A desvinculação de conceitos previdenciários e civis como pressuposto para a efetiva reparação dos acidentes de trabalho

AutorElysa Tomazi
CargoEspecialista em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho; Analista de Apoio Jurídico do Ministério Público da União
Páginas77-92

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1. Introdução

Quando se discutem, atualmente, temas relacionados ao acidente de trabalho, logo vêm à mente as disposições da legislação previdenciária, que estabelecem condições e parâmetros para a percepção de benefícios de amparo ao trabalhador vitimado por acidentes. Porém, no início da produção legislativa brasileira acerca da matéria, foram concebidas leis com a específica finalidade de regular a chamada infortunística do trabalho, centrada nos efeitos e consequências de eventos traumáticos ocorridos no trabalho.

Embora já fosse possível encontrar no Código Comercial de 1850 dispositivos relacionados ao acidente de trabalho, que garantiam ao trabalhador acidentado a manutenção do salário por três meses, Costa1 destaca que o Decreto n. 3.724, de 15 de janeiro de 1919, foi o marco inicial da legislação acidentária e "significou a emancipação da infortunística do cordão umbilical que a mantinha de alguma forma presa ao direito comum, reforçando sua autonomia do direito trabalhista especíi co".

No decorrer da evolução legislativa, até que se chegasse à atual Lei n. 8.213/1991, diversos foram os diplomas normativos que regulamentaram a matéria: Decreto n. 24.637, de 10 de julho de 1934; Decreto-lei n. 7.036, de 10 de novembro de 1944; Decreto-lei n. 293, de 28 de fevereiro de 1967; Lei n. 5.316/1967; e Lei n. 6.367/1976.

Nessa sequência de normas, um dos aspectos mais importantes diz respeito à obrigação do empregador em indenizar o acidente de trabalho: desde o Decreto n. 3.724/1919, já se estabelecia o dever de o patrão pagar uma indenização ao operário ou à sua família (art. 2º). A legislação seguinte determinou o dever de contratação de seguro contra acidentes de trabalho, em instituição privada ou mediante depósito em dinheiro em instituição bancária (art. 36), sendo que o pagamento da indenização excluía o direito à percepção de indenização do direito comum (art. 12). Inovando esse aspecto, o Decreto-lei n. 7.036/1944 possibilitou o recebimento cumulado da indenização devida pelo empregador por força da legislação acidentária e de outras indenizações do direito comum, quando houvesse dolo do empregador ou de prepostos (art. 31), regra que foi mantida no Decreto-lei n. 293 de 1967 (art. 11). A Lei n. 5.316/1967 e a Lei n. 6.367/1976 nada dispuseram a respeito, sendo que esse direito voltou a ser expressamente reconhecido na Constituição de 1988 que, em seu art. 7º, inciso XXVIII, dispõe que a indenização coberta pelo seguro de acidentes não exclui a indenização devida pelo empregador que incorrer em dolo ou culpa.

Outro aspecto de destaque no desenvolvimento legislativo refere-se à forma de contratação do seguro de acidente de trabalho instituída pelo Decreto n. 24.637/1934: a partir do Decreto-lei n. 7.036/1944, ele passou a ser administrado pela instituição de previdência social e, com a promulgação da Lei n. 5.316/1967, foi dei nitivamente instituído o monopólio estatal do seguro mediante sua incorporação ao Instituto Nacional de Previdência Social2.

Essa disciplina permanece inalterada até a atualidade, especialmente depois da Constituição de 1988, que, no já citado art. 7º, XXVIII, estabeleceu como direito do trabalhador o "seguro contra acidentes de trabalho", o qual é pago à previdência social na forma de contribuição social a cargo do empregador.

Nesse contexto, consolidou-se, posterior-mente a 1988, um panorama que marcou profundamente a sistemática de reparações dos acidentes de trabalho, retratada nos seguintes pontos: a autonomia existente entre a indenização coberta pelo seguro de acidentes de trabalho e a indenização comum baseada

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na responsabilidade civil, bem como a incorporação da matéria de direito acidentário à legislação previdenciária.

É a partir da compreensão desses aspectos que o presente artigo se propõe 1) a analisar a forma com que ambos se inter-relacionam e delineiam a amplitude e as formas da responsabilidade do empregador em matéria de acidentes de trabalho, e 2) a evidenciar o papel especíi co do direito previdenciário e do direito civil na efetiva reparação dos danos decorrentes de infortúnios laborais.

2. A construção do sistema de reparação dos acidentes de trabalho

Enquanto que as primeiras leis aplicáveis ao tema de acidente de trabalho pretenderam regular, de forma específica, as obrigações resultantes dos infortúnios laborais, a partir da Lei n. 5.316/1967 a matéria relacionada ao acidente de trabalho passou a ser tratada no âmbito das leis previdenciárias, lado a lado aos dispositivos que disciplinavam os benefícios da previdência social. Essa mudança foi consequência direta e imediata da incorporação do seguro contra acidentes de trabalho ao âmbito da previdência social, num movimento em que "a infortunística foi encampada pela Previdência Social"3.

O atualmente denominado Seguro de Acidente de Trabalho - SAT possui, no ordenamento constitucional vigente, status de direito social, na medida em que a Carta de 1988 prevê, no art. 7º, XXVIII, que é direito do trabalhador o "seguro contra acidentes de trabalho, a cargo do empregador, sem excluir a indenização a que este está obrigado, quando incorrer em dolo ou culpa".

Em que pese o nome de seguro, o SAT se caracteriza, em verdade, por ser um "misto de tributo-seguro"4, na medida em que é pago mediante o recolhimento de uma contribuição social a cargo da empresa. Essa contribuição está prevista no art. 201, inciso I e § 10, da Constituição Federal, e é regulamentada na Lei n. 8.212/1991 (Plano de Custeio da Previdência), a qual dispõe, no art. 22, II, que o empregador deve recolher contribuição para o i nanciamento da aposentadoria especial e dos benefícios concedidos em razão do grau de incidência de incapacidade laborativa decorrente dos riscos ambientais do trabalho.

É, portanto, mediante o recolhimento da contribuição destinada ao SAT que a Seguridade Social tem a incumbência de cobrir os riscos decorrentes de acidentes de trabalho, na forma da concessão dos benefícios previdenciários acidentários - auxílio-doença, aposentadoria por invalidez, pensão por morte e auxílio-acidente, todos previstos na Lei n. 8.213/1991.

Em razão dessa atual mescla entre direito acidentário e previdenciário, o vigente seguro contra acidentes de trabalho, ao contrário daqueles previstos anteriormente à Lei n. 5.316/1967, já não apresenta uma função indenizatória, pois se limita a custear parcelas destinadas à manutenção do sustento do trabalhador durante a enfermidade, de forma substitutiva do salário. Conforme elucida Oliveira5:

O seguro de acidente de trabalho no Brasil não tem natureza jurídica, nem conteúdo de seguro propriamente dito. Apesar da denominação, só garante um benefício estrito de cunho alimentar. Sua regulamentação não contempla indenização alguma, nem determina reparação dos prejuízos sofridos; apenas concede benefícios previdenciários

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para garantir a sobrevivência da vítima e/ou seus dependentes, como ocorre com todos os demais segurados da Previdência Social. É precisamente nesse contexto que desponta o outro aspecto de relevância na evolução legislativa, qual seja, a autonomia existente entre a indenização coberta pelo seguro de acidentes de trabalho e a indenização comum baseada na responsabilidade civil, cujas primeiras linhas foram traçadas na introdução.

Como mencionado, o direito ao pagamento de indenização de direito comum por acidente de trabalho foi inicialmente previsto no Decreto-lei n. 7.036/1944. Essa inovação legislativa, de acordo com Oliveira6, ensejou longas discussões entre empregadores e sindicatos, pois os primeiros consideravam que a legislação havia instituído um sistema de dupla indenização pelo mesmo fato, o que seria ilegal. Quando a questão chegou ao STF, o tribunal "não só reputou válida a cumulação do art. 31, (...) como avançou no entendimento para estabelecer o direito da vítima à reparação civil também nos casos de culpa grave do empregador"7. Com base nesse raciocínio, foi editada, em 1963, a Súmula n. 229 do STF, com a seguinte redação: "A indenização acidentária não exclui a de direito comum, em caso de dolo ou culpa grave do empregador." Assim, passou-se a admitir a indenização civil quando o empregador incorresse em grave negligência e omissão quanto à segurança do empregado, a ponto de contribuir para o acidente de trabalho8.

A promulgação do texto constitucional de 1988 trouxe novos contornos ao direito de cumular as indenizações, na medida em que previu, no já citado art.7º, XXVII, que é direito do trabalhador o "seguro contra acidentes de trabalho, a cargo do empregador, sem excluir a indenização a que este está obrigado, quando incorrer em dolo ou culpa". De acordo com a lição de Oliveira9:

O dispositivo constitucional alargou sobremaneira o campo da responsabilidade civil quando não qualificou a culpa do empregador no acidente, pelo que é imperioso concluir que todas as suas espécies ou graus geram o direito à indenização. Restou ampliado e, portanto, superado o entendimento da Súmula n. 229/STF, que só deferia a indenização ao acidentado no caso de dolo ou culpa grave.

O próprio art. 121 da Lei n. 8.213/1991 consagrou o mesmo entendimento, ao dispor que "o pagamento, pela Previdência Social, das prestações por acidente do trabalho não exclui a responsabilidade civil da empresa ou de outrem". Dessa forma, atualmente, está pacificada na doutrina a possibilidade de cumulação entre as indenizações, conforme evidenciam as palavras de Cavalieri10:

Temos, assim, por força de expresso dispositivo constitucional, duas indenizações por acidente de trabalho, autônomas e...

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