Desvelar da feminilidade - a construção da alteridade

AutorJacson Leal da Silva - Raquel Fabiana Lopes Sparemberger
CargoAdvogado. Mestrando em Política Social pela Universidade Católica de Pelotas ? UCPEL - Possui graduação em Direito pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (1995)
Páginas224-243

Page 225

Introdução

O presente trabalho aborda a problemática de género na modernidade em sua fase contemporânea. Para isso, traz-se brevemente um resgate do legado histórico de dominação intrínseco ao paradigma de sociabilidade da modernidade

Page 226

ocidental. Assim é influenciada por um passado de excesso de tradições que determinavam a mulher como um corpo para servir e ser dominada, um processo histórico de privações e submissão.

O foco principal do trabalho é analisar com os movimentos sociais, principalmente os movimentos feministas como face do potencial emancipatório que é forjado no seio da própria modernidade e contra as contradições que esta produz. Movimento ao qual se atribui a função de colocar em prática e criar uma mentalidade Amazona, figura mitológica que deve ser retomada, como força motriz para esta luta, que é, sobretudo, de índole cultural, que exerce forte e pesada influência sobre o espaço político e social.

E ainda Ciborgue, tendo em vista se trabalhar tendo claras as influências e importância que exerce os fluxos globalizantes, tecnologia e mercado global sobre a manutenção cultural dentro de um parâmetro seguro ao Estado Varão.

Desta forma, preconiza-se a criação de uma mentalidade aliando a força de uma figura da mitologia grega, reconhecida pela força e coragem, além de permeada pela ternura e a modernidade de uma criação humana que pode congregar os influxos de informações e intercâmbio de culturas, apta a entrar na luta contra o predador cultural/social, o homem, o Estado, a mentalidade, os hábitos culturais, uma sociabilidade calcada na dominação por género em uma sociedade varônica.

1. A herança e atualidade de Amélia - a mulher e o espaço privado

A dominação1 masculina vem sendo desempenhada desde tempos imemoráveis, sob o argumento de que seria resultado da natureza humana, ou da natureza da mulher e da cultura do homem, nascendo o mito cultural que a mulher é apenas uma extensão da natureza e o homem a expressão cultural, fazendo com que a nossa cultura seja, ainda hoje, predominantemente masculina e opressora

Page 227

desde que o homem conseguiu apreender os processos de manipulação/dominação da natureza.

Desde os tempos mais remotos, da sociedade constituída politicamente, as sociedades que pensam o político - na Grécia Antiga, a mulher já era subjugada e submissa ao homem, aos detentores do conhecimento e da política. Legado transmitido à civilização Romana, que por sua vez aprofundou essas desigualdades de género.

Não bastasse esta dominação ascendente, com a criação da instituição familiar como membro nuclear da sociedade política, tem-se o cerceamento da sexualidade feminina devido à necessidade económica de apropriação e controle sobre a transmissão por herança dos bens de família, tendo em vista que esta (a mulher, esposa, mãe, obediente e submissa) estava relegada ao espaço privado, mais que isto, espaço doméstico, ao contrário do homem, que adquiriu um espaço público de privacidade, onde não é retirada a sua livre e espontânea atividade sexual e afetiva, demonstração de sua virilidade.

Com a cristianização do mundo romano tido como bárbaro acrescenta-se à posição da mulher como naturalmente submissa, o fator divino - extra-humano que requeria obediência e abnegação constantes, devido estarem diante da vigília permanente do senhor, todo poderoso - onipresente, onisciente e onipotente. O que confirmava e confinava as mulheres dentro do lar, cuidando dos filhos. Esta era a mulher normal e as que procuravam mudar esta lógica eram tidas como loucas, carecendo de purificação, tratamento e isolamento, quando não queimadas como bruxas.

Movimento no qual se produziu demonstração de poder e atribuição de dor ao prazer, a Cristandade, através do fenómeno da Santa Inquisição, dizimou predominantemente as mulheres, aprofundando, assim, ainda mais o repúdio à sua cultura, sua história, corrompendo seus valores e características, atributos e costumes, transformando-as em loucas, possuídas, bruxas (...); passando a gerir o verdadeiro demónio desestabilizador da sociabilidade humana, a evolução científico-produtiva capitalista que se desenvolve nos séculos porvir, tendo a mulher como seu antagónico e oponente, dentro de casa ou no fundo de um calabouço, simbolizada pela "maldita" Eva, das santas escrituras, que a todas condenou, eternamente.

Page 228

O calabouço veio com a modernidade, sob a bandeira da democracia, disfarçado de igualdade de escolhas e oportunidades para todos. Potencializado pelo fenómeno, não novo, mas em ampla expansão, chamado globalização que extrapola os limites de possibilidades e oportunidades, de lucro, necessitando cada vez mais de demanda - de consumidores desta lógica, que não se trata apenas de consumo, para de uma ideologia de tudo ser quantificável; para alguns em cifras, ou em bolhas de champanhe ao final de cada ano; para outros em minutos, dias, anos [...] riscados e perdidos na parede suja de alguma cela.

O ponto convergente deste contrato social se deu com a juridicização da organização social, reflexo da concentração de poderes no ente público estatal. Neste sentido, as decisões são tomadas no espaço público, mas quando os anseios privados clamam serem publicizados, Bauman escreve:

[...] o aumento da liberdade individual pode coincidir com o aumento da impotência coletiva na medida em que as pontes entre a vida pública e privada são destruídas ou, para começar, nem foram construídas; ou, colocando de outra forma, uma vez que não há uma maneira óbvia e fácil de traduzir preocupações pessoais em questões públicas e, inversamente, de discernir e apontar o que é público nos problemas privados. (BAUMAN, 2000, p.10)

Pierre Bourdieu (2005) trabalha com o fato de que as atividades públicas de representação e tomada de decisões e onde são desenvolvidos e ostentados os bens simbólicos de cada indivíduo, o qual a mulher não alcança, onde não lhe é permitido alcançar, onde se dão as trocas de honra, e parte-se de um pressuposto, que isto só é possível entre iguais, ou seja, entre duas pessoas que possuam honra o que não é o caso da mulher, mero objeto da honra masculina.

Ademais, Jussara Reis Prá aclara, "[as mulheres] quando buscam espaços de poder no tradicional 'mundo masculino'" (PRÁ, 2004, p. 45) sendo, via de regra, neles inseridos em conex o com o 'mundo feminino', o exercício de atividades relacionadas com saúde, educação, família; tornando a vida pública extensão da função maternal/doméstica, reforçando a clássica dicotomia que atrela as mulheres à esfera privada (reprodução), de afazeres domésticos e cuidado dos outros, e os homens à esfera pública (produção), da economia, da política, [...] das decisões.

Essa dicotomia é consequência lógica da sociedade em que vivemos, permeada de tradição. Como propõe Bauman "induz a crer que o passado amarra o

Page 229

presente; prevê, no entanto, [e desencadeia] nossos esforços presentes e futuros de construç o de um passado pelo qual precisamos ou queremos ser amarrados" (BAUMAN, 2000, p. 136). Como salienta Giddens, vivemos em uma sociedade pós-tradicional, mas não por viver em uma sociedade que superou ou escassa de tradições; mas, em uma sociedade referência de um excedente de tradições, com um excesso de leituras do passado competindo pela aceitação (GIDDENS apud BAUMAN, 2000).

Esta tradição ou excesso permeia o contrato social e o mundo público das decisões, ao mesmo tempo em que relega e delega à mulher ao/o espaço privado, doméstico, transformando-se em um contrato sexual, do qual a mulher não pode se furtar de cumprir, sob pena de carregar a culpa de impedir o crescimento societário, visto que estaria deixando de lado o núcleo celular desta sociedade, a família patriarcal. Como propõe Joaquín Herrera Flores:

[...] como consecuencia de esa 'naturalización' de valores masculinos y femeninos, el patriarcalismo ha inducido una construcción social del derecho y la política instituyendo dos situaciones: una visible, la Ilamada esfera de los iguales ante la ley y otra invisible, la de los y las diferente. (FLORES, 2005, p. 31)

Assim, o contrato social restringe a liberdade coletiva e proclama produzir a mesma liberdade, a segura e sistémica liberdade individual-burguesa; contrariando esta ideia, Bauman propõe: se a liberdade foi conquistada, como explicar que entre os louros da vitória não esteja a capacidade humana de imaginar um mundo melhor e de fazer algo para concretizá-lo? E que liberdade é essa que desestimula a imaginação e tolera a impotência das pessoas livres em questões que dizem respeito a todos? (BAUMAN, 2000, p. 9)

Ou como propõe Joan W. Scott para quem - a liberdade requer um ato de escolha, pelo qual algumas diferenças são minimizadas ou ignoradas enquanto que outras são maximizadas e postas a se desenvolver [...] desde quando é permitido abrir mão de seu sexo? (SCOTT, 2005, 15) - propõe a autora, visto a maximização das características que são utilizadas para a sua subordinação (da mulher) enquanto minimizados seus potenciais.

Situação e estágio de dominação simbólica, como coloca Bourdieu, "violência suave, insensível, invisível a suas próprias vítimas" (BOURDIEU, 2005, p.

Page 230

7) inclusive afetando sua clientela masculina, os quais não podem fugir do papel opressor e opressivo, ou seja, virtuosidade que é imposto ao homem demonstrar, um papel preestabelecido independentemente de negação, aceitação, questionamento; "ele n o pode agir de outro modo, sob pena de renegar-se" (BOURDIEU, 2005, p. 63).

Esta virilidade, ou modelo de ser masculino consiste na...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT