A desconstrucao (dos limites) do "campo da saude do trabalhador"/The deconstruction (of the limits) of the "field of the health of worker".

Autorde Oliveira Souza, Diego

Introducao

Na tese de doutorado Saude do(s) trabalhador(es): analise ontologica da "questao" e do "campo" (SOUZA, 2016) (1)--defendida no Programa de Pos-Graduacao em Servico Social (PPGSS) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) atraves de Doutorado Interinstitucional (Dinter) com a Universidade Federal de Alagoas (Ufal)--desenvolvemos uma pesquisa teorica a partir da categoria "questao da saude dos trabalhadores".

Essa categoria se consubstancia na relacao entre trabalho e saude no capitalismo e foi por nos apreendida a partir do referencial teorico marxiano-luckacsiano, sobretudo na discussao sobre a categoria trabalho, em dialogo com a producao cientifica que versa sobre "saude do trabalhador". Nessa producao, destacamos as contribuicoes italianas das decadas de 1960-1970 (BERLINGUER, 1983) e as latino-americanas das decadas de 1980-1990 e inicio dos anos 2000 (TAMBELLINI et al., 1986; LAURELL; NORIEGA, 1989; MENDES; DIAS, 1991; MINAYO-GOMEZ; THEDIM-COSTA, 1997; MINAYO-GOMEZ; LACAZ, 1997; MINAYO-GOMEZ, 2011; VASCONCELLOS, 2011).

Com a expressao "questao da saude dos trabalhadores" (daqui em diante, apenas "questao") queremos designar o processo saude-doenca da classe trabalhadora colocado em questao, demonstrando quais os seus fundamentos ontologicos e quais as respostas sociais que suscita. Assim, a "questao" corresponde a um processo social objetivamente existente (portanto, que independe da existencia de qualquer campo cientifico e/ou politico-institucional) surgido em meio a uma contradicao tipicamente capitalista: nao existe capital sem trabalho, pois ele (o capital) so e produzido/reproduzido por meio da exploracao do trabalho, com a consequente degradacao da saude dos trabalhadores; assim, ao degradar a saude da classe trabalhadora, o capital degrada aquilo do que depende a sua existencia. A "questao" comparece no processo enquanto manifestacao particular desse antagonismo entre capital e trabalho (SOUZA, 2016).

De antemao, convem diferenciar a "questao" em relacao ao que tem sido chamado de "campo da saude do trabalhador" ("saude do trabalhador" ou, ainda, como chamaremos a partir daqui, "campo" (2)), porquanto seja comum a referencia a "questao" como algo que se restringe ao "campo". Isto e, pode-se (re)cair no erro de conferir identidade absoluta entre eles, como se a "questao" se limitasse a um questionamento sobre o "campo". Todavia, a "questao" extrapola os limites de qualquer campo cientifico, ainda que ela seja considerada, de maneira paradigmatica, objeto de estudo e intervencao de algum outro campo.

No caso do "campo", ele surge a partir da "questao" a fim de entende-la e transforma-la, consubstanciando uma nova area cientifica (e politico-institucional). Nessa medida, ele tambem passa a compor a "questao", enquanto resposta social que ela demanda. Constitui-se uma relacao organica, mas nunca de absoluta identidade. Tambem, ao se constituir um novo campo, estabelecem-se rigidos limites (fronteiras) para a investigacao e intervencao dos pesquisadores, tecnicos e militantes sobre a "questao", ainda que em um movimento dialetico de avancos possiveis ante a antigos campos (a exemplo da medicina do trabalho e saude ocupacional). Diante disso, o objetivo desse artigo consiste em refletir sobre os limites cientificos do "campo" na apreensao da "questao".

Como parte da referida tese de doutorado, o artigo, metodologicamente, possui carater teorico, uma vez que propoe a (re)formulacao teorica a respeito de um determinando processo social. A pesquisa bibliografica comparece como procedimento tecnico que reuniu os textos necessarios ao debate aqui proposto. Alem das referencias da "saude do trabalhador" ja mencionadas, merece destacar o dialogo (critico) estabelecido com a categoria campo de Bourdieu (1976; 1978) e paradigma, de Kuhn (1978), contrapostos pela perspectiva da totalidade social presente na abordagem de Marx, segundo Lukacs (2012).

"O campo da saude do trabalhador": construindo (os seus limites)

Inicialmente, e necessario esclarecer que o "campo da saude do trabalhador" distingue-se dos tradicionais campos da medicina do trabalho e da saude ocupacional, embora seja fruto da incorporacao/superacao destes. Vasconcellos (2011) ressalta que as diferencas entre medicina do trabalho, saude ocupacional e "saude do trabalhador" nao sao meramente semanticas, mas possuem determinacoes historicas concretas bem especificas, inclusive com posicoes ideologicas distintas.

Consoante apontam Mendes e Dias (1991), a Medicina do Trabalho surgiu na Inglaterra do seculo XIX, em meio a Revolucao Industrial, para suprir demandas bem especificas, tais como: o controle direto da forca de trabalho, a diminuicao do prejuizo gerado pelo absenteismo por motivo de doenca e a selecao de forca de trabalho menos propensa ao adoecimento. Isto e, surge como proposta do capital para a intervencao na "questao", na tentativa de remediar o irremediavel antagonismo consubstanciado na "questao".

Nesse mesmo sentido, Minayo-Gomez e Thedim-Costa (1997) destacam que, na logica da medicina do trabalho, o adoecimento do trabalhador e visto pela unicausalidade, ou seja, para cada doenca ou acidente, um risco ou agente etiologico. Nessa perspectiva simplista, esse campo cientifico se desenvolve centrado na figura do medico, com a tarefa de atuar nas consequencias da relacao trabalho-saude. Alem disso, consoante Berlinguer (1983), do ponto de vista ideopolitico, tambem se constata o carater pro-capital, tomando o trabalhador como objeto de intervencao e mera engrenagem da producao.

No periodo Pos-Segunda Guerra Mundial, a atencao a saude dos trabalhadores constituida exclusivamente da figura do medico se mostrou insuficiente para as novas demandas, o que exigiu a incorporacao de novas disciplinas cientificas e profissoes, marcando o surgimento da saude ocupacional (TAMBELLINI et al., 1986). Para Minayo-Gomez e Thedim-Costa (1997), esse novo campo traz a proposta da interdisciplinaridade e preocupa-se com os varios fatores de risco do ambiente, mas ainda mantem a essencia do referencial da medicina do trabalho, confina-se nas relacoes estabelecidas no ambito privado e alija os trabalhadores do processo, tomados como objetos de intervencao.

Ao contrario desses dois modelos, a proposta do "campo", oriunda das lutas sociais dos proprios trabalhadores, propoe ir alem do ambito contratualista estabelecido entre patrao e empregado e, principalmente, romper com a delegacao da saude ao capital (ou aos tecnicos a seu servico). Ate mesmo porque o "campo" surge a partir da contestacao desses modelos tradicionais, originalmente feita pelo movimento operario italiano, mas tambem, posteriormente, incorporando contribuicoes da medicina social latino-americana.

Constata-se que a incorporacao da concepcao de nao delegacao da saude e o ato de o trabalhador nao delegar, seja ao empresariado, seja ao profissional de saude, a autoridade sobre seu processo saude-doenca. Assim como em consequencia da nao delegacao, a incorporacao do saber operario, como protagonista, sobre as relacoes trabalho-saude, constitui o eixo teorico-pratico do novo "campo" (principios estes oriundos da experiencia italiana). A principal implicacao desta condicao sera a elevacao do trabalhador a sujeito ativo do processo, em contraposicao a sua passividade no modelo de medicina do trabalho/saude ocupacional (LAURELL; NORIEGA, 1989; MINAYO-GOMEZ; LACAZ, 2005).

Diante de tudo isso, a construcao (ainda em andamento) do "campo da saude do trabalhador" expressa uma tentativa de produzir um tipo de conhecimento que, alem de ser dos trabalhadores, seja para os trabalhadores. Isto implica outra tentativa: a de apreensao do processo saudedoenca dos trabalhadores (e das relacoes trabalho-saude como um todo) como uma "questao" integral, o que requer desconstruir os limites rigidos de um campo pertencente a ciencia vigente, constituindo-se num paradoxo ante a dinamica inerente ao referido processo de construcao, por dentro desta ciencia.

Desse modo, a tentativa de construcao do "campo" e limitada a logica imanente de uma determinada divisao cientifica, o que implica a apreensao parcial da "questao". Assim como a apreensao da "questao" pelo "campo" e parcial, a critica feita por este a ciencia do capital (e ao proprio capital) e limitada, em grande medida, por sua condicao de...

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