Descriminalização do aborto, vozes, mortes e o direito de escolha

AutorDenise Antunes
Páginas87-102

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Ver Nota1

Quando soube da notícia, no começo de outubro de 2016, de que estudantes universitárias respondiam a um inquérito policial por haverem fixado cartazes na Faculdade de Direito de Goiás em prol da descriminalização do aborto, com os dizeres “Tirem seus rosários dos meus ovários”, resolvi escrever o presente texto.

Ainda bem que o juiz da 5ª Vara Cível de Goiânia, o colega Denival Francisco da Silva, em brilhante decisão, acatou liminarmente o habeas corpus impetrado por uma advogada e professora da mesma faculdade para trancar o inquérito policial que apurava a conduta das quatro estudantes de direito por suposto crime contra sentimento religioso.

A notícia e os dados contidos na decisão do colega dão conta que pessoas que frequentavam a instituição solicitaram providências ao diretor da unidade, que encaminhou o caso à polícia civil, a qual instaurou o inquérito contra as estudantes Andrielly, Juliana, Ingrid e Danielle. Além da motivação jurídica acerca da atipicidade da conduta e da garantia de livre manifestação das estudantes, o juiz comentou em sua decisão que

o alvoroço que se fez em torno da manifestação, legítima, livre, e que deve ser assegurada, estabelece uma verdadeira confusão inaceitável entre o Estado e a religião (...) O que mais espanta é que toda celeuma aconteceu num ambiente acadêmico, de uma Faculdade de Direito, donde se espera o enlevo, inclusive por motivos de ser objeto de estudos, dos direitos e garantias fundamen-

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tais. Onde se espera a exaltação dos princípios determinantes do Estado Democrático de Direito (...) A laicidade, como marca do Estado Democrático de Direito, foi esquecida.2Além da revolta ao ato arbitrário à liberdade de expressão (da mulher) e à manifestação das estudantes, que felizmente encontrou o tom da decisão judicial acima comentada, o presente estudo se concretiza também porque tratei do tema aborto, no dia 19 de agosto de 2016, na mesa redonda “Aborto no séc. XXI: olhares e saberes interdisciplinares”, quando do acontecimento do VII Simpósio Jurídico dos Campos Gerais, realizado na uEPG, em Ponta Grossa, por convite da professora, amiga e colega de faculdade Maria Cristina Rauch, em companhia das demais palestrantes Ana Paula Xavier Ravelli e Georgine Garabely Heil Vázquez.

Por vezes algumas notícias de vozes femininas em favor da descriminalização do aborto vêm à tona, mas se entende que dita movimentação feminina em torno do tema deveria ser mais ativa, pois o Brasil possui uma legislação arcaica e na direção oposta a dos países desenvolvidos, sendo que possui a mesma lei que existe, por exemplo, no Afeganistão (cujo respeito à mulher é nulo) e no pobre país africano Burundi. Na América Latina e na África, a maioria dos países restringe ou proíbe a interrupção voluntária da gestação, como ocorre ainda na legislação brasileira. No hemisfério norte do planeta a liberação é praticamente geral. E a grande preocupação é porque o aborto provocado pela gestante e o produzido por terceiro, com o consentimento da gestante, ainda são modalidades tratadas pela nossa legislação criminal como crimes. Não é respeitado o direito de escolha da mulher (garantia ao direito à privacidade).

Não se pensa aqui em adentrar no âmago da discussão daqueles que defendem a criminalização calcados na tese de que nossa legislação garante que a vida começa na concepção, mormente porque argumentos jurídicos para a defesa da tese contrária sempre há e, por certo em contraponto à teoria concepcionista, pode-se enfocar a teoria natalista, a qual lembra que a Constituição da República em nenhum momento dispõe quando começa a vida e traz à tona as lições

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de direito civil nas quais somente com o nascimento com vida a pessoa adquire a personalidade; a vida é própria da pessoa nativiva3.

Nesse ponto, aliás, é importante para o pensamento mais profundo de todos os interessados no tema uma intervenção feita pela psicanalista e jornalista Maria Rita Kehl quanto à existência de vida desde a concepção. Comentando sobre o famigerado Projeto de Lei 5.069/13, do ex-deputado Eduardo Cunha (que dificulta ainda mais o aborto legal), a jornalista alerta para o seguinte:

Até o uso da pílula do dia seguinte, que provoca a expulsão do óvulo recém-fecundado, será proibida se os deputados decidirem. Já é uma vida humana, dizem os membros da bancada da repulsa ao sexo. Sim, é uma vida. Mas se fosse humana, a sociedade teria criado ritos para incluí-la na cultura – batizar e sepultar os óvulos fecundados, por exemplo, quando expulsos por abortos espontâneos. Parece um absurdo, não é? Parece uma ideia bizarra. Assim é: porque de fato não os consideramos ainda como seres humanos. Nomeação e sepultamento são práticas culturais que nos definem como humanos. Nenhuma delas se aplica a essa forma incipiente de vida.4No entanto, nem sempre no Brasil o autoaborto foi criminalizado. No que diz respeito ao aborto perante a lei brasileira, que se cogite ainda um breve histórico5, tem-se que no Brasil Colônia as leis que vigiam eram as mesmas da corte portuguesa, e as Ordenações Afonsinas, Manuelinas e Filipinas não chegaram a prever pena especial para o aborto, sendo que o fato era considerado homicídio. Com a proclamação da independência em 1822, surge em 1830 o nosso próprio Código Criminal do Império. Mas no Brasil Imperial, esse Código Criminal (1830), nas palavras do jurista Cezar BItENCOuRt,

não criminalizava o aborto praticado pela própria gestante. Punia somente o praticado por terceiro, com ou sem consentimento da gestante. Criminalizava-se na verdade o aborto consentido e o aborto sofrido, mas não o aborto provocado, ou seja,

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o autoaborto. A punição somente era imposta a terceiros que interviessem no abortamento, mas não à gestante, em nenhuma hipótese.6Por sua vez, no Brasil República, o Código Penal de 1890 não era diferente do Código de 1940 (atual), porque daí já se começou a punir a gestante que participava da prática do aborto mesmo quando cometido por ela sozinha.

Na nossa lei atual, o legislador ordinário revestiu de licitude a prática do aborto em duas situações distintas: (1) quando a gravidez resulta de estupro e há o consentimento da gestante ou de seu representante legal (denominado aborto sentimental ou aborto por indicação médica), e (2) quando não há outra forma de salvar a vida da gestante (denominado de aborto necessário ou terapêutico). E, ainda, por maioria de votos (8 x 2), o Supremo tribunal Federal (StF), no ano de 2012, julgou procedente o pedido contido na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 54, para declarar a inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual a interrupção da gravidez de feto anencéfalo é conduta tipificada; ou seja, o StF, autorizou o aborto no caso de anencefalia.

Na presente matéria, então, o que se pretende frisar cada vez mais é a importância de conceder à mulher o seu direito de optar em realizar ou não o aborto no Brasil, diante do quadro mórbido percebido no cenário do país, cuja realidade aponta (desde que o mundo é mundo) a prática constante do aborto e que essa não cessará. O discurso de que a criminalização deve permanecer a qualquer custo sob o enfoque jurídico de que a vida se inicia com a concepção ou sob enfoques morais e religiosos é tido como ultrapassado na sociedade contemporânea e até mesmo como perverso se levarmos em conta o drama subjetivo e único vivenciado pela mulher que opta pelo aborto e ainda o imenso número de mortes causadas pelo aborto mal executado (aborto inseguro). Vozes femininas depois de caladas (mortas) não são mais escutadas, ainda mais se essas vozes pertenciam a pessoas desprovidas de familiares ou afins com ‘poder de mudança’, como a condição econômica.

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Estamos falando de que a cada dois dias se constata pelo menos uma morte em virtude do aborto inseguro realizado no Brasil (em 2013)7e ainda que o abortamento clandestino constitui a quinta causa da morte materna no país, de acordo com o governo brasileiro no relatório elaborado para o evento “Pequim+ 20”, que aconteceu quando da 59ª Comissão sobre o Estatuto da Mulher da Organização das Nações unidas – ano de 2015 – (ONu)8.

Para tecer comentários sobre aborto no Brasil, então, não se pode escapar do assunto ‘vida e morte’. ‘Vida e morte’ da mulher. Sim, daquela gestante que optou pelo aborto e, atormentada por questões de ordem moral, religiosa e social, ainda carrega o peso de ter sua conduta criminalizada perante o direito penal. Aquela mulher que, sem condições financeiras de realizar um aborto ‘seguro’, sozinha, e que após um turbilhão de pensamentos de tristeza, amargura e angústia, decidiu definitivamente que irá sim realizar o aborto. Essa mulher poderá estar a um passo da morte.

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