Desporto, Direito e Trabalho: uma Reflexão sobre a Especificidade do Contrato de Trabalho Desportivo

AutorJoão Leal Amado
Ocupação do AutorProfessor da Faculdade de Direito de Coimbra
Páginas9-21

Page 9

VEr nota 1

"Se o Brasil descalçar as chuteiras, corre o risco de perder sua identidade"2

I Introdução: desporto e trabalho

É sabido que o século XX assistiu, na feliz expressão de Michel Caillat, a um processo de "desportivização do planeta"3 sem precedentes. Com efeito, o desporto pauta a vida quotidiana do planeta, enquanto fenômeno quase onipresente, para os que o praticam (e são bastantes), para os que a ele assistem (e são muitos) e para os que dele falam (e são quase todos). E aqui temos, justamente, aquelas que, segundo Umberto Eco, são as três instâncias constitutivas do desporto: o desporto na primeira pessoa, praticado pelo desportista, o desporto ao quadrado, enquanto espetáculo observado pelo público "voyeurista", e o desporto ao cubo, enquanto discurso sobre o espetáculo desportivo (discurso da imprensa desportiva, o qual, por sua vez, engendra um discurso sobre a imprensa desportiva, elevando o desporto à potência n)4. Trata-se mesmo, em certo sentido, de uma nova forma de religião (a religião dos nossos tempos, supostamente secularizados) e, independentemente dos juízos de valor que se formulem - do "desporto-escola de virtudes" ao "desporto-ópio do povo", do "desporto-é-cultura" ao "desporto-é-guerra", do "desporto-educação" ao "desporto-alienação", do "desporto-patriotismo" ao "desporto-chauvinismo" -, o certo é que, na atual civilização do espetáculo, da informação e dos lazeres, a sua importância não tem paralelo.

Aliás, é mister não menosprezar o papel historicamente desempenhado pelo Direito do Trabalho neste domínio. Como é sabido, na época da Revolução Industrial as camadas trabalhadoras encontravam-se sujeitas a condições laborais duríssimas, com o cotidiano dos operários a dividir-se entre o trabalho (muito), a alimentação (escassa) e o sono (curto). Ou seja, o tempo de vida do operariado era absorvido, na sua quase totalidade, pelo trabalho. Ora, foi neste contexto que surgiram as primeiras leis do trabalho, tendo como principal escopo, justamente, a redução do tempo de trabalho (limitando a duração da jornada de trabalho, consagrando o princípio do descanso semanal, reconhecendo o direito a férias, etc.). Nestas condições, uma nova categoria temporal foi ganhando corpo para as camadas laboriosas - o "tempo livre", contraposto ao tempo de heterodisponibilidade -, a qual veio possibilitar o acesso dos trabalhadores ao espaço desportivo, espaço este até então praticamente reservado às classes possidentes. Dir-se-ia, pois, que a emergência do tempo livre (inclusive do "tempo livre desportivo") corresponde à afirmação histórica do Direito do Trabalho, pelo que bem poderá concluir-se, acompanhando François Mandin, que o surgimento do desporto moderno constituiu um processo que se foi desenvolvendo "na sombra da formação do direito do trabalho"5.

Sucede que, ao mesmo ritmo que o planeta se foi desportivizando, o desporto, esse, foi-se mercantilizando. E a tal ponto se mercantilizou que aí temos o que hoje é pacificamente reconhecido como uma nova indústria: a indústria do desporto, rectius, a indústria capitalista do desporto. Com efeito, o desporto profissional traduz-se numa atividade

Page 10

econômica de considerável relevo, representando uma área de negócios florescente e bastante apetecível. Nas palavras de Simon Gardiner, "for good or bad, modern sport is big business", ou, como prefere dizer Ellis Cashmore, "sport is not just like business, it is business"6, sendo aliás frequente, na literatura anglo-saxônica, utilizar a sugestiva fórmula Sport$biz para exprimir este fenômeno. De resto, o próprio surgimento, neste domínio, das sociedades desportivas - isto é, de sociedades por ações, imbuídas de espírito lucrativo, por vezes cotadas em bolsa -, fenômeno pouco menos que impensável há algumas décadas atrás, atesta a imparável comercialização que assola o universo desportivo. Como assinalam, não sem denotar alguma apreensão, Wladimir Andreff e Jean François Nys, no desporto "on est passé de l’argent tabou à l’argent roi" .

Em suma, se o séc. XX foi o século do desporto, ele foi também, indiscutivelmente, o século do triunfo do desporto profissional. Perante semelhante cenário, quid juris relativamente ao praticante desportivo? Sendo ele um profissional, poderá ser considerado um trabalhador subordinado por conta de outrem, um trabalhador assalariado?

A tese de que um desportista profissional pode ser um trabalhador por conta de outrem é hoje uma tese praticamente pacífica. Tão pacífica, dir-se-ia, como a própria existência do desporto profissional. Porém, assim como a afirmação do desporto profissional consistiu num processo histórico longo e conturbado, recheado de contestação e reserva7, também o status de trabalhador assalariado para o praticante desportivo suscitou claras rejeições ou, pelo menos, bastantes reticências. Na doutrina portuguesa, e para dar apenas um exemplo, Constantino Fernandes, na sua obra pioneira em matéria de direito desportivo, O Direito e os desportos, rejeitava a eventual existência de um contrato de trabalho vinculando desportista e clube, "porque nem o desporto é trabalho em sentido económico, nem a associação desportiva exerce uma atividade produtora de valores comerciais ou industriais"8.

Nos nossos dias, porém, não há razões para a persistência de dúvidas sérias quanto a este ponto. E, diga-se em abono da verdade, poucos parecem tê-las. Com efeito, é hoje líquido que, como ensina a doutrina, qualquer atividade, desde que lícita e apta para a satisfação de um interesse do credor digno de tutela jurídica, pode constituir objeto de contrato de trabalho. Não existe, na verdade, um numerus clausus de atividades laborais. E também não existe qualquer antagonismo insuperável entre jogo e trabalho, entre desporto e profissão. É certo que, tradicionalmente, o desporto relaciona-se com o ócio, com o lazer, com o tempo livre, surgindo, portanto, como a antítese do trabalho9.

De forma intuitiva e simplista, dir-se-ia que o desporto surge ligado aos fins de semana, aos fins de tarde e às férias, ao passo que o trabalho, esse, estende-se de segunda a sexta-feira, das 9 às 18 horas10. Todavia, a passagem do

Page 11

desporto-recreação para o desporto-espetáculo (inclusive, quando não sobretudo, mediático), fator de diversão de quem a ele assiste e não de quem o pratica, vem a transformar o desporto num véritable métier, num genuíno type of work, desvanecendo a figura do atleta homo ludens - e fazendo emergir a figura do atleta homo faber. Do desporto-antítese do trabalho transita-se, pois, para o desporto-espécie de trabalho. Com efeito, para o praticante profissional a atividade desportiva deixou de constituir uma recreação destinada ao repouso da fadiga ou uma alternativa à monotonia de um trabalho que oprime e consome; para este praticante, a atividade desportiva, atividade constante e absorvente, carregada de obstáculos e problemas, é o seu próprio trabalho, conforme assinala Roger Caillois11.

A natureza da prestação devida não constitui, pois, critério de qualificação do contrato de trabalho. Aquela possui um âmbito extremamente amplo e diversificado, onde se podem incluir as atividades de cariz desportivo. O que caracteriza e contradistingue o contrato de trabalho é a forma de execução da prestação devida, ou seja, a circunstância de esta ser devida sob a autoridade e direção de outrem, que o mesmo é dizer, em regime de subordinação jurídica. Ora, a verdade é que na atividade desportiva se assiste, porventura devido ao ininterrupto e, dir-se-ia, infernal ciclo que a caracteriza (preparação-competição-recuperação), a um estado de subordinação particularmente acentuado por parte do praticante, colocado numa situação de quase permanente heterodisponibilidade. Nenhuma razão válida se vislumbra, portanto, para excluir semelhante contrato do âmbito do Direito do Trabalho, havendo mesmo quem entenda que as condições de trabalho do praticante desportivo se assemelham cada vez mais às de um trabalhador fabril, em matérias como o stress, os acidentes de trabalho e as doenças profissionais, as ofensas à saúde (dopagem), a fadiga física e mental, a intensificação paroxística do trabalho, a hierarquia, os prémios de rendimento, a produtividade, etc.12

II O contrato de trabalho desportivo como "contrato especial de trabalho"

Aqui chegados, estamos em condições de avançar. Nenhuma dúvida razoável subsiste quanto à questão de saber se o praticante desportivo poderá ser um trabalhador assalariado. A resposta é, como vimos, afirmativa. Porém, invariavelmente, logo se acrescenta: trata-se de um trabalhador, mas de um trabalhador sui generis! A relação de trabalho do praticante desportivo é uma relação eivada de especificidades, dotada de assinaláveis particularidades, é uma relação especial, peculiar, atípica, singular...

Parafraseando Matteo Dell’Olio, dir-se-ia constituir hoje um dado adquirido que a casa do Direito do Trabalho é muito grande, aí habitando desde o mais elevado dos dirigentes ao mais modesto dos trabalhadores, nela sendo bem-vindo, por conseguinte, o praticante/trabalhador desportivo13. A questão é outra, consistindo em apurar qual o exato lugar que o praticante ocupa no edifício juslaboral. Com efeito, se o praticante desportivo é um trabalhador assalariado, o certo é que ele não é um trabalhador como os outros, a verdade é que ele é um trabalhador diferente dos outros. E a pergunta que então se coloca é esta: diferente em quê, diferente por quê?

Não é difícil alinhavar algumas respostas mais ou menos satisfatórias. Com efeito, o protótipo normativo das relações de trabalho subordinado é constituído, recorde-se...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT