A compreensão do dever: uma releitura dos ensinamentos de Kant

AutorManoel Pedro Ribas de Lima
CargoMestrando em Direitos Fundamentais e Democracia.
1. Introdução

Toda perspectiva normativa, aliada a rigorosidade cientificista do contemporâneo estudo do Direito, sempre se preocupou com de aplicabilidade das normas por uma estrutura institucional, traçando para tal aplicabilidade uma exigência de fundamentação por uma seqüência de normas, uma vinculada à outra em um sentido vertical, até uma norma última (uma norma fundamental ou uma regra de reconhecimento). Nestes termos, quando se perguntava por que se aplica uma norma, a resposta era a exigência de uma norma superior. Para a realização dessa estrutura exige-se tanto conhecimento quanto vontade de aplicá-la. Por outro lado, toda essa estrutura é conhecida por aqueles não fazendo parte dela apenas pelo prédio, chamado de Tribunal, e pela esperança de realização da justiça. Estes, os cidadãos comuns, que conhecem superficialmente as leis e, muitas vezes, só sabem seus nomes, são exatamente aqueles para quem as leis foram criadas, e são quem as normas vinculam. Mas se quisermos questionar como poderiam os cidadãos comuns comportar-se segundo normas, deveremos nos colocar em seus lugares. Para tanto, é preciso que vejamos a norma de outro ângulo.

Quase todas as atuais produções acadêmicas sobre teoria do Direito seguem uma linha inovadora, que retorna a idéia pretoriana de prudência que pouco a pouco passa a ser adotada pelos tribunais. Elas surgem num momento em que se procuram novas explicações para as velhas maneiras de atuação dos juristas, buscando legitimá-las ou validá-las. Afinal de contas, hoje é o Poder Judiciário que, de forma autônoma, dá a última palavra. Isso com certeza afeta a idéia de norma. Entretanto, os juízes, os advogados, os promotores de justiça agem, e possivelmente continuam e continuarão a agir da mesma forma enquanto esta estrutura jurídica, criada pelo acontecimento das grandes revoluções do século XVIII, existir. Como foi dito, nosso interesse não está nestas questões forenses.

Este estudo buscou traçar o conceito de norma dentro de uma idéia de compreensão. Iniciaremos introdutoriamente com uma idéia superficial de norma – norma é um dever. Adotar-se-á, em seguida, uma estrutura normativa, isto é, uma fórmula pela qual a norma atua na realidade humana – a norma vincula-se a uma vontade por um imperativo, no qual o mandamento tem de ser consciente pelas pessoas. Entendendo como a norma funciona, passaremos a tentativa de apreender o que pode ser compreensão – um juízo reflexivo –, e como ela pode ou não ser obtida. E por fim, analisaremos as conseqüências do conceito encontrado de norma – como podemos nos comportar se a norma for um juízo.

É preciso advertir que, ainda que baseado em certos autores, não é a intenção aqui de realizar uma revisão bibliografia, mas desenvolver, o quanto for possível, este estudo a partir dos pressupostos colhidos quando da pesquisa. A pesquisa baseou-se nos pensamentos de Immanuel Kant, mas através de uma interpretação heterodoxa, para a qual nos socorremos em algumas idéias de Hannah Arendt. Como ela, afastaremos categorias e premissas tradicionalmente admitidas, no nosso caso premissas da ciência jurídica, para proporcionar a possibilidade de encontrarmos o modo como uma pessoa comum, sem conhecimentos jurídicos, vê a norma. Isto significa que não nos limitaremos ao pensamento kantiano sobre a moralidade, que é baseado em princípios a priori e em uma causalidade da vontade.

É interessante observar desde o início que encontraremos conceitos e pressupostos para a realização de uma “estrutura” democrática, e o que era inegavelmente previsível. Relações intersubjetivas, liberdade de pensamento, liberdade da ação e responsabilidade pessoas, senso comum, busca pela justiça, serão algumas idéias enfrentadas que lançam luzes, e bases, para a idéia de democracia, a qual se pretende trabalhar mais a fundo num futuro próximo.

2. Conceito tradicional de norma

Norma é dever. O mandamento de um imperativo, que na sua expressão contem o verbo dever, indicando uma ordem (deves fazer isto, não deves fazer aquilo), e dirige-se a pessoas. Como seu cumprimento é condicionando por este elemento, o indivíduo, é preciso que a norma esteja presente na própria pessoa, porque a norma só é quando é compreendido o dever. Logo, a norma não é um dado, mas um construído. Ela não se encontra nos textos de lei, que são atos positivos, mas na sua compreensão. E, como o indivíduo é um ser racional, é uma compreensão que nos diz ao indivíduo o que fazer. Esta idéia de norma é encontrada no livro Teoria geral das normas de Hans Kelsen2, livro editado aos a sua morte.

Porém deve ser esclarecido que a norma para Kelsen é apenas entender o dever. Isso quer dizer que os destinatários da norma apenas devem entender o que deve ser feito, não o porquê deve ser feito Assim, norma é aquilo que se entende, uma ordem, de um ato, criado por uma vontade. E existindo no entendimento, é um objeto ideado. Enquanto a norma só é dirigida àquele que a pode entender, ela só pode recair sobre a conduta humana. Assim, para existir uma norma seria preciso no mínimo duas pessoas, a que ordena, e a que deve obedecer.

A norma é válida, dirá Kelsen, quando ela existir. Sua existência está condicionada à possibilidade do seu cumprimento, pois se uma norma não deve ser cumprida, ela não é válida; em outras palavras, ou o dever é norma, ou o dever é apenas um enunciado3. A possibilidade de cumprimento existe apenas quando a norma é entendida pelo indivíduo. Não sendo verificável na realidade, já que está num âmbito não-objetivo, ela não pode ser verdadeira ou falsa, apenas válida ou invalida. Por isso o dever-ser, como elemento essencial no conceito de norma, não depende da realidade em que se encontra seu destinatário e a conduta deste. Quando se fala que uma conduta é devida, não há uma ligação com as condutas que acontecem na realidade, mas com o sentido que as condutas possuem4. Neste nexo causal (entre comando e cumprimento), os processos interiores (entendimento) formam uma ligação essencial (sentido) entre aquele que ordena (comando, querer) e no destinatário do comando (cumprimento). O dever-ser corresponde a uma conduta devida e não a uma existente. O ser do dever-ser significa ser devido, o conteúdo de um ser devido é um dever-ser5. Kelsen dá o exemplo do furto, que não é o ato de pegar para si algo alheio as escuras, mas o sentido deste ato, o qual pode ser declarado como furto; esta declaração, relacionada como a norma (não deves furtar), afirma a existência de uma quebra do dever, o furto6. A norma existe anteriormente ao sentido da conduta; quando deste é apreendido um sentido, tal sentido é relacionado com a norma conforme um princípio lógico. O dever de não furtar implica ao furto uma reprovação. Esta é o que Kant, e também Kelsen, chamaria de um nexo inteligível.

O dever-ser em Kelsen é o querer, sentido de um ato posto na realidade por um indivíduo, entendido por outro, cabendo a este o cumprimento através da realização daquele querer por uma conduta. Sentido é o que se deve; o conteúdo é como é o que se deve; a significação está nas palavras que designam algo (aqui o significado é representação do objeto); entendimento é o processo interior (subjetivo) da apreensão do sentido. O querer é o dever-ser; não existe um sentido para o querer, sobre o entendimento do dever não pode haver outro dever7.

É interessante observar que a única coisa que a norma pretende é a sua realização, pois é o querer que sublima do ato de vontade possui, logicamente, uma existência distinta do querer do sujeito que realiza este ato de vontade8. Seria dizer que o ato de vontade transcendesse ao sujeito que a realizou. A conseqüência é que a norma, um objeto ideado, existe independentemente de uma relação propriamente dita entre o sujeito que comanda e o sujeito que obedece.

A norma para Kelsen resume-se ao entender, e não compreender. A distinção está, como veremos mais a frente, na pergunta que se faz para alcançar um e a pergunta feita para obter o outro. No entender pergunta-se o que dever ser feito, no compreender a questão é por que deve ser feito algo. Essa diferença apontada gera conseqüências significativas, e, independentemente de como e em que momento da discussão sobre a norma apareceu essa diferenciação, o estudo assume a partir daqui a responsabilidade de tentar levar a cabo as conseqüências quanto a compreensão, dado que se norma for entendimento, nada mais teríamos a fazer senão nos apoiarmos em Kelsen.

3. Estrutura da vinculação entre norma e pessoa

Toda norma é imperativa. Este é o predicado dado ao que se constitui como um dever [sollen], isto é, toda proposição que pretenda sua realização através de uma vontade chama-se mandamento, “e a fórmula do mandamento é o imperativo9.

A vontade é totalmente individual, própria de cada sujeito. Para sua prescrição, a vontade relaciona-se com o mandamento, o qual prescreve o que deve ser e o que não deve ser feito; ele não é a própria vontade. Por sua constituição, a vontade não pode ser determinada, pois deixaria de ser vontade. Vontade é livre. O mandamento somente diz para a vontade o que deve ser comprido: deve fazer ou omitir algo. O mandamento é bom, a ação que o cumpriu é boa. O bom, aí, é uma representação dada pela razão, não subjetiva, logo, válida a todo ser racional.

O que é apresentado como subjetivo é visto como inclinações, dominado por desejos. Desejos são realizados por necessidade. Do lado oposto, os imperativos, dirigindo-se a vontade, devem ser cumpridos livremente, pelo simples fato de serem bons. Não haverá uma satisfação pelo dever...

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