O Que é o Dever?

AutorFrancesco Carnelutti
Ocupação do AutorAdvogado e jurista italiano
Páginas111-127

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O que são o direito, a lei, o fato, o juízo, a sanção? Algo foi respondido a essas interrogações. Algo mais, todavia, permanece desconhecido; sob a consecutio necessaria de um segundo fato ao primeiro, como é descoberta pela lei, o que se esconde? A lei não tem, em última análise, mais do que um conteúdo descritivo do que acontece; mas porque acontece? Não precisa mais do que a impressão dessa última pergunta para advertir que com ela deveria tocar-se, se é possível, o fundo da pesquisa.

Porém, a lei não diz apenas que dois fatos se subseguem, mas que se subseguem necessariamente. Como a primeira, a última dessas meditações oferece ocasião de contemplar uma das palavras mais carregadas de força intuitiva, que possua a

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língua latina ou qualquer uma de suas filhas neolatinas. Necessidade deriva, sem dúvida, de nec esse. Não ser. Ao primeiro olhar não se vê nada. Assim acontece sempre quando a luz é por demais viva. O ser, também quando se apresenta sob o aspecto de não ser, resplandece poderosamente para podê-lo olhar.

Devemos, todavia, para entender, ter a coragem de fixar o sol. Deus, quando Moisés perguntou-lhe: “como se chama, Senhor?”, respondeu: “Eu sou Aquele que é”. Aquele que é. Cada um de nós é aquele que é. Verdade? Cada um de nós é aquele que é e não é aquele que não é. Um homem é aquele homem, não outro homem. Não o ser, mas sim o ser é a verdade do homem e, de resto, de todas as coisas. Um cavalo não é um cão. Uma rosa não é uma violeta. Eu não sou tu. Somente Deus é sem não ser. Somente Deus é não somente toda a criação, mas sim toda a criação e o não criado. Isso quer dizer: Deus é o todo e o homem ou qualquer outra coisa é uma parte.

Necessidade é a condição da parte.

Parte. Uma outra palavra que, antes de todos, os juristas usam continuamente, mas não pare-cem ter o tempo de considerar. Parte se chama

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por nós o vendedor ou o comprador, o credor ou o devedor, o marido ou a mulher, o acusador ou o defensor. Essa noção parece tão natural que seria tempo perdido aquele usado para esclarecê-la. Mas porque o vendedor e o comprador, o credor e o devedor, o marido e a mulher, o acusador e o defensor se chamam partes?

Não sei o que pensam os glotólogos em torno da origem dessa palavra. Segundo as minhas poucas notícias, nem o parentesco entre pars e pario, tal como aquela entre ius e iungo, foi ainda descoberta com a ajuda do microscópio ou do telescópio. De qualquer forma, a razão me guia a entender que, sendo a parte o resultado de uma divisão do todo, o todo a engendra (parit); pela mesma razão é pouco (parum) ou pequena (parva) em confronto do todo. Porque, se o homem não fosse criado do todo, se chamaria parte?

Uma coisa é parte enquanto tem uma outra parte diante de si. Sozinha uma parte não pode existir. As partes são duas. Não há credor sem o devedor nem o marido sem a mulher nem deve existir acusador sem defensor. Não somente as partes são duas, mas são opostas. Uma contra a outra. O contraste parece o seu destino. Falando, todavia, com maior prudência, diremos, mais

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uma vez, no sentido viquiano, que é a sua natureza.

E porque tal natureza? Um estudioso não pode parar com seus porquês. Uma diante da outra. Há, então, uma fronteira entre elas? Ah, como se saboreia agora esse conceito! Itália e França, França e Alemanha, Alemanha e Rússia; no meio, as fronteiras. Defesa e sofrimento? A natureza da parte é o limite; mas o seu destino é de superá-lo. A parte, numa palavra, está na prisão. E o prisioneiro anseia a liberdade.

Eis, para o momento, um sopro de liberdade, no ar viciado da necessidade.

A necessidade é a condição da parte. Ser e não ser. Uma parte é ela mesma e não a outra parte. Porém, necessita não ser somente ela mesma. O que ela precisa é, propriamente, a outra parte. O sentido de angústia, que dá um sabor de amargor a essa palavra, descobre o sofrimento da parte por não ser tudo.

Agora se entende o dever ser, no qual consiste a relação dos dois fatos unidos na lei. Ligando os dois fatos, a lei atenua a insuficiência da parte. O dever ser expressa a tendência da parte ao seu cumprimento.

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Os homens são partes. Se aqueles que cultivam outras regiões da ciência, incluídos os filósofos, podem iludir-se sobre esse sujeito, isso não acontece com os juristas, pelo menos se prestarem atenção no seu modo de falar. Nem os biólogos nem os filósofos mesmos chamam os ho-mens de partes; ao invés, para o jurista essa é a palavra.

Contudo, ser parte é a infelicidade do homem. Expressar, sem reservas, essa infelicidade é o mérito verdadeiro da filosofia mais...

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