A desconstituição do mito da implementação de filtros monetários como forma de aperfeiçoamento das atividades das cortes superiores

AutorMarcia Carla Pereira Ribeiro/Giovani Ribeiro Rodrigues Alves
Páginas254-272

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Ver Nota12

1. Introdução

Em razão do elevado número de processos que são levados a julgamento pela via recursal aos tribunais superiores, discute-se acerca da imposição de filtro monetário para o conhecimento dos recursos especiais pelo Superior Tribunal de Justiça. As reflexões aqui propostas voltam-se ao debate sobre a pertinência de se estabelecer patamares que envolvam valores para que um recurso possa ser admitido pela corte superior como forma de melhorar a atividade e a eficiência do STJ, e da mesma forma se a elevação do valor das custas recursais, para que somente os muito interessados (ou muito abastados?) possam pleitear a tutela da corte, pode contribuir para o aperfeiçoamento funcional do tribunal da cidadania.

Para minimamente contribuir com a discussão e aproximá-la do binômio direito e desenvolvimento, faz-se necessário, em primeiro lugar, o exame das funções do Superior Tribunal de Justiça e das alternativas que decorrem da adoção de filtros recursais. Neste intento, o presente artigo lançará mão, ainda que muito brevemente, de apreciações feitas por juristas inseridos em contextos parcial ou radicalmente diferentes do brasileiro, mas que podem contribuir pela via do estudo comparado dos sistemas.

Adiante, será feita breve incursão na Análise Econômica do Direito (AED), fazendo-se uma interlocução entre algumas de suas ferramentas e as

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necessidades do Poder Judiciário. Acredita-se que a utilização de ferramentas da AED pode contribuir para a maximização dos próprios objetivos buscados por nossas cortes superiores e pelo direito como um todo.

O artigo parte de algumas considerações sobre a situação atual de nossas cortes superiores em termos de demandas que são a elas alçadas a julgamento e a relação entre as consequências da estrutura recursal vigente e a efetividade da melhor prestação jurisdicional, para, na sequência, abordar brevemente as funções que são reputadas às cortes superiores.

No item 4, aborda-se a Análise Econômica do Direito como ferramenta útil à busca de alternativas que aprimorem o sistema recursal especial no Brasil.

Em seus últimos capítulos, o trabalho discorre sobre a sucumbência recursal, a elevação das custas processuais e o critério da alçada a partir do valor da causa em contraponto à definição da função prevalente a ser atribuída à corte superior, para ao final apresentar suas notas conclusivas.

2. Considerações iniciais

Em um estado constitucional, a tutela dos direitos deve ser prioritária e, como tal, a boa estruturação do aparato judiciário é fundamental para a promoção do desenvolvimento. Conforme observado por Silvestri, o sistema jurídico não teria sentido se não fosse orientado a tutelar direitos e seria ilógico se os órgãos máximos do judiciário estivessem alheios a este objetivo3.

Ocorre que o excesso de demandas no Supremo Tribunal Federal e nos tribunais superiores, no Brasil, é problema que não somente retarda a tutela jurisdicional, como também prejudica, muitas vezes, a qualidade das decisões e, em última instância, a efetiva aplicação do direito e o desenvolvimento ancorado na boa prestação jurisdicional.

Analisar os problemas operacionais do Poder Judiciário no Brasil deixou de ser uma constatação para se tornar lugar-comum, já que todos aqueles que possuem ao menos um pequeno contato com a prática sentem os nefastos efeitos do excesso de lides no dia a dia dos tribunais brasileiros.

Comparações entre cortes de diferentes países são sempre difíceis, em virtude da diferença populacional e das distinções nas funções exercidas pelos tribunais. Entretanto, como explicam Winter e Wachowicz, em razão da crescente globalização e da integração entre os Estados, o próprio conceito de soberania dos Estados, em sua noção clássica, pode e deve ser revisitado4, e da

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mesma maneira, a comparação entre cortes de diferentes países pode trazer importantes subsídios para a melhoria do aparato judiciário brasileiro.

Veja-se, por exemplo, a estrutura recursal brasileira quando objeto de breve comparação envolvendo as cortes supremas do Brasil e da Alemanha: enquanto a Corte Constitucional alemã resolve em média 6.000 casos por ano5, o Supremo Tribunal Federal, somente no primeiro semestre de 2012, julgou mais de 42.000 processos6.

É interessante mencionar que a Corte Constitucional alemã vem buscando meios para reduzir o número de processos por ela conhecidos e julgados7, o que leva a crer que, muito em breve, a já pequena quantidade de processos por ela julgados (ao menos se comparado com o STF) será ainda reduzida.

Em relação aos tribunais superiores, não parece haver significativa diferença nesta constatação quanto ao excesso de processos. No ano de 2012, o Superior Tribunal de Justiça julgou 362.141 casos8. Isto resulta na impressionante média de 1.442 processos decididos a cada dia útil do ano de 2012 (desconsiderando as férias forenses, o que aumentaria ainda mais a média julgada por dia), em um órgão que conta, atualmente, com pouco mais de 30 ministros.

Esses números clamam por reflexão não somente dos juristas, como também dos formuladores de políticas públicas, já que não parece minimamente razoável que um tribunal superior fique imerso em uma quantidade absurda de processos, reduzindo ou prejudicando de forma significativa suas condições de efetivamente contribuir para o desenvolvimento do direito brasileiro e, por consequência, participar do processo de desenvolvimento do país.

Com efeito, não são recentes as discussões envolvendo quais devem ser os escopos de uma corte superior. Se devem estar voltadas à resolução de demandas individuais, ou seja, buscar a correta aplicação do direito em casos particulares, constituindo-se em verdadeiro direito subjetivo da parte, ou a julgar determinadas ações que tenham um grande potencial agregado, cujos efeitos possam incidir sobre um número expressivo de pessoas.

Sob outro viés, ao se concluir pela negativa da possibilidade de acesso à corte superior, impõe-se ponderar se o resultado pode ser considerado hipótese de cerceamento ao direito de defesa do indivíduo ou efetivamente uma forma de proporcionar condições para uma adequada tutela aos processos que alcancem o Superior Tribunal de Justiça. Estas e outras questões correlatas envolvem a noção de filtros recursais e estão diretamente relacionadas com a ideia de desenvolvimento.

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3. Breves apontamentos sobre as funções das cortes superiores e sobre os filtros recursais

O papel das cortes superiores e suprema como tribunais de terceira ou quarta instância vem sendo discutido em diversos países9, não sendo, portanto, exclusividade da realidade brasileira a constatação da impossibilidade material de se ter três ou até quatro juízos de apreciação jurisdicional para cada demanda. Essa sucessão de instâncias provoca inevitável sobrecarga de trabalho dos membros das cortes, o que, somado à escassez de tempo que provoca rivalidade em relação à análise de casos mais ou menos relevantes em termos de impactos sociais, conduz a uma situação de incerteza quanto à eficiência do modelo atual.

Indo mais além, até mesmo o princípio do duplo grau de jurisdição pode ser analisado de forma diferente, a se considerar o verdadeiro papel a ser reconhecido aos recursos. É bastante comum que se defenda o duplo grau de jurisdição como uma garantia constitucional fundamental para a boa administração da justiça, alicerçada no disposto no art. 5º, inciso LV, da Constituição Federal (“aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral, são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”) e, implicitamente, estendendo-se até a possibilidade de interposição de recurso especial ao Superior Tribunal de Justiça10. A ideia de revisão das decisões seria conexa àquela de controle da atividade judicial e uma forma de influência psicológica imposta ao julgador, por estar ciente da possibilidade de reapreciação.

Os filtros recursais relacionados a algum critério monetário de acréscimo de custas ou honorários não impedem a interposição de recurso, mas, para alguns, poderia contrariar a garantia constitucional do duplo grau de jurisdição, já que as partes, ao iniciar o processo, devem “dispor de idêntica possibilidade de recorrer da decisão, futura e incerta, que venha a ser dada ao conflito” 11, razão pela qual não se poderia aplicar a ampliação da sucumbência recursal ao sistema processual civil brasileiro.

É interessante considerar que a fixação de sucumbência recursal ou de aumento expressivo das custas processuais por si não significa afronta ao direito das partes, mas, antes, compõe o quadro que circundará a escolha do agente. É certo que a parte que recorre assume o risco de não vencer e de sofrer a condenação. Porém, o próprio ônus de sucumbência atualmente vigente no sistema processual civil já opera neste mesmo sentido, vez que também

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impõe às partes o risco de serem condenadas ao pagamento das custas processuais e honorários advocatícios em caso de insucesso de suas pretensões desde que decidam pela propositura da demanda. Vale lembrar que se o risco de pagamento do ônus de sucumbência e da sucumbência recursal representar verdadeiro obstáculo ao alcance da tutela jurisdicional, por não dispor a parte de condições financeiras para suportá-los sem prejuízo do sustento próprio ou de sua família, o benefício da justiça gratuita (Lei 1.060/50) estaria à disposição dos que dela necessitarem, superando a suposta ofensa ao acesso à justiça e ao direito de recorrer12.

A extensão da garantia ao duplo grau...

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