Deslocamentos na cidade: o movimento Hip Hop nos/ dos bairros de Florianópolis

AutorAngela Maria de Souza
CargoUniversidade do Vale do Itajaí
Páginas549-562

Angela Maria de Souza1

    Dislocation in the city: the hip hop movement in/from the Florianopolis' neighborhoods

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Refletir sobre a diversidade que permeia os espaços urbanos das grandes cidades é um desafio que se impõe ao exercício etnográfico. Estes espaços urbanos trazem a tona o desconhecido que está próximo, nos impondo algumas provocações entre elas o de se colocar "aberto" e disposto a compreender esta diversidade.

Simmel foi um dos primeiros teóricos das ciências sociais a alertar para a diversidade e a heterogeneidade presentes nos espaços urbanos, apontando para a o "tipo metropolitano de individualidade". Para o autor,

[...] os problemas mais graves da vida moderna derivam da reivindicação que faz o indivíduo de preservar a autonomia e individualidade de sua existência em face das esmagadoras forças sociais, da herança histórica, da cultura externa e da técnica de vida. (SIMMEL, 1902; p. 11).

Neste sentido, a vida metropolitana implica em outro tipo de convivência com o espaço, entre eles uma maior racionalidade, em contraposição a emoção, criando uma impessoalidade aliada a uma subjetividade altamente pessoal , traduzida por Simmel como atitude blasé . Concomitantemente, estes espaços urbanos são importantes fontes das mais variadas formas de sociabilidade. Diferentes coletividades em relação e interação no uso do espaço urbano conformam estas cidades.

Com Simmel estou pensando as diferentes coletividades que movimentam o espaço urbano das grandes cidades, e nestas estruturam diversos modos de manterem-se em relação, já que

[...] puesto que em la sociabilidad declinan los motivos concretos relacionados com las metas de vida; de la misma manera, la forma pura, el livre juego, deve mantener com la maior firmeza la interdependência interactuante de los individuos y extraer de ésta el mayor efecto (SIMMEL, 1910 [2002]; p. 196).

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Ou seja, esta coletividade, a partir da sociabilidade aplacaria, mas não eliminaria, as individualidades, em nome desta forma 2 grupal. Ao mesmo tempo, esta forma quase ideal de sociabilidade é permeada por conflitos, contradições, competições que lhe dão forma e dinâmica. Ou seja, esta sociabilidade é entrecortada pelas subjetividades individuais . É na confluência de negociações entre individualidades na coletividade que a forma vai se estabelecendo. Uma é constituidora da outra.

A partir destas formas de sociabilidades propostas por Simmel, estou refletindo sobre as diferentes praticas do Movimento hip hop na cidade de Florianópolis, mais especificamente a partir de sua música, o rap. O rap, enquanto estilo musical, constitui-se num jeito de relacionar-se com a cidade, construindo nesta interação, sua reflexão sobre a mesma, e, através dele, na formação das coletividades, tracejam seus circuitos3 por estes espaços a partir de suas práticas de sociabilidade. A partir do Movimento hip hop pretendo aqui refletir sobre as formas que a cidade vai tomando a partir de suas práticas, levando em consideração os deslocamentos temporais e espaciais a ela subjacente.

Em pesquisa que realizei sobre Movimento hip hop de Florianópolis (SOUZA, 1998) é possível perceber que a grande concentração desta prática localizava-se na parte continental da cidade, principalmente nos bairros Monte Cristo, Vila Ipiranga, Chico Mendes e Jardim Atlântico (São José) 4 . É a periferia da cidade, com seu entorno que estava produzindo esta manifestação musical. Na época, a única exceção era o grupo Realidade Suburbana, que possuía dois integrantes que moravam nas imediações da Avenida Mauro Ramos, local dos tradicionais morros da cidade, com concentração de população negra e classes populares. No mais, todos os grupos vinham do continente, da chamada periferia da cidade.

Neste período predominavam temáticas relacionadas a problemas vivenciados pela população que habita a periferia da cidade, entre elas a violência em suas várias formas de manifestação, o tráfico de drogas e armas e suas conseqüências, além de problemas políticos e o descaso das autoridades públicas com a população residente nestes locais. Questionavam nestas músicas a

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imagem depreciativa de seus bairros de moradia, construída pela mídia. Contestavam a imagem da "Ilha da Magia" , principalmente a partir do discurso turístico. Enfim, falavam da desigualdade, da discriminação, principalmente racial, e das conseqüências que estas acarretavam. Mas, ao se oporem aos problemas que cantavam, colocavam-se numa posição de sujeitos em busca de mudança, de transformação desta "realidade", e apontavam o rap como uma das formas de processar esta mudança.

Esta discussão não é característica somente do rap de Florianópolis, perpassando a produção musical nacional deste estilo. No Brasil, o Movimento hip hop 5 , mais especificamente o rap entra no país a partir de suas periferias. Inicialmente por São Paulo e de lá se espalha pelas periferias do Brasil, chegando a Florianópolis em 1988, trazendo com ele um discurso de contestação das condições das "realidades" locais.

Mas este momento inicial é marcado por uma invisibilidade desta produção musical. Ela restringia-se quase que exclusivamente a periferia. Mesmo quando havia a saída desta produção musical de seus bairros em direção ao centro da cidade era a marca da periferia que vinha com eles. O contato da cidade (da não periferia) com este Movimento se dava principalmente quando estes saiam da periferia, muito dificilmente ocorrendo o contrário.

Florianópolis é uma cidade turística e frequentemente recebe o cognome de Ilha da Magia em suas propagandas. Marcadamente esta é uma oposição que se estabelece neste momento inicial da produção musical do rap na cidade, afinal de contas "A Ilha da Magia é da Ponte pra lá!" como inúmeras vezes ouvi em conversas, em entrevistas, em letras de música e que acabei utilizando no título de minha dissertação de mestrado.

Esta oposição Ilha X Continente, muito mais que uma questão geográfica, está trazendo a tona uma relação de desigualdade. Afinal de contas, se a "Ilha da Magia é da ponte pra lá!", o que tem do lado de cá da Ponte? Ao fazer esta pergunta é importante perceber que quem fala está no continente. Mas, não basta estar no continente, é importante falar sobre este espaço, ressaltando que o mesmo está na cidade, ampliando com isso a diversidade,

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em contraposição a uma imagem uniforme e consensual, que pode ser encontrada em discursos turísticos sobre a cidade, por exemplo.

A cidade nesta produção musical é apresentada de forma dividida. A cidade da periferia/"quebradas" 6 e a outra cidade, com suas praias, turistas, moradores de classe média. Esta oposição está centrada nas relações que o Movimento hip hop estabelece com a cidade, a partir da periferia. Aqui é importante ressaltar que há um deslocamento, no sentido de retirar da periferia sua oposição a um centro irradiador de idéia. Neste caso é a periferia que constrói a reflexão sobre a cidade a partir de sua música.

Ao mesmo tempo em que a oposição é colocada, nela também está à disposição para o estabelecimento de pontes. Em outras palavras a Ilha da Magia não é vista como acessível a todos. Mas falar sobre estas barreiras e separações através das composições musicais é uma das maneiras de gerar mudança, inclusive em suas próprias vidas. Tão importante quanto falar é dizer quem está falando. Em outras palavras, moradores das "quebradas" de Florianópolis .

Além dos problemas econômicos e os impostos pela desigualdade social e étnico-racial, esta produção musical está refletindo sobre o lugar que ocupa na cidade, a partir de quem são, ou seja, enquanto jovens, predominantemente negros, homens e mulheres e moradores da periferia.

A produção musical do rap apresenta formas que esta cidade vai tomando dependendo da perspectiva de quem fala. Até aqui, duas cidades se colocam, a das "quebradas" com sua...

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