Principiologia Constitucional do Desporto e os Princípios Juslaborais Típicos das Relações Trabalhistas Atleta-Entidade Desportiva

AutorÁlvaro Melo Filho
Ocupação do AutorProfessor com título de Livre-Docência em Direito Desportivo
Páginas22-32

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Ver nota 1

Introdução

Em tempos em que a reflexão e concretização do Direito deve ocorrer também na perspectiva dos princípios - ou "principialização" -, esta análise principiológico-desportiva, seja na esfera constitucional, seja na seara trabalhista, coloca-se como temática de permanente atualidade. À evidência, a edificação de postulados jus-desportivos na Lei Maior e na Lei de Normas Gerais do Desporto criou condições para uma nova era desportiva no Brasil, seja fortalecendo a iniciativa privada, seja delimitando a ingerência estatal em matéria desportiva.

Não há dúvidas de que a constitucionalização do desporto e sua consagração como direito positivado, explicitamente no maior patamar jurídico-normativo-trabalhista, corresponde a uma ruptura com o passado que não tem apenas um valor simbólico ou retórico, porquanto resulta em consequências jurídicas concretas, ao balizar o necessário equilíbrio de atuação entre os setores privado e público em face do desporto, tendo sempre em mira construir um desporto mais justo e humano.

Em sede introdutória, é do vigorante art. 217 grafado na Carta Magna de 1988, de onde promanam os específicos postulados jus-desportivo-constitucionais, enquanto as relevantes mutações produzidas pela Lei n. 12.395/2011 na chamada "Lei Pelé" (Lei n. 9.615/1998) consolidaram pedras angulares e matizes próprias das relações trabalhistas atletas x entes de prática desportiva (clubes) de onde também são extraíveis alguns princípios típicos e peculiares.

Rememore-se, nesse passo, que os princípios jus-desportivos estejam no patamar constitucional, ou legal, não se prestam a interpretações caprichosas, voluntaristas ou arbitrárias, sem olvidar-se que uma de suas funções dar supedâneo ao aplicador do Direito na eterna busca de soluções para problemas, necessidades e inquietações da atualidade jus-desportiva.

Deflui-se, então, dessas colocações, a relevância dos princípios, tanto constitucionais, quanto infra-constitucionais, na seara do desporto e das relações jus-laborais-desportivas, para todos aqueles que, no dizer de Canotilho, "pretendam "jogar" seriamente o "jogo" do direito desportivo".

Princípio da Autonomia Desportiva

A autonomia desportiva, em sua concepção jurídica, como princípio ou "postulado inderogable y vinculante" reconhecido e incorporado ao Texto Constitucional, decorre da "relação necessária entre autonomia e a criação de regras próprias" na construção de um ordenamento desportivo típico ou "d’un espace juridique sportif original" (Auneau). Aliás, na mesma linha, Ernesto Russo assinala que "l’ordinamento sportivo può definirsi come un ordinamento di settore, originario, il quale anche se non è dotato di sovranità, è caratterizzato da un’ampia sfera di autonomia: tale autonomia si articola essenzialmente sul piano dell’organizzazione e della normazione interna". Vale dizer, não é de hoje que se reconhece a "aplicazione del principio de autonomia dell’ordinamento sportivo da quello statale", ou, da sacrossanta eficácia da autonomia do movimento associativo desportivo e consequente impossibilidade de ingerência ou de intrusão dos poderes dos Estados nesta vasta "reserva natural" do desporto ou na "esfera mínima de autodeterminação de cada um" que acabam contaminando a pureza dos preceitos puramente desportivos.

A autonomia os entes desportivos (art. 217, I, da Lex Magna) busca assegurar-lhes espaço e liberdade para soluções mais adequadas às suas peculiaridades da sua conformação (organização) e de sua atuação (funcionamento), desde

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que respeitados os limites da legislação desportiva nacional e resguardados os parâmetros fixados pelas entidades desportivas dirigentes internacionais. Agregue-se que esta autonomia desportiva (garantia constitucional dos entes desportivos quanto a sua organização e funcionamento) não tem o mesmo sentido e alcance da independência (atribuída aos poderes do Estado), e também não compromete a soberania (imanente à Nação e aplicável tão apenas nas relações entre Nações, sendo incogitável quando se trata de entes privados de diferentes países).

Sinale-se que esta autonomia desportiva (art. 217, I, CF) constitui-se num princípio elevado ao plano do ordenamento jurídico-constitucional, portanto, dotado do maior grau de positividade jurídica possível que a ele se atribuiu, não sendo supressível ou infirmável por mera ação legislativa ordinária ou da administração pública, vale dizer, sua supremacia impõe-se à observância necessária e cogente por qualquer dos integrantes dos poderes públicos.

A autonomia desportiva é, à evidência, ínsita ao próprio desporto e cada entidade associativa tem, dentro de certos limites de competência, plenos poderes de auto-regulação e auto-normatização, resguardadas tão apenas as clássicas áreas de responsabilidade estatal, ordem pública e segurança pública. E não poderia ser de outra forma. Com efeito, é plena a possibilidade de convivência entre a autonomia desportiva e os poderes de ordenação e de controle do Estado. Ou seja, não se negam, não se repelem e nem constituem "deux choses qui hurlent de se trover esemble", sendo apenas aparente o antagonismo, na medida em que se complementam em harmoniosa interação e inarredável integração, sem transformar o desporto em "assunto de Estado". E tudo isso decorre da sensibilidade do constituinte que, ao invés de erigir a autonomia desportiva como um mero desiderato principiológico, outorgou-lhe a cogência desejável e com profunda repercussão na prática jus-desportiva. E o fez em sintonia com a mais moderna doutrina desportiva mundial, ao reconhecer que só as próprias entidades associativas de cada modalidade desportiva possuem a experiência e o conhecimento necessários para a melhor solução de seus próprios problemas. Caso não fosse respeitada essa autonomia, seria admitir como possível ao legislador de cada país mudar as próprias regras da respectiva modalidade desportiva, um disparate tão absurdo que acarretaria a perda de identidade do desporto, sua descaracterização e o prejuízo irreparável aos praticantes, aos adeptos e a toda a sociedade. Em suma, a autonomia desportiva é um postulado ou "pedra de toque" que tem lastro na Constituição Federal, delegando poderes às entidades desportivas, não podendo ser violentado ou infirmado por norma de hierarquia infraconstitucional, até porque a Legum Magna jamais autorizou ao legislador ordinário impingir restrições ou fixar limites para o exercício da autonomia desportiva. Reitere-se, por importante que os entes desportivos possuem um núcleo de autogoverno que lhes é próprio e que, por isso mesmo, constitui expressão de legítima autonomia que deve ser ordinariamente preservada, porque, ainda que fosse admissível, seria sempre extraordinária a possibilidade de interferência.

Sublinhe-se que a consagração constitucional da autonomia desportiva impõe a preservação do postulado face a lex infra-constitucional impedindo-a de desvirtuá-lo ou tolhê-lo na sua capacidade de produzir efeitos jurídicos dentro do círculo predeterminado no Texto Constitucional, porquanto:

  1. nem mesmo uma lei complementar poderá alterar a outorga, evidenciando sua intangibilidade por normas de hierarquia inferior;

  2. a norma do art. 217, I, é de eficácia plena e aplicabilidade imediata, embora aceite regulamentação de caráter instrumental visando à sua maior funcionalidade, expressa em normas gerais sobre desporto, desde que não importe em restringir, reduzir, diminuir ou afetar, ainda que de modo indireto, a autonomia desportiva;

  3. os limites impostos à autonomia das entidades desportivas provêm diretamente da Constituição e só dela podem ser extraídos, sendo limites genéricos aqueles que decorrem dos princípios fundamentais do Estado brasileiro, dos direitos e garantias individuais e dos princípios expressos no art. 217 da Lex Magna.

    Aliás, dentro desta perspectiva, observe-se que a autonomia desportiva das entidades dirigentes e associações na condução de ações interna corporis e de organização podem ser desdobradas em: a) autonomia estatutária, decorrentes do direito de elaborar seus próprios estatutos, criando regras de funcionamento, estabelecendo o regime econômico-financeiro e delimitando as relações com os associados ou sócios; b) autonomia regulamentar que produz normas fixando regras e diretrizes em derredor de seus interesses; e, c) autonomia disciplinar que consiste no poder jurídico de definir os órgãos da Justiça Desportiva incumbidos de julgar as infrações cometidas em sede de disciplina e competições desportivas. De mais a mais, é preciso repontar e insistir que existe uma distinção formal evidente e impostergável entre a autonomia desportiva promanada da Constituição Federal (art. 217, I) e aquela autonomia que ressai da lex

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    ordinária, sendo que a autonomia inserida como cânone desportivo constitucional tem seus limites traçados e demarcados tão somente pela Constituição, e não, pela lei.

    Nesse diapasão, como princípio de hierarquia constitucional e valor de índole igualmente constitucional, a autonomia desportiva só pode ser restringida por normas de estatura constitucional, ou em virtude delas. Com efeito, o constituinte não remeteu nem conferiu ao legislador ordinário, com ou sem reserva, esta possibilidade jurídica de impor limites. Torna-se visível, nesse passo, uma barreira de proteção ao conteúdo essencial da autonomia desportiva, inibindo a atuação exorbitante do legislador desportivo infraconstitucional, sob pena de...

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