra de ações, planos de aposentadoria e compensações ofertadas para induzi-los a se aposentar (golden hand-shakes), uma prática que se iniciou nos Estados Unidos e está se espalhando pela "antiga Europa". A utilização de oportunidades comerciais da companhia por membros do conselho e o uso privado de informações adquiridas em negociações com a clientela tornaram-se métodos lucrativos de geração de ganhos particulares. Políticos e o público em geral reclamam contra as empresas por se valerem indevidamente da competição internacional para achatar salários, transferir empregos e fábricas para outros países, em prejuízo da mão-de-obra doméstica, e para deslocar danos ambientais para o exterior, a fim de aumentar os lucros. Esta não é apenas uma questão ética, mas, cada vez mais, uma questão jurídica, tanto para as empresas quanto para os profissionais, que, numa sociedade voltada preponderantemente para os serviços, estão se assenhoreando das atividades dos comerciantes individuais. A assim chamada "juridicização da ética dos negócios" é uma reação dos legisladores e autoridades administrativas de muitas sociedades industrializadas modernas. Um exemplo, que já se tornou tradicional, é o conceito de "fiduciário" ou "trustee", empregado para membros do conselho de administração e profissionais.

2. O conceito de "fiduciário" ou trustee
2. 1 Os membros do conselho de administração nos Direitos Norte-Americano e Alemão

No direito societário da Europa Continental os membros do conselho de ad-ministração são tradicionalmente considerados como órgãos da companhia, com deveres e responsabilidades descritos mais ou menos de modo geral. Nas leis societárias esses deveres são, tradicionalmente, normas organizacionais que delineiam as competências e a interação entre o conselho - no caso de haver dois níveis, o conselho de direção (Vorstand) e o conselho de supervisão (Aufsichtsrat) - e a assembléia-geral dos acionistas. Na Lei alemã das Sociedades por Ações, de 1965, há apenas três breves parágrafosI que tratam da matéria relativa ao bom comportamento do conselho, disciplinando a remuneração, que deve ser adequada, a proibição imposta aos membros do conselho de concorrer com a companhia e a concessão de créditos, pela companhia, para seus conselheiros. Além disso, há apenas uma regra geral estipulando que, na condução dos negócios sociais, os membros do conselho (de direção) devem empregar o cuidado de um administrador diligente e consciencioso. O assunto é desenvolvido um pouco mais detalhada-mente no restante dessa regra no que toca à responsabilidade, perante a companhia, pelos prejuízos a ela causados. A efetiva-ção da responsabilidade do conselheiro, todavia, é restrita, tanto em decorrência da lei como da prática. Tradicionalmente os acionistas exercem pouca influência quando se trata de decidir se a companhia propõe ação de responsabilidade contra um membro do conselho, e há muito tempo as empresas têm evitado fazê-lo, daí resultando existirem relativamente poucos casos de responsabilidade. Isso é verdade não só na Alemanha, mas em muitos outros países da Europa Continental.

Em contraste com isso, a abordagem da Europa Continental no que se refere ao conceito de que os membros do conselho têm deveres fiduciários perante a companhia, como um trustee da mesma, foi desenvolvida pelos tribunais britânicos

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e norte-americanos. Essa analogia com o trust deve-se, historicamente, ao fato de que antes de 1844 a maioria das então chamadas joint stock companies era "não-incorporada" (unincorporated), ou seja, não era dotada de personalidade jurídica, e, portanto, utilizava-se o trustee para deter a propriedade dos bens da companhia. Muitas vezes os próprios administradores eram os trustees. Ao julgar os administradores responsáveis, não havia diferença relevante para os tribunais se os mesmos eram autênticos trustees ou meros representantes de uma companhia dotada de personalidade jurídica. Em conseqüência, os deveres fiduciários do conselho de administração acabaram se tornando mais ou menos idênticos aos deveres dos trustees, e estes últimos deveres sempre foram os mais abrangentes, tanto com relação ao seu conteúdo quanto com relação à sua efetivação judicial.2 A verdadeira dinâmica dessa disciplina legal da conduta ética dos membros do conselho de administração nos Estados Unidos reside no fato de que esses deveres foram estabelecidos e concretizados em uma grande massa de precedentes que, por sua vez, resultaram da vasta utilização da forma da sociedade anônima num país tão grande e que se industrializou tão cedo.

Na segunda metade do século passado, no mais tardar, o conceito de que os membros do conselho detêm abrangentes deveres fiduciários de trustees espalhou-se dos Estados Unidos para a Europa Continental e se tornou a principal doutrina jurídica dos conselhos de administração da sociedade anônima.3 Mais recentemente esse desenvolvimento foi fomentado pela moderna e influente teoria econômica do conflito representado/representante (prin-cipal/agent conflictII). Essa teoria serve para analisar o relacionamento entre o conselho e os acionistas, aquele sendo o representante (agent) e os acionistas sendo os representados (principals). A lógica desse conceito econômico é que os representados devem ser colocados em uma posição na qual possam efetivamente controlar o comportamento do representante, de modo a fazê-lo agir inteiramente no interesse dos acionistas, e não no seu interesse pessoal. Dessa maneira, tanto as exigências éticas quanto os deveres jurídicos relativos às regras de conduta dos membros do conselho de administração encontram sustentação na teoria econômica.

2. 2 Profissionais (professionalsIII): o exemplo de bancos e corretoras

Um desenvolvimento semelhante pode ser observado nas leis e regulamentos de profissionais, notadamente de bancos e corretoras mas, entrementes, também de outros, tais como contadores, auditores, advogados e intermediários financeiros (financial intermediariesIV). A legislação na

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Europa Continental e, certamente no Código Civil alemão regulamentou o mandato (agencyV), em princípio, como um contrato gratuito, sujeitando o mandatário (agent), conseqüentemente, a relativamente poucos deveres legais. O contrato de mandato oneroso foi regulamentado em apenas um parágrafo, que, basicamente, fez referência às disposições gerais do mandato (law ofthe general agency). Com relação a informações e recomendações, um parágrafo estipulou que, em princípio, o ato de recomendar não implica responsabilidade, salvo se existirem deveres específicos decorrentes de contratos, atos ilícitos ou de outra forma previstos em lei. Conseqüentemente, os deveres dos diversos profissionais foram desenvolvidos pelos tribunais especificamente para cada profissão, independentemente de um conceito legal genérico de agency e sem o amparo de um conjunto de normas codificadas que estipulasse os deveres legais dos agents.

Nos Estados Unidos a natureza fiduciária do agent e seus deveres obtiveram maior importância, tanto na doutrina quanto nos precedentes judiciais. Os deveres que lá se desenvolveram foram enumerados, por exemplo, no Restatement of AgencyVI Todavia, o desenvolvimento pleno dos deveres fiduciários de bancos e cor-retoras e o fato de terem sido amplamente codificados devem-se ao desenvolvimento da legislação americana sobre valores mobiliários (securities), na década de...

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