Direito Desportivo: Aspectos Críticos - Origem e Formação dos Clubes de Futebol no Brasil

AutorGustavo Adolpho Vogel Neto
Ocupação do AutorProfessor do Curso de Direito da Universidade Estácio de Sá. Membro da Academia Nacional de Direito do Trabalho e do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo
Páginas67-80

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Ver nota 1

1. Introdução

O tema ora versado envolve múltiplos aspectos concernentes à gênese das agremiações futebolísticas brasileiras e às configurações que as mesmas assumiram ao longo do tempo. Ante a natureza da matéria, predominam aqui os elementos históricos e sociológicos - mais do que os jurídicos - desenvolvendo-se em torno de tais elementos o exame, tão detalhado quanto possível, dos fatos que determinaram o surgimento e a evolução das referidas agremiações, desde o fim do século XIX e início do século XX, quando se verificou a incorporação do futebol aos hábitos e à cultura do nosso povo.

A abordagem histórica, no caso, é de suma importância, porque revela as condições em que o futebol chegou ao Brasil, importado da Europa - ou mais precisamente da Inglaterra - por iniciativa de pessoas integrantes dos segmentos mais elevados da sociedade. Isso explica a feição elitista dos primeiros clubes brasileiros, sendo que alguns deles já existiam, dedicando-se a atividades sociais (recreativas) ou à prática de esportes como o remo, por exemplo, e aderiram, posteriormente, ao futebol; outros vieram a ser criados especialmente para a prática dessa modalidade esportiva.

Do ponto de vista sociológico, a análise do assunto se mostra igualmente relevante, eis que coloca em destaque o processo de popularização do futebol, tornando-o acessível a todas as classes sociais. Por isso mesmo, os clubes, seguindo análoga tendência, democratizaram-se, passando a acolher associados e atletas de qualquer status, sem aversões de ordem racial, financeira, cultural, etc. Daí a criação dos "clubes de massa", dos "clubes de fábrica", dos "clubes de várzea", que se incorporaram ao cenário do esporte brasileiro, transformando em obsoletos os antigos "clubes de elite".

Esses e outros aspectos, sobretudo históricos e sociológicos, constituem a essência do presente estudo sobre a origem e a formação dos clubes de futebol no Brasil, sendo oportuno lembrar que a História e a Sociologia são ciências afins do Direito: a primeira considerada como "ressurreição do passado, que fornece ao Direito o humo que o vivifica"2; e a segunda como "ciência das instituições, às quais o Direito dá forma jurídica"3. Além desses aspectos, analisam-se, sucintamente, as implicações da Lei n. 9.615, de 24 de março de 1998, no que tange aos chamados "clubes-empresas".

2. Primórdios do futebol no Brasil
2.1. Charles Miller, o pioneiro

Os historiadores, de modo geral, atribuem ao desportista brasileiro Charles William Miller a iniciativa de introduzir em nosso país a prática do futebol. Nascido no Brás, São Paulo, em 1874, Charles Miller viajou para a Inglaterra, aos 9 anos de idade, a fim de estudar em Southampton, na Banister Court School, tendo ali aprendido a jogar futebol, rúgbi e críquete. Retornando ao Brasil em 1894, trouxe na sua bagagem vários apetrechos usados nos matches de futebol, cuidando, então, de difundir aquele esporte, que viria a ser, em pouco tempo, o mais popular no Brasil e no mundo.4

A origem do futebol mostra-se, pois, tipicamente elitista, praticado, de início, por uma classe privilegiada europeia, constituída de estudantes, intelectuais, empresários, etc. No Brasil, manteve essa característica, tendo Charles Miller procurado transformar os integrantes da comunidade britânica, que viviam em São Paulo e se dedicavam principalmente

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ao críquete, em adeptos do futebol. Para tanto, aliou-se a desportistas ardorosos, como William Snape, William Speers, William Fox Rule, Peter Miller, Percy Lupton e Charles Walker.5

Registre-se que, de volta ao Brasil, em 1894, Charles Miller foi trabalhar com o pai na São Paulo Railway Co., onde, desde logo, organizou uma equipe de futebol, que, em 1895, protagonizou aquele que se considera o primeiro jogo oficial de futebol no país, disputado numa gleba de terra da Várzea do Carmo, contra o time da The Gás Co. A realização desse evento esportivo tornou-se possível graças à mobilização de recursos materiais e humanos do São Paulo Athletic Club, entidade criada em 1888 e à qual Miller estava ligado.6

2.2. Versões conflitantes

Sabe-se que os fatos históricos estão, muitas vezes, sujeitos a descrições ou interpretações desiguais. É o que acontece quanto à inserção do futebol nos costumes, no vezo, do nosso povo. Referimo-nos, anteriormente, ao pioneirismo de Charles Miller, que, em 1894, teria começado a disseminar, no Brasil a teoria e a prática do futebol. Existem, porém, autores que apregoam outras versões, como, por exemplo, o historiador Francisco Carlos Teixeira Da Silva e o cronista esportivo Loris Baena Cunha, os quais se referem de maneira totalmente diversa ao início das atividades futebolísticas no Brasil.

O primeiro destes estudiosos do perfil da sociedade brasileira alude a uma partida de futebol disputada, no ano de 1874, em praia carioca, por marinheiros estrangeiros; e outra, em 1878, por tripulantes do navio Crimeia, como ato festivo de reverência à Princesa Isabel. Reporta-se, também, ao regime adotado pelo Colégio Anchieta, de Nova Friburgo, que, em 1886, impunha a prática regular do association football por seus alunos, sob a influência dos padres jesuítas.7 O segundo dos autores citados registra a ocorrência de um jogo de futebol realizado no Pará, em 1890, no qual atuaram empregados ingleses da Amazon Steam Navigation Company Ltd., da Parah Gaz Company e da Western Telegraph.8

Diversos pesquisadores conferem, ainda, ao escocês Thomas Donohoe o mérito de haver inaugurado a prática do futebol em nosso país. Aquele desportista, em 1894, antes de Charles Miller, teria importado da Europa material esportivo para a realização de um jogo de futebol entre empregados da Fábrica Bangu, no Rio de Janeiro. Segundo esses pesquisadores, inclusive o professor Carlos Molinari, "a versão que indica Charles Miller como introdutor do futebol no Brasil procura desqualificar este momento, dizendo que os jogos realizados antes não o foram em campo com as medidas oficiais, nem com uma organização que previa, entre outras coisas, uniformes às equipes".9

Encontram-se na vastíssima literatura especializada mais duas referências, não muito confiáveis, sobre a matéria em exame: uma delas evoca a figura enigmática de Mr. Hugh, que teria organizado, no ano de 1882, várias partidas de futebol em Jundiaí, interior do Estado de São Paulo, entre ferroviários ingleses e brasileiros daquela cidade; e outra segundo a qual os empregados de duas empresas do Rio de Janeiro teriam realizado pelejas de futebol no campo do Paissandu Atlético Clube, tradicional agremiação social e esportiva fundada em 1872 com o nome de Rio Cricket Club.

De todas essas concepções atinentes aos primórdios do futebol brasileiro, a mais acolhida é, indubitavelmente, a que aponta Charles William Miller como introdutor da referida prática esportiva em nosso país, ante a consistência das informações disponíveis a respeito. Não quer isso dizer que as outras versões sejam inidôneas. Afinal, é bem possível que, em curto lapso de tempo, diversos cultores do association football - "velho e violento esporte bretão", nas palavras dos mais ilustres comentaristas esportivos - tenham concorrido, simultaneamente, para a sua disseminação inicial no Brasil.10

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3. Prática desportiva elitista

O limiar da prática do futebol no Brasil sofreu remota influência da chamada Revolução Industrial,11 ou seja, da eclosão do conjunto de mudanças tecnológicas que se verificaram na Inglaterra, em meados do século XVIII, e que, a partir do século XIX, se estenderam, em diferentes momentos, aos outros países. No Brasil, como antiga colônia de uma nação europeia, a Revolução Industrial só chegou, tardiamente, nas últimas décadas do século XIX. E em consequência dela, surgiram as fábricas, que passaram a concentrar centenas de trabalhadores, alterando, substancialmente, a estrutura social.

O notável crescimento econômico, proveniente da Revolução Industrial, ocasionou a transferência, para o Brasil, de numerosa leva de imigrantes europeus, notadamente ingleses de privilegiada condição financeira, que aqui aportaram com o intuito de desenvolverem suas atividades produtivas. O século XIX - vale frisar - se caracterizou, precisamente, pela hegemonia mundial da Inglaterra, tendo como fatos marcantes o acelerado progresso tecnológico daquele país, a sua expansão colonialista e as primeiras lutas de conquista dos trabalhadores, com o aparecimento de um novo ramo da ciência jurídica, o Direito do Trabalho.

Nesse cenário bem definido é que vieram a surgir, em nossas plagas, as entidades promotoras de jogos e torneios de futebol: os clubes. Tais entidades revestiam-se de duas naturezas: sociais, aquelas destinadas a fomentar a prática do esporte, como lazer, e, sobretudo, o convívio dos imigrantes europeus e respectivas famílias, preservando sua cultura, seus hábitos, suas tradições, suas lembranças; e desportivas, aquelas que tinham por escopo a formação e o aperfeiçoamento de jogadores, que seriam aproveitados na composição de equipes para a disputa de competições, oficiais ou não.

Certo é que, inicialmente, estavam envolvidos na prática esportiva em foco os componentes da elite europeia que se deslocou para o Brasil em função da perspectiva de prosperidade econômica gerada pela Revolução Industrial. Essa elite, da qual Charles Miller fazia parte, comandou todo o processo de implantação, sedimentação e expansão do...

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