Os Determinantes do Emprego Doméstico no Brasil nos Anos 2000

AutorCristina Pereira Vieceli, Eduardo Miguel Schneider e Sérgio Marley Modesto Monteiro
Páginas96-115

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Introdução

Esteve em pauta ao longo dos anos 2000, no Brasil, a discussão sobre dispositivo legal que propunha igualar os direitos trabalhistas das empregadas domésticas1, um grupo composto majoritariamente de mulheres e negras, aos dos demais trabalhadores. Esta medida objetivava corrigir uma distorção histórica do sistema brasileiro de relações de trabalho, qual seja, a presença de uma "segunda categoria" de emprego, justamente aquele associado à atividade doméstica, haja vista a menor cobertura de normas reguladoras do trabalho.

Tal discussão ocorreu em um momento histórico marcado por pelo menos dois outros processos a ela relacionados. O primeiro, no campo das relações de trabalho, refere-se à institucionalização da política de valorização do salário mínimo, que se reletiu sobre os rendimentos de categorias ocupacionais como a do trabalho doméstico remunerado, uma vez que este utiliza tal referencial monetário para a formação do seu próprio salário. O segundo, no campo do mercado de trabalho, diz respeito à diminuição da participação do emprego doméstico na estrutura ocupacional brasileira, em paralelo a um movimento geral de ampliação de oportunidades de trabalho na economia.

Este ambiente não tardou a fomentar uma tese contrária à equalização dos direitos das empregadas domésticas, a qual foca o lado da demanda por trabalho doméstico e sustenta seus argumentos nos limites da capacidade de pagamento das famílias, ou seja, em um problema alocativo. Nesse sentido, o aumento do salário das trabalhadoras domésticas, em maior magnitude frente aos reajustes salariais das famílias, estaria limitando a utilização desse serviço e reduzindo a participação do emprego doméstico na estrutura ocupacional. Logo, a igualdade de direitos trabalhistas é vista por esses debatedores como um aumento de custos para as famílias empregadoras que, por sua vez, geraria menor demanda por trabalho formal e, assim, maior desemprego para as próprias empregadas domésticas pretensamente beneiciadas com a equiparação de direitos entre os trabalhadores.

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Por outro lado, a hipótese defendida neste capítulo é que há pelo menos mais uma explicação alternativa concorrente para o fenômeno, centrada na oferta de trabalho doméstico sob um contexto de expansão das oportunidades de emprego na economia. A hipótese sustenta que, ao se abrirem vagas em setores cobertos pela legislação trabalhista, a oferta de força de trabalho foi deslocada dos serviços domésticos para outros setores e, portanto, esta seria uma explicação importante da redução da participação do emprego doméstico na estrutura ocupacional brasileira.

Investigar se as evidências empíricas internacionais e brasileiras fornecem suporte a essas hipóteses é o objetivo central deste capítulo. A estratégia metodológica privilegia a abordagem do tema a partir da análise dos determinantes do emprego doméstico à variável explicada. Nesse sentido, segundo as hipóteses em discussão, o modelo teórico utiliza como variáveis explicativas: (a) a razão do salário das trabalhadoras domésticas remuneradas em relação à média salarial da economia - proxy para analisar a inluência dos aumentos salariais das empregadas domésticas; e (b) a taxa de desemprego da economia - proxy para condições do mercado de trabalho e oportunidades de emprego. Adicionalmente, a título de controle, serão estudadas também as relações existentes entre participação do emprego doméstico e outras variáveis explicativas levantadas na literatura: (i) PIB per capita (nível de produção gerada pela economia em um ano dividido pelo total da população); (ii) índice de Gini (distribuição de renda na sociedade); (iii) trabalhadores com rendimentos abaixo de USD 1.25 por dia (pobreza e, portanto, vulnerabilidade da força de trabalho); (iv) proporção de mulheres na indústria (oportunidades de trabalho para as mulheres); (v) horas trabalhadas (alocação do tempo entre funções produtivas e reprodutivas, considerada uma condição substancial para o compartilhamento dos afazeres domésticos entre os gêneros); (vi) escolari-dade (proporção da população maior de 18 anos com pelo menos o Ensino Médio completo) (RODGERS, 2013; DEDECCA, 2004; SOARES; SABOIA, 2007); e (vii) raça (proporção de negros na população).

O capítulo apresenta três seções, além desta introdução e das considerações inais. Na primeira seção, com o intuito de situar o leitor no tema, faz-se um retrospecto histórico das relações de trabalho afetas às empregadas domésticas, segundo a perspectiva analítica da evolução do marco institucional regulatório do setor (legislação trabalhista). A seção seguinte apresenta um breve diagnóstico do mercado de trabalho das empregadas domésticas em regiões metropolitanas brasileiras selecionadas, salientando suas dimensões de gênero e raça. A terceira e última seção dedica-se a apresentar os resultados dos modelos econométricos testados em nível internacional (primeira subseção) e brasileiro (segunda subseção), com vistas a lançar luz sobre as hipóteses explicativas do fenômeno da redução da participação do emprego doméstico na estrutura ocupacional brasileira, cada qual associada a uma instrução para a política de institucionalização do trabalho nesse setor.

Evolução da regulação do emprego doméstico no Brasil

A primeira norma jurídica de abrangência nacional que tratou sobre o emprego doméstico no Brasil foi o Decreto-lei n. 3.708, de 27 de fevereiro de 1941. Esta norma, além da deinição do emprego doméstico, estabelecia como obrigatório o uso da Carteira Proissional e estabelecia também o direito e as regras para concessão de aviso-prévio (BRASIL, 1941). Apesar dos

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avanços sinalizados, não chegou a entrar em vigor, sendo revogado pelo Decreto-lei n. 5.542, de 1º de maio de 1943, que aprovou a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).

A CLT, em seu artigo sétimo excluiu as empregadas domésticas e os trabalhadores rurais do âmbito de sua abrangência, deixando de protegê-los com uma série de direitos estabelecidos para as demais categorias de trabalhadores.2 Sem regulamentação trabalhista a partir da CLT, a normatização da relação doméstica permaneceu dentro do Direito Civil.

A iliação facultativa à previdência social foi revogada a partir da Lei n. 5.859, de 11 de dezembro de 1972, que tornou obrigatória a inclusão das empregadas domésticas no Regulamento da Previdência Social. Esta lei tratou exclusivamente sobre o emprego doméstico, sendo resultante do ativismo das organizações das empregadas domésticas (COSTA, 2007)3.

Ao serem incluídas na previdência social, as trabalhadoras domésticas adquiriram o direito à aposentadoria por invalidez, por velhice e por tempo de serviço e à pensão por morte, auxílio doença e maternidade, assim como seus dependentes passaram a dispor de auxílio reclusão e de outros benefícios previdenciários (SANTOS, 1982; BRASIL, 1972; BRASIL, 1973). Ainda assim, não lhes foi estendida a garantia de outros direitos previstos para os assalariados em geral, como o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), o salário mínimo, a deinição do horário de trabalho, o repouso semanal remunerado, o aviso-prévio e o 13º salário.

Após as conquistas resultantes da Lei de 1972, novos avanços nos direitos das empregadas domésticas ocorrerão somente a partir da Constituição Federal de 1988. Com efeito, o art. 7º da Carta Magna elenca os direitos constitucionais dos trabalhadores rurais e urbanos em seus trinta e quatro incisos. Desses direitos trabalhistas e previdenciários assegurados pela Constituição, no entanto, somente nove se aplicariam às empregadas domésticas, conforme a exceção constante do parágrafo único do mesmo artigo (BRASIL, 1988)4.

Após a promulgação da Constituição Federal, as organizações das empregadas domésticas permaneceram na luta pela equiparação dos direitos trabalhistas, em que se destaca o Projeto de Lei (PL) n. 1.626, de 07 de março de 1989. O projeto tramitava no Congresso Nacional quando foi aprovada a Lei n. 10.208, de 23 de março de 2001, que tornou facultativo o acesso ao FGTS mediante opção do empregador e estabeleceu o direito ao seguro-desemprego, por um período de três meses de forma contínua ou alternada, às trabalhadoras dispensadas sem justa causa. Este benefício poderia ser concedido às empregadas inscritas no FGTS que

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tivessem trabalhado como domésticas por um período mínimo de 15 meses nos últimos 24 meses contados da dispensa sem justa causa (BRASIL, 2001). Essa lei foi considerada uma derrota das domésticas, pois o PL n. 1.626 previa a obrigatoriedade do FGTS e a extensão de outros direitos trabalhistas.

Em 2006, o debate sobre a extensão de direitos às empregadas domésticas ganhou força com a promulgação da Medida Provisória n. 284, de 06 de março, convertida na Lei n. 11.324, de 19 de julho de 2006. Segundo Costa (2007), o entendimento que daria origem à MP reuniu o governo, os sindicatos das empregadas domésticas e a Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad), com o objetivo de ampliar a formalização da categoria, deinindo como meio para tanto a dedução das despesas com a contribuição ao INSS no imposto de renda do empregador.

Outras normas contidas na mesma legislação alteraram a Lei n. 5.859, de 11 de dezembro de 1972, vetando ao empregador descontar do salário despesas com alimentação, vestuário, higiene e moradia; estabelecendo o direito a férias de 30 dias após 12 meses de trabalho, remuneradas com...

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